Camille era a única filha de Antoine Bretodeau, pobre pintor de retratos e paisagens bucólicas que emigrou da França por motivos que nunca ficaram exatamente claros. Alguns falavam em briga de honra, outros diziam que ele ofendera o chefe da região e tivera de fugir e havia também quem dissesse que a mãe de Camille fugira com outro e ele não aguentava mais ser conhecido na antiga vizinhança como corno, mas tudo isso eram apenas boatos. O certo é que ele chegou à região em um dia nublado de agosto, trazendo pela mão a menina pequena e tímida. Não podia ter escolhido data mais curiosa, já que o céu tinha o mesmo tom dos argutos olhos de pai e filha.

A renda do lar era constituída pelo trabalho de Antoine como barista na única estalagem de onde moravam. A cidadezinha não seria nem um pouco importante no condado se não fosse a mais perto de Covert Fields, propriedade da família Holmes. Poderosos, possuíam parte das terras da região, onde criavam ovinos. Eram conhecidos por suas antigas raízes bretãs e o forte caráter. O jovem Mr. Richard Holmes, primogênito e único homem dos três filhos do Barão, não fugia à regra. Era um rapaz muito gentil, simpático e justo. Seria um bom senhor quando a hora chegasse, pensavam todos.

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Camille também pensava assim, de tanto ouvir Marge falar. Marge era a esposa do dono da estalagem e pianista nas horas vagas. Se afeiçoou rápido à menininha quieta que não brincava com as outras crianças e mal falava inglês; ensinou-a tudo o que sabia de piano e lamentou não poder ensinar-lhe mais, já que Camille tinha um talento concreto que Marge nunca antes conhecera.

Esse talento seria desenvolvido quando Camille, já com onze anos, conhecesse o jovem Mr. Holmes e sua noiva. Os dois foram jantar no estabelecimento, coisa relativamente corriqueira para o casal naqueles tempos, e Marge sofrera há poucas semanas o acidente que a impediria de tocar pelo resto de sua vida. Logo, a brilhante e obstinada aprendiz caminhou ao instrumento quando os clientes pediram por música com uma confiança incompatível à sua personalidade. A capacidade nata suplantava as dificuldades do treinamento amador e transparecia, inconfundível, em cada nota criada por Camille. Porque era assim que parecia aos ouvintes, que Camille criava de improviso uma música febril, melancólica e dançante, o que era muito em parte verdade. Não foi só a mão quebrada que impediu Marge retornar ao seu posto sedimentado; a atmosfera mágica criada pela pequena francesa de cabelos escuros era sedutora demais para permitir que qualquer um que a escutasse passasse a se contentar com menos.

Dorothy, a futura Lady Holmes, foi das que mais se encantou com o surpreendente recital e não dormiu a noite inteira, seduzida por uma ideia que dava voltasem sua mente. Queria Camille perto de si, pois, com ela tocando exclusivamente para a dama, seus bailes e saraus seriam imbatíveis.

Decidida a educá-la, foi à casa de Antoine, convencê-lo de que isso seria o melhor para a sua filha. Tal tarefa não pôde sequer ser chamada de custosa, já que o pai, também artista, porém sem talento natural, percebeu com a argúcia característica de sua família que Camille merecia mais, muito mais do que ele jamais poderia lhe dar.

Ela concordou em partir da casa do pai, em ter aulas de etiqueta, em ser praticamente uma sombra de Dorothy, concordou com tudo quando descobriu que o magnífico pianoforte de cauda da família seria apenas seu. O que a cabecinha frívola de Dorothy jamais poderia imaginar é que aquela garotinha magricela, alta demais, de nariz comprido e olhos penetrantes jamais poderia ser a sombra de alguém, ainda mais da fútil dama que nunca abrira um livro em sua vida.

Inicialmente, o plano era só desenvolver ao máximo as potencialidades musicais da menina e mantê-la por perto como um belo pássaro exótico a ser exibido nas festas, só que Richard, já casado com Dorothy, se afeiçoou à menina e percebeu que, além de uma transbordante alma artística, Camille também possuía surpreendentes capacidades intelectuais. Ele, que sempre fora inteligentíssimo e cercado apenas por pessoas vazias, teve uma grata surpresa ao encontrar alguém com quem fosse possível travar animadas conversas. Ela aprendia rápido e sua curiosidade parecia infinita, assim, logo conseguiam debater política, economia e literatura quase no mesmo nível, ainda que o Barão fosse oito anos mais velho.

Dorothy não se importava com nada disso, já que Camille, além de muito nova, era tida como muito feia e a nova baronesa era daquelas jovens fartas, belas e loiras que têm o mundo a seus pés.

A única surpresa que todos tiveram foi quando a jovem pianista avisou um belo dia que ia embora de Covert Fields e da cidade, pois estava de casamento marcado com Brian O'Riley, um aldeão tão pobre quanto desconhecido aos Holmes. Camille partiu com a primeira neve do ano, deixando também a cidade onde passara boa parte de sua infância.

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Antoine tornou-se ranzinza e cada vez mais recluso. Não era tão velho quanto aparentava, mas parecia ter perdido todo e qualquer gosto pela vida. Ver Camille em suas folgas e ouvi-la tocar suas composições eram as únicas coisas que alegravam o velho francês.

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Infelizmente, a magia de Camille não atingiu seu marido, que considerava suas peças sedutoras um exemplo da devassidão que a corroia por dentro. Para limpá-la de sua condição demoníaca e seus delírios de grandeza, Brian a doutrinava com palavras, castigos e violência. Tapava seu rosto quando a possuía sem nenhum carinho e, certa vez, deu-lhe um soco tão violento que o nariz ficou para sempre meio torto.

Nem quando ela descobriu-se grávida ele a poupou. Dizia que aquele filho não mudava nada e que, se ela o perdesse, era porque a criança tinha uma alma tão horrenda quanto a dela. A cada pontapé do pai, o bebê chutava de volta. Talvez seja por isso que o menino nasceu gritando tão alto, com tanta raiva nos olhos de chumbo arregalados e sem nenhum interesse manifesto por nenhum tipo de música.

Camille queria chamá-lo com o nome do avô ou de Leonard (seu pintor preferido, dos livros de arte que Richard lhe mostrara, sempre fora Da Vinci), mas Brian sequer consultou sua opinião e deu-lhe um nome que celebrava a ascendência céltica de ambos os pais: Mycroft. O menino não era esguio nem longilíneo como a mãe, em verdade, a única coisa que realmente parecia ter herdado da família Bretodeau eram os intensos olhos cinzentos e a afiada inteligência. Mycroft aprendeu a falar um pouco depois do tempo, mas praticamente sem os erros que caracterizam a fala infantil. Parecia que tudo o que o menino decidia fazer, calculava precisamente o que seria feito e executava com exatidão.

A mãe o observava crescer assustada, pois, apesar de herdar o intelecto dos Bretodeau, seu coração se assemelhava mais ao buraco negro paterno.

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A família O'Riley não tinha residência fixa, já que Brian jogava compulsivamente, fazendo muitas dívidas e inimigos, o que os fazia ter que se mudar às pressas com frequência. Camille temia que a convivência excessiva com o pai acabasse por destruir o caráter do filho, suspeitas que não eram de todo infundadas, já que a ex-pianista uma vez flagrou-o torturando um passarinho com a maior impassividade nos fundos da casa. Questionado, o menino de apenas quatro anos respondeu da forma mais amoral possível que queria saber se era verdade que todos os bichos evitavam a dor. Camille o encarou, horrorizada e, se perguntando internamente quais outros bichos Mycroft já utilizara como experimento, ia começar a falar quando Brian a interrompeu, sorridente.

Há algum tempo Brian estava sempre sorrindo e quase não tocava mais em Camille. Naquele dia, ele não só achou as "experiências científicas" do filho engraçadíssimas, como disse a Camille gentilmente que deixasse o menino brincar em paz e a beijou. Mrs. O'Riley ficou chocada, não conseguia sequer recordar a última vez que Brian se dignara a beijá-la. Ainda estava em choque na hora de dormir quando ele se aproximou dela sem violência e a possuiu. Camille não resistia ou sequer compreendia absolutamente nada. O que estava acontecendo?

Acordou tarde no dia seguinte, confusa. Por que Brian não a acordara ao sair para trabalhar, como sempre? Achou estranho, mas o marido estivera tão estranho nos últimos tempos que nem estava mais tão surpresa. Encontrou Mycroft perambulando sozinho pelo quintal da casa, estava sujo de frutas (seu café-da-manhã, já que a mãe não estava acordada para preparar um) e completamente faminto. Camille sentia-se culpada, queria ser uma mãe melhor. Foi preparar o almoço e descobriu que a farinha estava no fim, pediria a Mycroft que fosse comprar mais. Ao abrir a lata onde guardavam o dinheiro da casa, tudo começou a fazer sentido. Estava vazia. Em pânico, com seu cérebro ágil juntando as peças em velocidade febril, descobriu, revirando os baús de roupa e a casa, que Brian não deixara nenhuma peça para trás, nem as roupas que jaziam no varal. Todo aquele comportamento estranho era, na verdade, uma despedida.

Os credores não tardaram a chegar, junto com as notícias (aparentemente, a filha e o dinheiro do padeiro também desapareceram naquela noite), e, como Camille era proibida de ir à cidade e não tinha amigos, ninguém teve pena dela ou do menininho. Tiraram-lhe tudo como forma de quitar as dívidas, até mesmo a casa foi tomada.

Foi assim que Camille e Mycroft, sem nada além da roupa do corpo, começaram a longa caminhada de volta à cidade onde o velho Antoine definhava.

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Ela bateu à porta da velha casa do pai em um dia de chuva forte, onde o céu mais uma vez se misturava aos Bretodeau, maltrapilha e faminta, trazendo pela mão um Mycroft mais calado do que nunca.

Antoine quis chorar de tristeza ao ver em que se transformara sua amada filha e amaldiçoou o dia em que se deixou enganar pela inicial gentileza de O'Riley. Camille nem pensava mais no casamento, tudo o que queria era um prato de comida e um banho.

Uma vez satisfeita, limpa, confortável e sozinha, ela finalmente pôde chorar desde o fatídico dia em que ganhara a alforria com o preço de perder tudo. Por outro lado, estava livre, estava em casa e poderia criar Mycroft sem a influência do monstro que cometera a estupidez de escolher como marido.

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No dia seguinte à sua chegada, Antoine avisou-a que não tinha mais emprego e só com seus quadros e a pequena horta do fundo de sua casa não seria possível alimentar os três. Camille sorriu e garantiu ao pai que não havia motivos para preocupação, ela mesma arranjaria um emprego.

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A estalagem de Marge, que agora assumira os negócios sozinha, já que seu marido sucumbira à gota, não tinha mais piano algum, ela o vendera porque não tinha esperanças de que a jovem francesa voltasse um dia. Camille pediu qualquer emprego, qualquer coisa, e a estalajadeira comentou que não acharia nada na cidadezinha, mas que Sir Holmes buscava uma governanta para cuidar de sua menininha.

Alexandra era dois anos mais velha do que Mycroft, nascera pouco depois da partida de Camille e sua chegada ao mundo foi a razão para o falecimento de Lady Holmes. Não era exatamente incomum, mas nem por isso menos triste. Camille chegou a Covert Fields com um vestido velho e meio puído que sobrara na casa de seu pai e que agora sobrava em seu corpo consideravelmente mais magro e infeliz. Tinha medo de que ele não se lembrasse dela, que não quisesse contratar aquela estrangeira humilhada para figurar em sua casa, ao lado de seu pequeno tesouro. As criadas a reconheceram e ela pôde ouvir os buchichos que a acompanharam enquanto caminhava até o salão.

Sir Holmes a aguardava, sentado em uma poltrona de espaldar alto que o deixava ainda mais majestoso. Camille tinha quase sua altura, o que sempre permitiu que olhasse bem naqueles olhos azuis aguados, da cor dos dias ensolarados de inverno. Ele levantou-se quando ela entrou, sorriu demonstrando que a reconhecia e apontou uma poltrona em frente à dele, de espaldar tão alto quanto. Camille sentou-se, ajeitando os amassados da fazenda barata de seu vestido e olhando firme para as mãos brancas de dedos longos e finos, a única coisa que ela achava bonita em seu corpo. Richard a observou por alguns segundos em silêncio e, em seguida, tratou dos termos de serviço de forma rápida e eficiente, como era de seu costume.

"Bretodeau?" Ela já estava a dois passos da porta quando ele a chamou pelo nome de solteira, surpreendendo-a. "Não desapareça dessa vez, certo?"

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Trabalhou na casa dos Holmes por um mês sem incidentes. Alexandra era uma menina viva, esperta e muito doce que se afeiçoou rapidamente à sua nova governanta. Mycroft não estava exatamente feliz com a situação, mas ao menos parecia tirar algum proveito da convivência com Sir Holmes e sua filha, aprendendo boas maneiras e tornando-se menos intratável.

Os problemas começaram em uma noite quente de maio, em que Camille não conseguia dormir e decidiu sentar-se um pouco em um banquinho do jardim dos fundos para arejar-se. Sua vela, que era a única luz até então, logo recebeu a companhia de outra luz. Sir Holmes aproximava-se e trazia uma vela nas mãos também. Ambos encararam-se, cada um surpreso com a insônia do outro, e Richard sorriu. Ele era sempre o primeiro a fazê-lo.

Havia algo de mágico naquela noite abafada. A umidade do ar fez com que os cabelos negros de Camille ficassem particularmente cheios, com ondas interessantes, e deixou seus perfumes ainda mais intensos. Conversaram sobre tudo e sobre nada. Sobre inutilidades mais importantes do que os negócios mais importantes, sobre seus filhos. Em algum momento, quando uma nuvem moveu-se e permitiu que a lua cheia brilhasse com força, Camille descobriu-se beijada com uma intensidade que nunca antes experimentara e, ao invés de resistir, correspondeu o melhor que pôde. Beijaram-se por minutos a fio e, quando Camille afastou-se para respirar, Richard beijou outras partes de seu rosto que não a boca, beijou suas mãos e beijou seu cabelo. Ela estava tão confusa com tanta atenção, com tanto afeto, que esperava que tudo acabasse em violência ou indiferença a qualquer minuto. As atenções de Richard aqueciam e apertavam seu coração ao mesmo tempo, dando-lhe uma felicidade cheia de horror. Apertou a medo as costas de seu roupão quando ele a abraçou, soluçando convulsivamente em seu peito. Ele não perguntou o que a afligia, nunca perguntaria, embora nunca a impedisse de contar o que quisesse quando quisesse.

"Não fuja de mim nunca mais, Camille." Mais um soluço e um estremecimento. Ele a amava, ela sempre soube que ele a amava e foi por isso mesmo que aceitou o pedido de casamento de Brian, porque o amava tão intensamente quanto amava o piano e, se continuasse naquela casa, destruiriam a felicidade de Dorothy e a deles mesmos. "Fique comigo. Para sempre."

"Sim." Ficaria para sempre e para nunca mais. Agora que Dorothy estava morta e que Alexandra precisava de uma mãe, Camille faria o que ele lhe pedisse, o que ele quisesse. Estava disposta mesmo a ser sua amante, a continuar oficialmente como governanta e ter momentos furtivos como aquele para o resto da vida.

Beijaram-se de novo. Ela poderia ficar ali para sempre, naquele jardim, naqueles braços, naqueles lábios. Richard corria suas mãos pelo cabelo tão cheio, tão cheiroso, e torcia seus dedos em mechas grossas. Em algum momento impreciso, estavam deitados no banco, embolados. Camille arfou sob o peso dele quando seus lábios encontraram os mamilos tesos dela e quase gritou quando os dedos grossos dele começaram a explorar sua área íntima. Richard era bem mais sensível às reações de sua parceira do que o fora Brian e, pela primeira vez em sua vida, Camille não sentiu dor na penetração. Na verdade, teve seu primeiro orgasmo após minutos de penetração em um ritmo calmo e cuidadoso.

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Ela nunca esperaria pelo que veio a seguir. Depois de dois dias de doçura e amores sublimes e secretos no jardinzinho dos fundos, Richard recebeu uma carta de Londres e precisou partir com urgência, deixando para Camille algumas libras para que se sustentasse até que ele retornasse à cidadezinha com sua pequena Alexandra.

Esperaria. Para sempre, se fosse necessário.

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O problema é que sua barriga começou a crescer significativamente – embora nunca tenha ficado realmente grande – e logo todos na cidade sabiam que Camille estava grávida. Felizmente, a gravidez fora tomada como mais um resto do marido cruel que a abandonara. Infelizmente, Richard nunca poderia ter certeza de que a criança era realmente dele.

O menino nasceu na madrugada fria de um Dia de Reis, sem feri-la ao sair como Mycroft fizera antes dele. Era um bebê pequeninho, rolicinho e calmo. Não tinha nada da raiva do irmão mais velho em seus choros e mamava sem machucá-la. Camille tinha mais certeza do que nunca de que era um prematuro e que era filho de Richard. Mas Richard não voltava e o bebê precisava ser batizado para aplacar os rumores sobre o que havia acontecido na Mansão Holmes, afinal, outros começaram a supor que o bebê fosse prematuro também e, se Richard nunca voltasse ou demorasse demais a voltar, Camille precisaria que a cidade tivesse algum respeito por ela para que pudesse alimentar os dois meninos. Antoine quem teve a ideia de batizar o menino com o nome de seu sogro, Sherlock O'Riley, e convidá-lo a ser padrinho dele, de modo a substituir a ausência de um pai.

Sherlock tinha os mesmos olhos cinzentos dos Bretodeau e tornou-se um bebê calmo e curioso, que amava qualquer tipo de música ou sonoridade. Explorava com as mãos e a boca tudo o que aparecesse perto dele, sempre olhando as pessoas com um olhar sério e indagador. Não que fosse antissocial como o fora Mycroft, era um bebê pacífico, embora não fosse risonho.

E Camille esperava. Esperaria sempre.

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Insetos zumbiam no jardim umedecido com as constantes chuvas de verão e uma torta assava no forno dos Bretodeau quando Brian apareceu. Mycroft, que ajudava o avô a limpar a pequena horta, foi quem primeiro viu seu pai e correu para abraçá-lo com a felicidade e o afeto que reservava exclusivamente para ele. Camille ninava o bebê quando ouviu os gritos de felicidade de seu primogênito e sentiu seu coração apertar; se Mycroft estava feliz, nada de bom poderia ter acontecido. Colocou Sherlock no berço e saiu do quarto que dividia com os meninos para a janela do corredor do segundo andar da casa e viu seu marido com o filho no colo, falando com um carrancudo Antoine Bretodeau.

Horror é a palavra que melhor se encaixa no que ela sentiu naquele momento. Sequer conseguiu pensar em fazer qualquer coisa para escapar, ficando congelada à janela até que Brian a viu e acenou a ela, sorrindo como se nada houvesse acontecido. Trocou mais algumas palavras com Antoine e Camille viu que o semblante de ambos os homens se fechava. De repente, Brian colocou Mycroft no chão e o menino correu para dentro de casa.

Ela ainda estava no último patamar da escada quando Mycroft chegou ao primeiro degrau.

"O que está acontecendo?" Ele a olhou com raiva, como se ela fosse a culpada de tudo. Um estremecimento a assolou ao pensar que esse retorno de Brian tiraria dela todo o terreno que vinha conquistando no coração de Mycroft.

"O velho não quer deixar que meu pai tenha de volta o que é dele."

"Não fale assim do seu avô. Você gosta dele, por que fala assim?"

"Gosto de meu pai e meu avô quer mandá-lo embora! Vocês todos querem mandá-lo embora! Por isso não gosto de vocês!" Antes que ele pudesse escapar, Camille segurou-o pelos braços, forçando-o a olhá-la nos olhos.

"Pois saiba que eu e o seu avô amamos você. Por isso nunca batemos em você. Acha que bater é sinal de amor? Acha que seu pai entortou o meu nariz e arrancou um dente seu a socos porque nos ama? Acha que ele nos abandonou porque nos ama? Que voltou porque nos ama? Sei que é só uma criança, mas é a criança mais inteligente que conheço, Mycroft. Veja, por favor, veja como suas palavras são absurdas." Com essas palavras, o menino parou de se debater e ficou olhando-a com a respiração furiosa das crianças que não têm argumentos para justificar o que sentem. "Eu te amo, Mycroft." Reiterou Camille. "E te daria um pai melhor, se eu pudesse. Sinto muito, mas nós não vamos voltar a viver esse pesadelo. Eu não vou deixar dessa vez."

"Eu vou te odiar para sempre. Você, Sir Holmes, Alexandra, vovô Antoine e o bebê. Todos vocês." Depois de receber essa praga, Camille o soltou. Deixaria para lidar depois com o ódio de Mycroft.

Andou até a janela da cozinha e observou, apreensiva, pai e marido discutirem. Brian, alto, forte e ameaçador, se inclinava sobre o idoso pintor francês, a quem as forças já haviam abandonado os músculos há muito. Mas Antoine não parecia assustado, encarando-o com severidade e pronunciando as palavras em um tom inaudível a Camille.

"ELA É MINHA MULHER!" Antoine disse alguma coisa e Brian voltou a gritar. "VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE FAZER ISSO, VELHO! A LEI ESTÁ DO MEU LADO!" Camille apertou a madeira da janela com força, com medo, sem saber o que esperar. Seu pai falou mais alguma coisa e Brian retrucou em tom mais baixo, cuspindo no chão em seguida e se virando para ir embora.

Antoine entrou em casa pela porta dos fundos, pálido, e a trancou imediatamente. Praticamente despencou em uma cadeira e pediu, sem ar, que Camille trancasse a porta da frente e, na volta, trouxesse uma dose de gim para ele. Ela o fez, correndo, morrendo de medo que Brian tentasse entrar a força a qualquer momento e a arrastasse embora.

"O que faremos, papa?" Ele apertou o pequeno copo com força nas mãos e a encarou no fundo daqueles olhos de mesma cor dos seus por alguns instantes, muito sério. Depois, soltou um suspiro e acariciou o rosto de sua amada filha.

"Esperaremos por um milagre, petite."

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Por quatro dias o milagre não veio e apenas Antoine saía de casa para comprar víveres, enquanto Camille e as crianças o esperavam com as portas trancadas. Mycroft estava ficando intratável de novo, exigindo ver o pai algumas vezes por dia e as longas conversas que Camille tinha com ele pareciam fazer pouco ou nenhum efeito. Sherlock parecia ter percebido a mudança de humor daqueles que amava e passava longos minutos olhando a mãe com um semblante que lembrava a piedade.

No terceiro dia, Camille cortou os cachos dourados do bebê pela primeira vez. Ao contrário de Mycroft, que já nascera com os cabelos negros, os de Sherlock escureceriam e alisariam com o tempo. Aquele cabelo dourado era, para Camille, mais uma prova de que Sherlock não era filho de O'Riley. No momento, ela não sabia se esse conhecimento a apavorava mais do que a deixava feliz ou não.

No quinto dia veio o milagre. Richard e Alexandra retornaram à sua morada na região e Marge veio lhe contar o fato pessoalmente, trazendo outras notícias da vila e se oferecendo para levar algum bilhete a ele. A velha senhora olhava Camille e o bebê como se tudo estivesse muito óbvio e só alguém realmente tolo precisasse de explicações. Mas, felizmente, ela não parecia julgar ou desgostar de Camille por isso. Por mais que a lei estivesse ao lado de Brian, todo o vilarejo se compadecia dos Bretodeau e os apoiava em algum grau, por isso Antoine podia sair na rua sem medo de o cunhado ou algum de seus amigos o atacarem.

Camille aceitou a oferta de Marge e redigiu um bilhete curto, contundente, colocando junto do papel, no envelopinho, um cacho de Sherlock que cortara no dia anterior.

"Meu marido voltou. Ele quer o que é de seu direito, quer que eu vá com ele. Temo não só pela minha vida. Além de Mycroft, há mais uma criança a proteger. Te espero, C."

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Brian foi morto naquela mesma noite em uma briga de bar. Não que o fato fosse inesperado por todos, mas a conveniência de sua morte trouxe a toda a aldeia a certeza de que era melhor deixar os Bretodeau em paz.

Menos de dois meses depois do incidente, Camille se tornava a nova Lady Holmes e Richard adotava os dois meninos. Pela lei, apenas um filho legítimo teria direito a resgatar o morgadio das propriedades e o título de Sir Holmes; como Sherlock era seu filho natural, Richard pretendia passar em vida as propriedades para ele. A ideia não foi tomada a cabo porque verificaram, com o passar dos anos, que Alexandra tinha muito mais a personalidade de senhora feudal do que seu meio-irmão, portanto, Richard passou sem problemas os títulos de propriedades à filha quando esta alçou a maioridade, além das terras herdadas da família da mãe, com a condição de que ela sempre velasse pela saúde financeira dos irmãos.

Se tratando de Sherlock, tal cláusula nunca precisaria ter sido redigida, pois Alex mostrou-se completamente encantada com o irmãozinho ao conhecê-lo e ele sempre fora seu brinquedinho favorito. Tornou-se tão amiga de Camille que, depois de cinco anos de convivência, chamava-a de mãe com a alegria típica de uma menina que nunca tivera uma para si. A relação de Mycroft com os Holmes era mais delicada, já que ele guardava recordações embotadas do pai e um pouco de seu caráter torpe. Não que não gostasse de Richard, apenas quanto mais gostava do padrasto, mais crescia seu ódio por ele. O cúmulo da vingança póstuma de Brian foi quando Mycroft contou ao irmão caçula que ele não se chamara sempre "Sherlock Holmes", que eles tinham tido outro pai, que ele tinha sido batizado em homenagem a um carpinteiro, que não tinham sido sempre ricos e acrescentou, cruel, que Richard só fingia gostar deles para agradar à mãe. Sherlock tinha doze anos.

Depois disso, as relações tornaram-se estranhas na casa dos Holmes e Sherlock nunca mais pôde olhar seu pai sem uma ponta de ironia ou amargura no olhar, mesmo depois que Sir Richard teve uma conversa de homem para homem com ele. Respondeu-lhe todas as perguntas com franqueza e, ao ser perguntado se era filho de Brian ou não, obteve a seguinte resposta:

"Em um ponto seu irmão tem razão. Eu nunca me importei se foi das minhas relações ou das relações dele que você foi concebido, Sherlock. O que sempre me importou foi que você é filho de Camille, que você tem os olhos dela e que você herdou a mesma alma musical dela. Mesmo que fosse a imagem esculpida de Brian O'Riley e não gostasse de música eu amaria você, Sherlock, porque você saiu das entranhas dela. Mas isso foi só o começo, isso foi só quando você era bebê. Todo o amor e companheirismo mútuo que temos, filho, é fruto de nossos esforços, de nossa relação. Assim como o violino. A música você herdou dela, mas o violino nós escolhemos juntos." E, como sempre, Richard sorriu primeiro, fazendo com que Sherlock sorrisse de volta.

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Camille morreu em uma noite ventosa e cinzenta de inverno na cama que compartilhara por vinte e quatro anos com seu esposo, fazendo com que Sherlock abandonasse de vez os estudos erráticos em Cambridge, indo morar em Londres, e com que Alexandra, seu marido e os dois filhos, se deslocassem de sua casa em uma cidade relativamente próxima para morar com Sir Holmes pelo resto de suas vidas. Mycroft não apareceu no enterro. A mãe estava morta, não era como se ela fosse perceber sua ausência ou como se ele quisesse se aproximar ainda mais dos Holmes ao superarem juntos o luto.

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O resto é parte de nossa outra história.