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O ÚLTIMO ANO SAXÃO
Meu nome é Uhtred, Uhtred de Bebbanburg. Sou saxão, um saxão do norte. E ainda não me vinguei do tio que me usurpou o castelo e as posses. Mas essa parte da história vem mais adiante. Agora quero falar sobre Eoferwic, uma grande cidade, governada por poderosos ealdormen. Eles são os mantenedores dos vilarejos e aldeias nos arredores de seus castelos; eles governavam com mãos de ferro. Essa parte da minha viagem em busca de poder para Alfredo me levou para o norte. Depois de derrotarmos Kjartan e Ragnar ganhar o castelo de Dunholm, eu segui adiante, sempre ao norte, em busca de aliados para Wessex.
Eoferwic tinha um homem, um ealdorman que já servira a Alfredo, mas que tornara ao lar para livrá-lo das invasões dos pagãos. Não era um senhor autoritário nem mesmo tirano, praticava o bem acima de tudo, apesar de não ter um gênio muito fácil de lidar, mas era severo, bastante severo. Ainda assim era amado e constantemente procurado por seus bons conselhos. Era um grande defensor saxão e, em geral, era a ele que outros ealdormen - e até mesmo reis - recorriam quando necessitavam de ajuda. Tinha 37 anos, fios grisalhos já apareciam em sua cabeça, mas quando lutava, lutava como um jovem. Aeldred Hodenc de Eoferwic era seu nome e ele era privilegiado. Em todos os sentidos, mas em especial, em relação às mulheres. Aeldred já havia se casado cinco vezes, com cinco belas mulheres, nas quais havia feito doze filhos. A última esposa, porém, ainda não tinha lhe dado filhos, mas era a mais bela dentre todas e a que ele mais amava. Em parte, ela não ter tido filhos era culpa de Aeldred, porque ele não queria dividi-la com ninguém, e não queria que seu corpo se transformasse em algo feio. Ela se chamava Grisilla e tinha um encanto particular, além de sua beleza: a voz. Padres vinham pedir a ela que cantasse na igreja, porque assim se enchia a grande sala para ouvir a voz de Grisilla, e depois, a palavra do Senhor. Os padres amavam Grisilla, porque era uma mulher ligada a Deus e vivia a vida para ajudar os necessitados, sobretudo os que a igreja recolhia.
Aeldred conhecera Grisilla desde que ela era uma infante e pediu ao pai dela que não a casasse porque cobiçava a menina. Por fim, acabou casando-se com Grisilla quando ela completou 17 anos, dois meses depois de sua quarta esposa morrer.
Quando cheguei a Eoferwic com a guarda doméstica de Alfredo não esperei encontrar ninguém que pusesse a prova o que eu sentia por Gisela, mas admito ter ficado impressionado com a candura da esposa de Aeldred, e Alfredo também; ela nos recebeu de forma calorosa e amigável, sem jamais ter-nos visto uma vez sequer na vida. Seu sorriso verdadeiro e sua voluntariedade ultrapassavam os limites que qualquer outra mulher poderia ter. era agradável estar com ela. Era maravilhoso fitá-la. Não deveria ter mais de que 20 anos, e mesmo assim parecia uma menina. Mas era mulher também porque governava a casa com braço firme, apesar de eu jamais vê-la ralhar com um criado ou escravo.
Não era o caso em Eoferwic, mas eu era um tipo de arauto de Alfredo. Servia como mensageiro e como executor: quando ele precisava exterminar alguém da face da terra, delegava a mim a missão, mas não assumia a ordem dada, fazia com que todos pensassem que eu ultrapassava os limites da violência por conta própria, desobedecendo a suas ordens de "conversar" com o inimigo e atacando-o sem piedade. E depois, como se não bastasse mentir descaradamente, Alfredo me punia, me punia como se eu realmente fosse o culpado de tudo. E a punição sempre me deixava mais amargo e com mais ódio de Alfredo.
Minha primeira mulher fugiu para um convento por causa de Alfredo. Não nego que me fez um favor, porque a devoção dela por Deus era tamanha que me revirava as entranhas. Fora uma mulher chorona, apesar de bonita; fora maçante, apesar de ter sido admirável; fora suplicante, apesar de já ter me feito feliz, e fora seguida a vida toda por padres que lhe minavam a alma constantemente contra mim, porque eu era um saxão pagão, porque eu gostava da guerra, de sangue e suor, e os padres... os padres gostavam de uma única coisa que a guerra trazia: a riqueza.
Tive outras duas mulheres, Iseult, a rainha feiticeira - longa história -, e uma mulher que já fora freira, depois, estuprada pelos dinamarqueses, se tornou minha amante, e quando sua vingança se fez, tornou à casa de Deus para a ele pertencer. Em Iseult ainda penso, mas da outra até o nome esqueci.
Na época dessa história eu estava vivendo feliz com Gisela, irmã de Guthred, rei escolhido pelos padres para governar a Nortúmbria, minha terra. Minha terra. Mas eu gostava de Guthred, que era jovem e poderoso, era certo que ouvia demais aos padres e bispos, mas mesmo assim, não dispensava uma batalha se necessário. Em Eoferwic, em nosso exército, no entanto, não havia mulheres, porque era uma viagem rápida que exigia muito dos cavalos e cavaleiros. Era uma viagem para conseguir homens, o que certamente Aeldred nos daria, se ele próprio não viesse a lutar conosco.
Aeldred não deixou Eoferwic, mas nos deu mil e quinhentos homens e com eles partimos o mais rápido possível para Wessex. Na fronteira, porém, chegou a notícia de que Eoferwic tinha sido vítima de uma ofensiva e que a maior parte da cidade fora queimada. Aeldred tinha conseguido escapar, fugindo para as florestas fechadas da região, onde os dinamarqueses não entravam porque temiam os espíritos. Era triste pensar que o homem que acabara de nos ajudar fora atacado tão brutalmente, mas havia a probabilidade de que ele se juntasse a Alfredo agora, e se assim o fizesse, Alfredo o recompensaria muito bem.
Nota do Autor
O ÚLTIMO ANO SAXÃO está diretamente ligado aos seis anos que Aeldred viveu com a quinta esposa.
