Luzes, sussurros, vultos, tudo parecia cercar-lhe. O corpo estava demasiado cansado para mover-se, as palavras não saiam através de sua garganta seca pela ausência de água nos últimos dias, os suspiros eram quase imperceptíveis e quando tentou respirar mais profundamente descobriu que doía. Tudo doía, uma dor alucinante em suas costelas, em suas pernas, em seu pescoço, através de todo seu corpo tão machucado. Marcas roxas e vermelhas de diversas intensidades eram distribuídas ao longo da pele que certa vez fora imaculada.
Ela queria falar, queria algo mais que um gemido escapasse por seus lábios secos e inchados, mas esse era o único som que era capaz de reproduzir, um gemido e seus olhos encheram-se de lágrimas quando tentou inutilmente mover-se, era como se o próprio diabo estivesse lhe castigando.
— Você precisa se acalmar — Uma voz sussurrou e logo o dono dela preencheu seus olhos com seu rosto feminino, os cabelos loiros caindo sobre seu rosto enquanto com olhar apiedado lhe analisava. — Você vai ficar bem, capitã — A médica disse, era necessário, sua profissão era passar confiança a seu paciente, jamais tirá-las, mas sabia que a capitã Raydor dificilmente seria a mesma.
O peito da capitã inflou, era a emoção atravessando seu corpo, era a realidade da situação e as lembranças recaindo sobre seus ombros com o peso de bigornas e por alguns segundos ela teve certeza de que essas lágrimas iriam lhe sufocar quando finalmente algumas das muitas recordações tornaram-se mais presentes e ainda assim turvas.
Haviam braços firmes segurando seu corpo e ela não sabia a quem pertencia até olhar no rosto, era familiar, mas ela não queria pensar que era ele quem estava tirando-lhe daquele lugar, meio desnuda se não contasse pelos machucados que cobriam sua pele como vestes. E a última coisa que recordava-se antes de desmaiar era de ouvir sussurros que diziam-lhe que tudo ficaria bem.
Nada ficaria bem! Não seria tola para acreditar nas palavras da médica, nada jamais voltaria a ficar bem. Nunca esteve, não realmente, mas agora as coisas ficariam piores, ela ficaria pior.
E as ondas de intensidade que caíam sobre si pareceram piores quando a realidade da situação parecia mais cruel, todos a viram, todos aqueles olhares e ela só os podia imaginar rindo, rindo de sua desgraça e dor, ela tivera o que merecera.
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E a angústia gritava no peito dos presentes no corredor do hospital, olhares perdidos nas paredes brancas onde a luz parecia cegar os olhos angustiados, onde o cheiro de álcool parecia ser a última coisa a incomodar-lhes. Perdidos no vazio, no ponteiro do relógio que parecia mais lento que o normal, nas horas que insistiam em não passar, no tempo que morria tão mais lentamente.
Nenhuma palavra, nem mesmo um sussurro ou comentário, todos com expectativas silenciosas. Nunca houvera silêncio quando o time estava unido, sempre repletos de sarcasmos de Provenza, risadas de todos, momentos de discussão, mas pela primeira vez estava tudo quieto e era quase enlouquecedor continuar em meio àquela quietude devastadora.
— Familiar de Sharon Raydor? — A enfermeira perguntou audivelmente para os únicos presentes na sala de espera e seu cenho franziu-se quando todos ali colocaram-se de pé.
— Somos o time dela — Brenda Johnson disse e por alguns instantes alguns olhos recaíram sobre seu rosto, a mulher não fazia parte da divisão de crimes graves, ainda pertencia a FID.
— Entendo — A mulher colocou de lado o prontuário e suspirou — A Capitã Raydor.
— Sharon — Mike Tao disse, interrompendo a mulher, ali quem estava como paciente não era a capitã, era a mulher.
— Me desculpe, tenente, a paciente Sharon Raydor, está consideravelmente estável, mesmo seu estado ainda sendo grave, ela precisa passar por alguns exames para que eu posso dizer concretamente a gravidade do ataque.
'Ataque', 'Sequestro', 'Monstruosidade', todas essas palavras pareciam encaixarem-se tão bem naquela situação.
— Quando ela poderá receber alguma visita? — Brenda indagou, era uma pergunta que todos se faziam, quando poderiam vê-la? Quando poderiam dizer que sentiam muito?
— Talvez, se não houver nenhuma mudança drástica no quadro dela, talvez após os exames. Mas, Chefe Johnson, eu gostaria de falar com você em particular.
— Claro — Assentiu e colocou-se diante do time — Eu estarei de volta logo — Sussurrou.
Os olhos acompanharam as duas mulheres caminhando através do corredor vazio e os homens voltaram a sentar-se. Olhando para as próprias mãos ou fazendo como Provenza e mexendo nervosamente a gravata. Havia muitas coisas que o tenente mais velho sentia prazer em admitir e uma delas eram seus sentimentos de profundo ódio pela Capitã Raydor, mas sentia-se corroído pela angústia com a ausência de notícias sobre o estado da mesma.
— Ela ficará bem — Gabriel murmurou e atraiu a atenção de todos —, falando sério, gente, ela é a capitã Raydor, ela vai ficar bem, lembra-se Provenza, você sempre disse que haveriam poucas coisas a resistirem a uma tragédia mundial, além das baratas e você mesmo, e uma delas é Sharon Raydor, ela não deixará um bastardo miserável lhe destruir.
Ela era tão forte quando Provenza, em um de seus momentos de ironia, dizia? Eles não sabiam ao certo. Não conheciam a mulher, apenas a capitã do livro de regras e arrisca, eles não conheciam a parte humana e não sabiam se sem a máscara ela poderia sobreviver.
— Você está bem, tenente? — Júlio sussurrou apenas para que o tenente de cabelos grisalhos e olhos atordoados pudesse lhe ouvir.
— Sim, eu estou bem, Júlio, apenas um pouco cansado, todos estamos.
Todos estavam, fisicamente, psicologicamente esgotados, mas ele ainda tinha a imagem dela viva em sua mente. Fora a primeira pessoa a vê-la, a tira-la de onde estava em seus braços e sabia que aquela imagem continuaria se repetindo por muitos dias.
— Eu vou buscar café para todos, será uma noite longa.
Ele levantou-se após sua desculpa que buscou avidamente. Precisava caminhar, encarar aquela paredes brancas naquele corredor intensamente iluminado apenas lhe causaria mais agonia.
Não acreditava que uma semana depois da discussão mais intensa com aquela mulher estaria em um corredor de hospital aguardando informações sobre ela. Talvez não fosse preocupação, fosse apenas o peso em sua consciência, mas sabia que dificilmente se perdoaria por não ter quebrado todos os ossos do rosto do desgraçado, se ele não tivesse fugido Andy sabia que naquele instante estaria sendo interrogado pela FID.
Apenas quando seus pensamentos encontraram um pouco de calmaria ele regressou à sala de espera, distribuindo os cafés entre os detetives, que tinham em seus semblantes o nítido cansaço expresso. E em meio a solidão da sala de espera Will Pope teve sua presença notada, seus olhos azuis fitavam o chão enquanto caminhava, com as mãos dentro dos bolsos de suas calças.
— Onde está chefe Johnson? — Indagou enquanto olhava para os lados buscando o rosto feminino.
— Estou aqui. — A voz atenuada da chefe divisão de crimes graves preencheu a sala enquanto caminhava na direção do pequeno grupo de homens.
— Me atrasei porque estava resolvendo alguma burocracias com a FID e decidimos que esta divisão cuidará do caso de Sharon Raydor — As palavras que saíram por sua boca foram cautelosamente ditas enquanto analisava os rostos ao seu redor —. Por isso eu vim informar-lhes pessoalmente, olhando-os nos olhos, que não trataremos a capitã Raydor com indiferença e quer todas as desavenças sejam deixadas de lado, esqueçam que ela é a capitã e recordem-se que aqui ela está unicamente na condição de vítima, cujo agressor escapou por nossos dedos. Antes de ser a capitã a quem vocês atribuíram nomes peculiares, ela é uma mulher e uma vítima e é assim que a verão.
— Você não precisa dizer como fazer nosso trabalho — Provenza quem interveio no momento em que Andy pretendia falar algo. — Sabemos como tratar uma vítima, em compensação você não, sempre sentado com sua bunda pálida naquela maldita cadeira resolvendo problemas políticos, então poupe-nos de sermão, já passamos por demasiadas coisas hoje
— Eu acho que Chefe Pope quis dizer que — Brenda colocou-se entre os homens —, devemos deixar, desde momento em diante, todos os nossos conceitos sobre Sharon Raydor.
— Sabemos disso, chefe — Andy disse, esforçando-se para minimizar o assunto — e faremos tudo que está ao nosso alcance.
— Nosso trabalho — Júlio concluiu colocando-se ao lado do homem de cabelos grisalhos.
— Onde está Raydor? — Pope indagou virando-se para encarar Brenda, algo no rosto da chefe da divisão dizia-lhe que ela tinha algo a lhe contar.
— Ela está inconsciente e está fazendo alguns exames para determinar o estado, o que aconteceu com ela nesta última semana.
— Entendo. Eu gostaria que você e seu time fossem os únicos a falar com ela, a FID que preservar a imagem da capitã Raydor e essa notícia não pode escapar por nossos dedos até que estejamos autorizados a dizer aos filhos dela sobre a atual situação da mãe.
— E por que as os filhos dela ainda não sabem? — Gabriel questionou.
— Porque não sabemos o que a capitã quer, ela não mantém contato direto com os filhos há algum tempo e se não podemos arriscar ir contra seus desejos, manteremos este caso em sigilo por hora.
— Jason Doyler é um homem perigoso e está foragido, o faremos quanto a isso? — A voz de Andy soou cortante e repleta de indignação.
— Há patrulhas em busca dele, não pode ter ido tão longe, ele partiu apenas alguns minutos antes do esquadrão chegar naquela casa.
— Ficaria surpreso com o que um homem pode fazer com cinco minutos de vantagem. — Seus olhos castanhos tornaram-se vagos, cinco minutos, haviam perdido o bastardo por cinco malditos minutos.
— Mas agora não tem como voltar naqueles cinco minutos, tenente, precisamos pensar em como pegar aquele desgraçado e em lidar com a Capitã Raydor. Quando ela acordar tentaremos falar com ela.
— Obrigada, chefe Johnson, e — virou-se novamente antes de partir — todos vão continuar aqui?
— Somos um time, Chefe, obviamente todos ficarão aqui.
— Desejo a todos uma boa noite.
E tão silenciosamente como encontrou ele saiu, sendo seguido pelos olhos do time da divisão de crimes graves.
'Idiota', Andy quis murmurar mas as palavras mantiveram-se em sua cabeça. A quem ele achava que estava referindo-se, há algum tipo de cruel sem mínima consideração por seres humanos? Andy sabia, assim como toda a divisão, que teria que deixar de lado tudo que achava da Capitã Raydor, todos os momentos de desavenças que tiveram ao longo dos meses desde que foram forçados a trabalhar juntos em um mesmo espaço, teria que esquecer a discussão da semana anterior, ela era antes de qualquer coisa humana e depois disso era mulher, alguém que, mesmo que nunca transparecesse, tinha sentimentos.
E no final das contas, no final de tudo aquilo, era seu trabalho.
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Os machucados haviam tornando-se mais claros no rosto de Sharon, os tons mais intensos como se colorissem uma tela em branco, uma tela assustadora, Brenda teria que admitir. Seguindo a Chefe vieram Andy e Provenza e os tenentes esforçaram-se para não demonstrar qualquer sentimento em seus semblantes, mas era impossível permanecer impassível olhando para aquela imagem, ela estava quebrada por fora e não podiam medir ou ver o dano por dentro. Os cortes em sua pele eram imensamente mais profundos dentro de sua alma e esse fato era inegável, eram danos impossíveis de curar.
— Capitã — Brenda chamou enquanto adentrou o quarto, empurrando silenciosamente a porta — Sharon.
— Ela não pode falar agora — A enfermeira disse ao lado da chefe, com os braços cruzados sobre o busto enquanto seus olhos permaneciam sobre a mulher repleta de machucados. — A mandíbula a impossibilita, mas acredito que com os remédios dentro de algumas horas ela conseguirá dizer algumas palavras sem sentir incômodo.
A mulher deixou dentro da sala os dois tenentes e a chefe.
— Certo, nós precisamos do nosso próprio relatório sobre a análise dos ferimentos antes de pedir que Buzz entre com a câmera, eu quero que escrevam todos os ferimentos que encontrarem mas não toquem-na.
A mulher sobre a cama era como resquícios do que havia restado da capitã Raydor, o rosto inchado não recordava o que ela era, o que havia sido uma semana antes, os ferimentos distribuídos ao longo da face seriam os mais fáceis de cicatrizarem se comparados a todo o resto, aos ferimentos infligidos em sua perna por algo que Andy prejulgou ser algum canivete.
Os olhos cansados de Provenza analisavam as feridas e anotavam-nas com o máximo de descrição no pequeno bloco de notas entre suas mãos, Andy parecia mais distraídos em se permitir vagar os olhos sobre elas, analisar os pontos onde ela havia sido mais machucada e sua mente voava para longe, imaginando como cada machucado ali havia sido feito e seu estômago contorcia-se ao pensar.
O que ele havia usado para marcá-la? Como havia feito cada machucado? Ela havia resistido e o machucado também? Havia lutado e por isso ele a machucou? Ou talvez ela não tenha gritado como ele desejou ou ficado em silêncio, mesmo que a primeira opção lhe parecesse mais próxima de algo que ela faria em uma daquelas situações. Havia dito algo que o incentivou? Quais foram as ordens de cada uma delas e os dias que foram feitas? E a única resposta para todos os questionamentos era o silêncio.
E enquanto seus olhos rolavam sobre ela, ele viu o par de olhos verdes abrindo-se lentamente. Ela estava acordando.
