Abri os olhos e me encontrei envolta pela escuridão do quarto. Podia escutar minha irmã, Nayara, ressonar. Sempre invejei o sono pesado dela. A tábua rangendo no corredor chamou minha atenção, me despertando por completo. Na ponta dos pés, e com o chinelo na mão, segui até a porta entreaberta de nosso quarto. Fiquei espiando por alguns segundos, quando escutei novamente o rangido e vi uma sombra passar, ficando ereta e me escondendo atrás da porta. Ao que parecia, estava indo para o quarto de nossa tia May.

Decidida, segui para o corredor, andando o mais lenta e silenciosamente possível, e estava quase chegando ao quarto de tia May quando uma mão pousou em meu ombro. No susto, eu gritei, virando e batendo com o chinelo em quem quer que fosse. Quando a luz acendeu, um homem estava parado a minha frente, tentando se defender do chinelo.

- Benjamin! - Exclamei.

- Kate! - Exclamou tia May.

Escutamos Nayara roncar.

- O que está acontecendo aqui? - perguntou tia May, se enrolando em seu roupão cor-de-rosa.

- Eu escutei um barulho e achei que alguém tivesse entrado na casa - expliquei - Desculpe Ben - pedi.

O rapaz, alto, de ombros largos e braços fortes olhou-me por um instante, confuso.

- Espera... você achou que alguém tinha entrado na casa, e pegou um chinelo para se defender? - perguntou.

- É... foi a primeira coisa que encontrei...

- Um chinelo? - E logo caiu na gargalhada, rindo tanto que teve de sentar no chão. Olhei para tia May, que tentava esconder o riso. E então estávamos os três rindo no corredor.

- O que está acontecendo? - escutamos a voz de Nayara, que estava parada na porta do quarto com a cara amassada.

- Nada, achei que tivesse entrado alguém na casa - expliquei, secando as lágrimas.

Benjamin continuava a rir, sua crise aumentando a cada vez que olhava para mim. Eu já estava ficando sem graça. Não demorou muito para que Nayara assimilasse toda a situação e se juntasse a nós na crise de riso, que durou até tia May nos mandar de volta para nossos quartos.

- Kate, querida, suas aulas começam amanhã, você precisa estar preparada - falou, me empurrando de volta para o quarto.

Nayara voltou logo a dormir, enquanto que eu fiquei por um bom tempo acordada encarando o teto. No dia seguinte, para variar, eu acordei - atrasada - com os gritos de minha irmã e uma travesseirada.

- Ai, sua maluca! - reclamei, esfregando as costas.

- Então levanta, você está atrasada e me atrasando! - reclamou, voltando para a penteadeira e trançando o cabelo.

Espiei o relógio sobre o criado-mudo e corri para o banheiro, tomando um banho rápido e vestindo a primeira roupa que sobre a cadeira da escrivaninha. Por sorte era um vestido que tinha May tinha colocado ali no dia anterior. Expulsei Nay da penteadeira e passei apenas uma escova no cabelo, escutando-a estalar a língua.

- Você é bonita, mas podia se arrumar um pouco né? - reclamou.

- E você é bonita, mas podia não se arrumar um pouco né? - retruquei, jogando a mochila sobre o ombro.

- Você é ridícula, Kate - ela riu.

Eu segui para a escada, erguendo a mão no ar e lhe mostrando o dedo médio, ganhando um pontapé em resposta. Eu teria minha vingança. Minha irmã e eu tínhamos dois anos de diferença, e enquanto eu estava no segundo ano da faculdade, ela estava no último do ensino médio. Ou seja, tudo o que ela sabia fazer era estudar e pirar com os vestibulares. E eu, por convivência, pirava junto.

A escola de Nayara ficava no caminho para minha faculdade, então lhe dava carona. Era mais uma desculpa para não perder a hora do que preocupação. Little Town era uma cidade pequena e pacata e totalmente esquecida pelo resto do mundo. Fazia sucesso no inverno, com suas bebidas quentes e de sabores variados. O chocolate quente com bala de caramelo e limão era o meu favorito, e o carro chefe das bebidas do "Café da Tia May". Nayara e eu a ajudávamos depois das aulas, atendendo aos clientes e às vezes cobrindo o caixa.

Como estávamos no verão, o movimento era pequeno e a cidade estava imersa em sua pacata tranquilidade de todo dia. Depois de deixar minha irmã na escola e seguir para a faculdade, encontrei-me com Laura e Michelle no estacionamento. Obviamente as duas aspirantes a jornalista já sabiam de todas as fofocas, inclusive uma que chamou bastante a minha atenção.

- Você precisava ver, Kate, achei que ele iria colocar fogo na lixeira e a jogar em alguém! -

- Ah, Laura, que exagero! Só porque o cara tem umas tatuagens estranhas... - riu Michelle, fazendo uma careta.

- Não é verdade, ele é estranho mesmo. Além disso, meu namorado tem tatuagens! - defendeu-se a loira.

- Espera um pouco... desde quando você tem namorado? - perguntei, interrompendo a discussão.

- Ah, verdade, ainda não te contei - Laura começou a rir, suas bochechas se tingindo de rosa - Eu conheci um cara enquanto estava viajando... ele é de outro Estado, mas continuamos conversando desde que voltei - ela falou.

- Isso não é namorar... ele te pediu em namoro? - falou Michelle, já prevendo o drama que teria de aguentar.

- Não, claro que não... estamos juntos há um mês!

- Então ele não é seu namorado... Ai Laura, pare de ficar inventando namorado! - esbravejou a outra loira.

Laura ia responder, quando esbarrou em alguém. Ajudando-a a levantar, olhei para a pessoa que estava parada a nossa frente. Ele tinha cabelos negros e longos, presos em um rabo de cavalo escorrido. Seus olhos castanhos estavam fixos em mim, deixando-me desconfortável.

- Desculpe, ela é meio distraída - falei, puxando Laura e Michelle para longe.

- Pelo amor, esse cara me dá arrepios, e não é no bom sentido - falei quando já estávamos a uma certa distância.

- Eu sei! Era isso o que eu estava falando - exclamou Laura.

- Meninas, já está no horário de entrarmos, vamos - chamou Michelle.

Felizmente nossas salas eram próximas e seguimos juntas até a sala da turma de jornalismo, onde me despedi delas, e segui para a minha sala, da turma de direito. Segui para o meu lugar de costume, próximo a janela, de onde eu podia ver todo o jardim da universidade. Na minha opinião, era o melhor lugar da sala. Eu não gostava de sentar nem no fundo, nem na frente, então ocupava uma carteira no meio da fileira, logo espalhando minhas coisas e dormindo enquanto o professor não chegava.

A aula começou logo e para a minha surpresa, o cara estranho do corredor estava na minha sala, sentado atrás de mim, mais precisamente. Passei todo o primeiro período com a sensação de estar sendo vigiada. E o segundo período também, e os dias seguintes até o fim de semana.

Aproveitei o domingo para tomar um sol minhas amigas, e estávamos na praça - Nayara junto - quando avistamos o rapaz estranho da faculdade. Ele estava acompanhado de uma garota, cujo braço era marcado por delicadas tatuagens tribais. A garota parecia ter a nossa idade e tinha cabelos tão negros e escorridos quanto os dele, bem como a mesma pele bronzeada. Descobri que o nome do rapaz era Giovanni, mas todos na sala o chamavam de Gio. Ele me parecia assustador, mas era sempre muito amigável com todos na classe.

- Eu soube que ele bateu em um cara da faculdade ontem, é verdade isso, Kate? - perguntou Laura.

- Giovanni? Pelo o que vi dele essa semana, ele tem essa cara de emburrado, mas não faz mal a uma mosca... deve ser história - falei, ainda observando os dois, que agora compravam sorvete.

A garota virou para nossa direção de repente e eu abaixei a cabeça, fingindo ver algo no celular. As meninas continuaram conversando, como se nada tivesse acontecido.

- Eles estão vindo para cá - escutei Nayara falar.

- O que fazemos? - perguntou Michelle, enrolando um de seus cachos.

- Nada. Ele não morde... eu acho - respondi em um sussurro apressado, escutando os passos na grama.

- Oi meninas! - falou uma voz feminina.

Olhei para trás, para a garota de cabelos negros, e sorri.

- Olá! Olá, Giovanni - cumprimentei. Ele apenas acenou.

- Eu soube que você está na mesma turma que meu irmão - ela comentou, agachando.

- Sim, estou...

- Você poderia ficar de olho nele por mim? - ela pediu.

- Alexa! - exclamou o rapaz, corando.

- Desculpe, não me apresentei! - exclamou a morena - Eu sou Alexa, irmã mais velha do Giovanni - falou, esticando a mão, a qual apertei.

- Sou Kate e essas é minha irmã Nayara. Michelle e Laura também são da universidade, mas estudam jornalismo - apresentei.

- Interessante! Eu sou médica - ela sorriu. - Mas voltando ao assunto, esse é o primeiro ano do meu irmãozinho aqui em Little Town, e ele é um pouco tímido e eu estou tentando fazê-lo sair um pouco de casa no fim de semana - ela falou.

- Ah... o pessoa aqui é muito amigável - comentou Michelle.

- Sim, são. Mas não adianta nada se não andar com as pessoas certas. Soube que vocês três são bem conhecidas na universidade, talvez possam apresenta-lo a alguns amigos seus - ela pediu.

Olhei para Michelle e Laura. De onde ela havia tirado isso?

- Posso deixa-lo a seus cuidados, então, Kate?

Ela não me deu chances de responder, levantando e cochichando algo no ouvindo do irmão, que estava mais vermelho que um tomate. Isso me fez rir. Com um beijo na bochecha ela se despediu dele, acenando para nós e se afastando rapidamente. E então um silêncio estranho recaiu sobre nós. Sem saber ao certo o que fazer, levantei e estiquei a mão para Giovanni.

- Acho que não tivemos a oportunidade de nos conhecer essa semana - falei.

- Não... - ele coçou a cabeça. Eu ainda o achava estranho, mas ele me parecia inofensivo agindo assim tão constrangido.

- Mais tarde uns amigos irão até a minha casa, passe lá você também... umas 19h está bom - falei.

- Ah, sim, claro... Estarei lá.

- Kate, precisamos comprar as coisas - falou Nayara.

- Ah sim, já vou. Bom, até mais tarde Giovanni!

Segui com as garotas, que estavam se mordendo por dentro para falar tudo o que pensavam. Eu sabia que boa coisa não seria, e assim que estávamos longe o suficiente, elas me atacaram com uma enxurrada de "por que você convidou ele?". Até mesmo Nayara perguntou.

- Ai, ai, como vocês são neuróticas! Deem uma chance a ele!

- Desde quando você virou defensora dos pobres e oprimidos? - perguntou Laura, rindo.

- Ah, me errem vocês. Só fiquei com pena... Ela o fez passar a maior vergonha ali atrás, seria muito constrangedor se simplesmente o mandássemos embora - me defendi.

As meninas riram, e passaram o resto do dia me importunando com isso. Quando chegou a noite e as pessoas começaram a chegar, me peguei ansiosa pensando se ele viria ou não. Respirei um pouco aliviada quando atendi a porta e era Giovanni. Ele parecia bastante desconfortável no meio de toda aquela gente, sem saber muito bem para onde ir ou o que fazer com o copo em suas mãos, que continuava a encher com bebida.

Em um dado momento, já tarde da noite, reparei que ele havia desaparecido, encontrando-o sozinho na varanda atrás da casa. Estava sentado no degrau da escada que levava ao nosso pequeno jardim. Deixei a porta aberta e pigarreei, para que percebesse minha presença.

- Cansou do barulho? - perguntei quando ele olhou para trás.

- Um pouco - encolheu os ombros.

- Você não é muito de festas, não é? - ousei me aproximar. Ele suspirou.

- Não sou sociável como Alexa.

- Eu percebi - falei abafando uma risada.

Por alguns minutos, ficamos apenas em silêncio. Eu não sabia o que falar e aparentemente nem ele. Era uma situação um pouco constrangedora, mas eu até que estava feliz com o silêncio. Ficar pensando todo o tempo no que falar é desgastante. Escutei passos e logo tia May apareceu na porta da cozinha para a varanda.

- Kate, já está tarde... o que ele está fazendo aqui? - perguntou surpresa ao ver Giovanni, que havia se levantado.

- Boa noite - ele cumprimentou.

- O que você faz aqui, rapaz? - tia May parecia brava.

- Tia, você o conhece? - perguntei confusa.

- Kate, vá para dentro e avise seus amigos que a festa acabou.

- Mas tia May, são...

- Kate, agora - ela me interrompeu.

Tia May fuzilava Giovanni com os olhos, e fiquei um tanto quanto preocupada em sair e deixa-lo sozinho com ela. Giovanni, por outro lado, sustentava uma expressão indecifrável, olhando diretamente para tia May. Aquilo estava muito estranho. Eu segui para dentro e avisei aos colegas remanescente sobre a decisão de tia May, desculpando-me pela situação. Que constrangedor.

Pouco depois, quando eu e Nayara estávamos terminando de recolher os copos e latinhas da sala, tia May apareceu. Ela parecia transtornada e nos mandou para nosso quarto, alegando que terminaria a limpeza e que já estava tarde. Olhei pra Nayara, que apenas encolheu os ombros e me puxou para cima.

- O que aconteceu, Kate?

- Eu não sei, eu estava conversando com Giovanni na varanda e ela chegou e ficou brava por ele estar lá - respondi.

- Tia May conhece ele?

- Acho que sim - respondi incerta.

Nos dias seguintes tia May parecia ainda preocupada com alguma coisa, mesmo dizendo estar tudo bem todas as vezes que perguntávamos o que estava errado. Em uma noite, quando fiquei até tarde estudando e desci para pegar um copo de água na cozinha, escutei tia May e Benjamin conversando na sala. Aproveitei que não haviam me escutado e fiquei escondida na virada da escada, escutando.

- Benji, o que faremos? - tia May parecia preocupada.

- Fique calma, Mayara. Vamos pensar em algo... talvez estejam aqui apenas pela segurança delas... - dizia Benjamin.

- São Guardiões, Benji! Eles vão leva-las, eu sei que vão.

Tia May soluçava e sua voz estava trêmula. Escutei passos e depois o som das almofadas do sofá sendo amassadas. Um longo silêncio se estendeu, e eu apenas esperei.

- Eu não posso me mudar novamente... Kate está na faculdade e Nayara está em sua terceira escola... não tenho mais como esconde-las outra vez - tia May parecia chorar.

- Nós daremos um jeito, May... Eles não levarão as meninas.

- Você sabe, eles estão bastante errados sobre isso - escutei uma voz estranha, assustando-me.

Eu virei rápido, desequilibrando-me no degrau em que estava. Eu teria caído se o rapaz a minha frente não tivesse me puxado, apertando um pano sobre minha boca e meu nariz. Tentei desvencilhar-me de seu abraço, mas meu corpo rapidamente ficou mole e minha visão turva, e então eu perdi a consciência.