Música é uma das coisas com maior capacidade de afetar a vida das pessoas. Quantos casais não lembram da primeira música que ouviram juntos ou da trilha sonora de seu primeiro beijo? Depois a mesma música se repete diversas vezes enquanto estão juntos, propositalmente ou não, e trocar a marcha nupcial por ela até parece uma boa idéia.
O problema é quando as pessoas afetadas não queriam ser afetadas, mas são. E quando não adianta tampar as orelhas com força ou tentar pensar em outra coisa, porque o som continua entrando e remexendo o que deu tanto trabalho para apaziguar, bem lá dentro.
"Desligue isso."
"Por quê? Você costumava gostar dessa música. Até demais..." Retruca Toya, cometendo o erro de discutir ao invés de obedecer a um pedido tão direto. Mas Sakura não deu atenção ao seu discurso de como ele tinha que escutar aquela porcaria de música milhares de vezes em um mesmo dia... Afinal ela não ouvira tantas vezes assim, mesmo. Era só seu irmão sendo irritante, como sempre.
E por mais que tenha sido rápida ao desligar ela mesma o rádio, já que o tempo para fazer Toya cooperar provavelmente seria superior ao da duração da música, era tarde demais. Ela já estava pensando naquilo de novo. Naquilo que tinha prometido que não ia mais pensar, e mentido.
"Eu gosto dessa música."
"Não sei como consegue ouvir um negócio desses."
"Para com isso, eu não falo assim das suas músicas."
"Nenhuma das minhas músicas é chata como essa."
"Eu só gosto dela, está bem? É problema meu..."
"Quem tem que te beijar ouvindo uma porcaria dessas sou eu, logo também é problema meu."
"Bem lá no fundo você gosta, que eu sei."
"Você não sabe de nada..."
"Sak-chan, minha querida... Podemos por favor trocar de música?"
"Não."
"Estamos ouvindo essa droga o dia todo."
"Não é droga, não ouvimos tanto assim, e eu preciso dela."
"Precisa dela mais do que de mim?"
"Não seja ridículo! São coisas completamente diferentes."
"Depois da quadragésima nona vez, ela nem parece mais tão ruim assim."
"Viu só? É só questão de se acostumar..."
"Lavagem Cerebral, isso sim."
"Eu não estou te obrigando a nada, você sabe disso..."
"Agora quem está sendo ridícula é você."
Sakura não gostava de lembrar os diálogos. Repassava-os milhares de vezes e depois vinham as imagens, os gostos, os cheiros...
E tudo por causa de uma música idiota. Talvez a solução fosse se conformar com a idéia de que nunca mais poderia ouvir o rádio como uma pessoa normal. Ou talvez todas as pessoas sentissem dor com alguma música em especial mas nunca admitissem. E continuavam ouvindo, com medo de serem tachadas de pessoas não-normais.
Antes de tudo ela lembrava-se da voz dele, do que ele dizia, do que eles ouviam. As pessoas sempre faziam um estardalhaço quanto a não esquecer sorrisos e olhos, mas isso são só imagens. Não que elas sejam fáceis de esquecer, mas os sons são muito piores. Você não pode impedir uma música de tocar no rádio ou uma pessoa de dizer exatamente a mesma frase que, dita em outro momento, fez todos os outros sons sumirem.
Sakura sempre achou seus sentimentos uma coisa muito pessoal, então nunca soube o grau de normalidade da sua fixação por música. Tudo o que ela sabia era que tratava-se de algo muito mais forte do que ela, e tudo que ela podia torcer era para, com o tempo, se sentir menos miserável.
