- Eu te odeio!
Eu amava aqueles lábios, agora furiosos comigo. Eu amava cada detalhe da dona dos lábios, antes tão delicados. Da pele clara, dos cabelos negros e dos olhos esmeralda. Amava cada dente amarelado por tanto café e cigarro. Cafés e cigarros que dividíamos.
Acho que ela acabou me odiando ao ver o amor que eu sentia escancarado de repente. Ao ver a minha coragem em cima de sua fraqueza. Eu até pensei em perguntar desde quando ela sentia ódio por mim, mas a chuva caía rápido lá fora, eu não queria parar de prestar atenção em cada gota d'água que caía sobre o carro escuro que ela dirigia rapidamente noite adentro. E foi o meu silêncio que a deixou nervosa.
Depois das palavras de ódio gritadas, ela percebeu minha boca fechada e meus olhos fixos nela. Me encarou irritada e esqueceu completamente da curva a nossa frente. Não desviamos o olhar até o carro capotar morro abaixo. E foi em câmera lenta. Cada movimento.
Seu corpo sempre tão frágil caindo em cima do meu, preso ao cinto. Sua cabeça com cabelos esvoaçantes, batendo contra o vidro ao meu lado. Sangue. Seus olhos arregalados, em completo desespero. Suas costas encontrando o teto do carro, minha cabeça em movimentos rápidos, querendo se soltar do meu corpo seguro. Sua mão tentando encontrar algo para segurá-la. Estendi minhas mãos para alcançá-la, agora se chocando contra o parabrisa. Seu desmaio. Então ela parecia uma boneca, sendo jogada de um lado para o outro, indo de acordo com as estúpidas leis da físicia. Foi jogado para fora do veículo...
O carro dava voltas e mais voltas intermináveis. Para parar de cabeça para baixo. O espaço já era mínimo ali dentro. Os vidros agora nem existiam. Eram só cacos, pó. Minhas mãos sangrentas e trêmulas tentaram soltar o cinto uma, duas, cinco vezes. Eu não conseguia e tinha medo de pensar onde ela poderia estar. Até ouvir seu choro alto, desconsolado. Eu precisava me soltar.
E eu tentei gritar, mas não havia som algum saindo de minha boca. Ela chorava e chorava desesperada. Não houve palavra alguma, era só choro. Eu deveria estar chamando seu nome para me ajudar a abrir o cinto, mas eu não conseguia soltar a voz. Simplesmente não conseguia. Ela continuava a chorar.
Fechei meus olhos com toda a força que tinha. Eu não lembrava do nome da garota que chorava. Não lembrava de quando começou a chover. Eu nem sabia porquê estava num carro. Esperei que ela chamasse meu nome, ao menos eu saberia meu próprio nome. Mas não houve som algum além do choro feminino e da tempestade.
Então o choro simplesmente parou. Veio o som de sirene. Foi aí que desmaiei pela primeira vez. Talvez por pensar que uma ambulância deixaria tudo bem.
Acordei com uma luz forte e amarelada no rosto, pensei que fosse o sol de um dia lindo em que cochilara na praia.
A luz se apagou. Eu queria muito estar em um lugar aconchegante. Fechei os olhos. Talvez fosse um sonho aquela coisa toda de acidente, choro e esquecimento.
Outro pensamento incerto.
Mas ao fechar os olhos senti lágrimas ali. Os abri novamente para ver os borrões graças à água que insistia em escorrer pelo meu rosto. E eu não via motivo para lágrimas. Me sentia indiferente à dor, assustada e ainda assim chorava calmamente. Eu nunca gostei da calma, verdade. E por alguma razão eu lembrei disso enquanto ouvi um sino.
1994
A música vinha em alto volume dos fones de ouvido da morena.
- Ela vai ficar surda. - Comentei com a menina sentada ao meu lado no banco de madeira colocado no meio do pátio barulhento do colégio.
- Se eu ficar, eu te conto.
Eu levei um susto ao ouvir a voz da morena em minha direção. E pelo o visto, a pequena qua há pouco estava ao meu lado também, pois ela simplesmente se levantou e foi pular corda.
A morena aproveitou. Se levantou do gramado a minha frente e sentou no meu lado. Eu apenas observei-a tirar os fones de seus ouvidos e encaixá-los em mim. Então eu ouvia a música. Ainda que o volume estivesse realmente alto, ouvi bater o sinal para a aula começar. E a voz vindo daqueles lábios apaixonantes: 'Quer matar aula?', sorriu.
Abri os olhos.
Minha cabeça estava deitada num travesseiro branco. Doía demais para eu olhar o resto da cama. Não me importava, de qualquer maneira.
Vi que recebia sangue. Apaguei de novo.
- Como eu poderia esquecer da nossa música? Claro que lembro!
- Qual era?
Senti como se estivesse caindo num vazio eterno. Senti minhas pernas saltando. Gritos numa casa escura.
- Ninguém nunca tinha se aproximado tanto de mim! Como você pôde? Mais de uma vez eu te dei a chance de terminar comigo feito adulta e você preferiu continuar com isso!
"Isso aconteceu há uns meses", pensei. Era verdade. Meu cabelo ainda estava com uma franja cobrindo a testa. Por que eu tinha essas lembranças?
E lembrei. Da estória inteira.
O nome dela era Remy.
Remy me odiava. Ao menos, foi a última coisa que ela mencionou.
Naquela noite eu a encontrei em um bar longe de casa. Bebia demais e eu apenas entrei em choque ao encontrá-la num estado tão desprezível. Ela vomitava no canto de sua mesa, no final do boteco.
Logo vi um frasco de remédios ao seu lado. Ela estava completamente louca e sozinha. Queria morrer de novo. Achava que já tínhamos superado isso. E eu não entendia o porquê de tudo aquilo. Estava imóvel. Até ela pegar a carteira da bolsa para pagar a provável conta absurda do bar. A vi mexer na carteira várias vezes. Ela não tinha dinheiro.
Fui até o caixa pagar seu porre com meu cartão de crédito. Ela ficou assustada e ainda assim deu um sorrisinho com o hálito fedendo a àlcool e traição.
- Vamos embora. - a peguei pelo braço.
- Para onde?
- Há algum hotel aqui perto? - perguntei para um barman que passou do nosso lado.
- O único hotel da região é aqui mesmo, temos um albergue... Mas não há mais nenhuma vaga.
- Tem certeza? Ela tá muito mal e-
- Eu não tô mal!
- O que você usou, Remy?
- Uma vagabunda.
Eu quis desesperadamente juntar forças ali para lhe dar um tapa na cara enquanto ela simplesmente sorria deboxada. Suas pupilas mais dilatadas que nunca.
- Que pílulas são essas?
- Ahn. - encarou o frasco alaranjado a sua frente. - Não lembro.
- Eu juro que você se livra de mim amanhã. Acabou. Mas eu não vou te deixar morrer aqui.
Segurou meus punhos com firmeza enquanto me encarava séria agora. Ela lembrava um vampiro. Pele branca, cabelos negros e aqueles olhos enormes dilatados.
-Me solta, Remy. E não se atreva a encostar mais em mim.
Imediatamente ela me soltou e ainda me encarando, levantou do banco.
-Meu carro tá ali fora.
-Você não vai dirigir – falei ao me aproximar do veículo escuro no meio da noite.
-Você acha que decide tudo sozinha, não é? Não mandas em mim! Eu vou dirigir, o carro é meu.
-Não foi uma decisão minha! Você está drogada demais para sair por aí dirigindo numa noite como essa. Vai chover a qualquer momento.
-É metida a sabe tudo ainda por cima... Não vai chover e a estrada tá vazia. Vamos.
-Não.
-Entra.
-Não!
Ela entrou no carro e ligou o motor. Entrei rapidamente também, no banco de passageiros. Tudo errado.
-Como você veio e me achou aqui?
-De ônibus. Li o seu recado em cima da mesa dando o nome do bar, Remy. E você está sendo ridícula, pára o carro antes que aconteça alguma coisa.
-Eu não sou ridícula!
-Estás sendo. Por que você fez isso?
-Por que você não aceita que não tá dando certo? Por quê?
-Do que você tá falando?
-De tudo! Das brigas constantes, da raiva, da insatisfação, das viagens, dos tempos, da saudade. A gente fica tentando ser feliz como éramos no começo, mas a gente não consegue!
-Pára o carro...
Era como se eu soubesse que ali começara não só o nosso fim definitivo, mas o fim de nossas vidas.
-Srta. Cameron?
Abri os olhos para enxergar-me com a maca inclinada. Eu estava praticamente sentada. Ainda não conseguia falar.
-Ahn, a srta. Hadley gostaria de vê-la e.. sinto dizer que ela tem pouquíssimas chances de vida. Já fizemos de tudo e ela não está reagindo bem... Mas vou levá-la até o quarto dela.
Tudo o que senti naquela maca enquanto o médico me empurrava até o quarto em que eu a encontraria, era vazio. Era como se eu já estivesse morta. E tudo o que ouvi vindo daquele corpo frágil, sangrento, inchado, quebrado, rasgado e costurado foi: "I owe you a love song".
A máquina ao seu lado começou a fazer um barulho contínuo e irritante. Ela se fora.
O fato é que hoje, enquanto eu arrumava suas coisas, achei um papel velho e amassado numa caixa contendo fotos e outras folhas de caderno. O papel velho continha a letra da música que ouvimos em seu walkman, quando nem sabíamos nossos nomes.
Acho que é nessa hora em que posso morrer em paz, repousar finalmente. Fizemos tudo que estava em nosso alcance para morrermos assim, nos amando intensamente. Me orgulho de tudo.
E acho que não posso mais esperar para vê-la mais uma vez.
