Era um casal maltrapilho com três crianças horríveis. Tinha pavor somente de olhar. Meu primeiro pensamento foi que deviam ser sangues-ruins na ruína pelas ruas. Mas olhei para meu filho e me lembrei do que meu pai acostumou-se a me dizer, como se adiantasse em essa altura da minha vida:
- Sempre serão sangues-ruins. Mas agora, é melhor considerá-los como se fossem iguais a nós. Eles tiveram a oportunidade de rebaterem tudo o que pensamos deles, e não o fizeram. Fechar a boca e guardar nossas convicções para nós mesmos é o máximo que devemos fazer, para que fiquemos quites.
Cada um expressa gratidão da maneira que pode. A nossa é essa. E para Scorpius, assim como Astoria também concordou, não devo passar meu ímpeto de sair de perto de um sangue-ruim, por exemplo. Eles não são trouxas, então são bruxos e pronto. Recitando esse pensamento lógico para mim toda porcaria de dia, fui capaz de transmitir isso a meu filho. Com os anos, quase me acostumei. Para meu pai é mais difícil, e eu entendo perfeitamente.
Uma das crianças, um garoto muito pequeno, olhou para Scorpius. E eles pareceram se comunicar com o olhar. Além de não gostar disso, comecei a pensar em algum motivo. Obviamente, a julgar pela cara dos quatro, fome.
- Pai, acho que aquele menino tá mal!
- Por que acha isso? Por que se importa?
- Porque ele tá olhando pra mim, e eu senti pena dele!
Revirei os olhos. Ele percebeu, com certeza, meu desprezo.
- São sangues-ruins, como os primos falam?
- Não sei, e não quero saber.
Ele estava perturbado. Sentir pena? Crianças de 6 anos podem ter imaginação demais. Peguei em seu braço e o guiei para outra loja, acabar com aquilo. Não podia alimentar todos os pobres do mundo.
- Olha, pai, o menino caiu! Ele tá mal, vamos lá ajudar!
- Por que raios você se importa com isso agora, Scorpius?
- Porque ele é igual a mim.
- Nunca!
- Eu sou uma criança, não sou? Então ele é igual a mim. Só nisso, mas é. Dá alguma coisa pra ele, pai!
Nunca vou superar psicologicamente a fase dos porquês. Agora em vez de perguntar, ele me responde. E ainda me dá ordens. Nos sonhos dele, mas dá.
Reanimar uma criança... Podia ser com chocolate. Tinha energia o bastante. Fui na DedosdeMel, e comprei uma barra grande de chocolate. Naquele frio, um Incendio seria suficiente para, dentro de uma caneca – que tive de comprar também, diga-se de passagem –, derretê-lo e fingir que era chocolate quente. Não era, mas não dizem por aí que a intenção é o que vale?
Levei a grande caneca e o chocolate derretido para a mulher, que me olhou com espanto. Scorpius quis ajudar a erguer a cabeça do menino e fazê-lo beber. Ele ainda teve o cuidado de ficar assoprando o chocolate, porém o frio certamente deu conta disso.
Ele não saiu de lá enquanto aquele garoto não acordou. Os pais me agradeceram, Scorpius correu de repente enquanto não estava de olho nele, e voltou com comida. Passado meu choque e o deles, terminei de receber os agradecimentos e fomos embora.
- Ok, agora pode me falar: por que você fez isso?
- Porque deu vontade. Não quero ver ninguém mal assim. São bruxos, como a gente. Foi você e a mamãe que me ensinaram isso daí. Não era pra ajudar?
- Era, quer dizer, não sei. Tanta gente jogada por aí. Mas você fez certo. Tem que fazer o que tiver vontade.
Eu não sabia o que sentir.
- Tá bravo comigo, pai?
Estava orgulhoso. Ele era e seria bem melhor do que eu posso ser. Até em pensamento.
- Não. Sinto orgulho de você ter sido generoso mesmo com quem não conhece. Mas por favor, não me vá sair por aí dando dinheiro pra qualquer pobre ou sangue-ruim que encontrar na rua, hein? Sua mãe e eu te criamos para ser dono de sua vida. Ajude os outros se quiser, mas pense em você primeiro.
- Tá bom – respondeu ele, pensativo demais para um menininho.
Ainda iria sofrer com alguma greve se ele reproduzisse essa nossa conversa para a mãe...
- Pense em você primeiro, mas segundo nos outros. A vida foi e é boa conosco, você pode ser bom para as pessoas também. Só não exagere.
E eu nunca mais fui capaz de tomar chocolate quente da mesma maneira. Lembra meu filho, um tipo de orgulho que tentei perder, e um que ganhei. Estava sendo sincero em uma coisa: pela primeira vez, eu não queria saber quem eles eram.
Nota: A shortfic foi feita para o I Challenge de Drabbles Canon do Fórum Not as a Last Resort, onde o requisito principal era incluir uma bebida na história. Só a Ily e o pessoal do fórum para me fazer escrever de novo, e tão rápido!
