Rostos e Aeroportos
Severo secou as lágrimas que escorriam por seu rosto e levantou-se da cama. Mais um dia começava e sabia que deveria esconder seus sentimentos de todos. Dos alunos, dos colegas professores, dos colegas comensais da morte. Sentia-se triste, como sempre se sentia. Sentia-se vazio, mas isso já era normal para ele. "Hoje faz dez anos", pensou. "Dez anos de sua ausência. Parece um século.".
Foi ao banheiro e fez sua higiene matinal. Voltou ao quarto e despiu seu pijama, pegando roupas negras de dentro de seu armário. A partir daquele momento, devia esvaziar sua mente de emoções. Com aquela roupa, não existia Severo, apenas Snape, o frio, calculista, irônico, sarcástico, assassino, professor, Snape. Colocar aquelas roupas sobre seu corpo era como colocar uma armadura, que o protegia de agressões externas, mas cobrava alto preço: extraía sua humanidade.
Vou
vestir a minha sombra,
Preciso
me proteger.
Sim, essas eram as palavras certas. Sombra, o seu lado mais sombrio e negro, para protege-lo dos outros. Protege-lo de pessoas como Tiago Potter, como Voldemort, protege-lo de si mesmo. Protege-lo das lembranças que agora vinham, sem controle. Lilian, com seus cabelos acaju, correndo pelo pátio de Hogwarts. O sorriso de Lilian. Os olhos de Lílian. E então a dor o atingiu fortemente.
Eu
sempre manejei bem as palavras
Mas
agora não sei o que dizer.
Lembrou-se de sua última discussão. Da forma como não soube responder, encontrar uma desculpa, mesmo que fosse uma mentira, para encobrir as anteriores...
Sua
voz tão calma e fria,
Penetrou
tão lentamente,
Congelou
o meu orgulho,
Embaçou
a minha mente.
Quantas vezes engoliu o seu orgulho e pediu desculpas, implorou por perdão? Seu orgulho sem sentido, é claro, mas ainda assim, o pouco orgulho que lhe ensinaram a ter. Era isso que havia herdado... Uma maldição que estragou a sua vida...
Saiu do quarto e foi tomar café com os outros professores. Não importava para onde olhava, sempre imaginava Lílian por ali. De repente, lembrou-se de uma estrofe de uma música trouxa que ela sempre cantarolava. Uma música triste, mas que no momento, combinava com sua mente desatenta.
Vejo
o seu rosto nos aeroportos,
Nas
ruas, cinemas, nos jornais,
Como continuava? Não lembrava. Fechou os olhos por um momento e visualizou sua Lílian ali, explicando-lhe o que era aeroportos e cinemas. Apesar de seu pai ser trouxa, ele nunca cuidou de Severo. Apenas lembrava-se das brigas. Moveu ligeiramente a cabeça, afastando seu pai dali de dentro. "Dez anos..." repetiu sua mente. "E se eu não tivesse dito aquilo?", volta e meia se perguntava. Mas, para sua infelicidade, o tempo não voltava apenas porque ele tinha dúvidas, porque ele assim queria.
Passou o dia tentando se concentrar, mas nada funcionava. Nada tinha aquele mesmo gosto de quando se quer fazer algo. Tirou alguns pontos da casa rival, apenas para ninguém desconfiar. Sentia-se fraco, sentia-se doente. E então, seu pesadelo. O filho dela. Não havia como fugir. Ele viria para aquela masmorra, traria aqueles olhos verdes, iguais aos dela. E ele teria que demonstrar nada mais que sua frieza e inumanidade.
O garoto entrou. Olhou-o com aquelas esmeraldas que chamavam de olhos, mas para Severo (e até mesmo para Snape), eram um bálsamo. Uma parte dela vivia ali. Uma parte dela ele pudera salvar. Olhou de relance para aqueles olhos e se lembrou do resto da música.
Vejo
seus olhos nos faróis do meu carro,
À
noite eles sempre brilham mais.
Por um momento, perguntou-se se o compositor o conhecia, ou se aquela havia sido mais uma maldosa brincadeira do destino.
