Vazio
Ginny não queria mais ver. O mundo era feito de sangue, terror e injustiças, tantas que se tornava impossível vê-las. Tantas que se tornava doloroso vê-las. Abrir os olhos a cada manhã era a certeza de que nada teria melhorado, e que seus piores pesadelos infantis poderiam simplesmente cruzar os portões e vir lhe confrontar. Não havia ninguém, nada de seguro, nada que pudesse dar esperanças.
Nada que pudesse lhe tirar de todo aquele horror.
Achou, então, que talvez se se concentrasse nas coisas pequenas, as grandes se tornariam mais toleráveis, mais invisíveis a seus olhos. Pensava que não conseguiria sobreviver muito tempo se tivesse que temer por tudo e todos, se cada sombra, cada voz metálica fizesse seu sangue gelar. Era como se o tempo tivesse voltado, um redemoinho de páginas viradas para o passado, levando-a de volta à época em que era apenas a pequena, tola, e aflita Ginny.
Em sua imensa solidão acompanhada do próprio demônio, em seu isolamento e em suas fraquezas derramadas em páginas cheias de detalhes sobre sua vida vazia.
E lhe parecia que, por algum tempo, de fato houvera vida e cor, calor e pessoas e desejos concedidos. Mas já não poderia saber, pois tudo era voltou a ser cinzento, assustador e frio e solidão.
De volta à vida vazia.
Então observava as pequenas coisas. Um gesto, um olhar, uma voz soando diferente. Qualquer coisa que parecesse dar cores à uma vida cujo único tom que existia era justamente o que ela não desejava ver.
Um dia, então, ao se concentrar nos detalhes, ela viu novamente cores e tons. Pálidos e quase pastéis, um tanto cinzentos, mas certamente nada vazios. Havia ali alguém, e calor e desejos conflituosos, como houvera nela um dia tanto tempo atrás. Era quase invisível, mas Ginny se transformara em uma perita nos detalhes. Um desespero igual ao seu em uma voz aflita, um medo igual ao seu em traços tão finos e firmes quanto os seus eram redondos e frágeis. Uma luz pálida e murcha que combinava tão bem com sua própria falta de fé, um contraste tão grande com a exuberância de vida que lhe movera por algum tempo antes que se dissolvesse no vazio.
Não procurou mais, pois não poderia usar voz ou gestos que pudessem explicar aquela semelhança -- aquela diferença. Era tudo produto de um medo tão intenso que não conseguiam sequer procurar conforto. Era tudo um sonho bom dentro de um pesadelo interminável. Alguns poucos olhares guardados, sem expressão, foi tudo que precisou.
Mas, quando ele não podia vê-la, ela observava atentamente cada pequena coisa. Cada respiração cuidadosamente controlada para não demonstrar receio. A forma de mover a cabeça assentindo como se concordasse enquanto os olhos mostravam discordância. Os tremores que passavam naquela mão tão fina e marcada ao apontar a varinha, como se parte de si não aprovasse o feitiço prestes a ser lançado. Pequenas coisas, pequenas provas de que ainda existia resistência em algum lugar, por mais escondido que fosse. Por mais impotente que fosse.
Já não estava sozinha, já não era vazia em sua aflita solidão. E mesmo sendo só detalhes, para Ginny, era o suficiente. E, sem procurar, encontrou. E, sem tentar, conseguiu. E, sem saber, teve. E, sem esperar, o mundo novamente se explodiu em cores e sons, em desejos e realizações, em alegria e aflição.
E agora, o único medo era o do vazio.
