O Cavaleiro de duas faces
CAPÍTULO 1
Prólogo
Kingsclere, 1077
Fora uma atitude inocente, a tentativa de uma criança confortar outra, de fazer parar o choro sentido pela perda de um tesouro.
A coisa começara com um desafio infantil:
— Aposto que você não é capaz de andar naquele tronco caído em cima do riacho! Não vai ter coragem nem de tentar. Claro, afinal é uma menina!
E terminara com Bella caindo na água gelada, quando voltava, toda orgulhosa, depois de ter andado até a outra extremidade do tronco. Ele tivera de ir salvá-la porque seu vestido enganchara em um galho submerso e os dois, encharcados, tinham ficado trêmulos de frio ao vento inclemente de abril.
Batendo os dentes e deixando uma trilha molhada, tinham se refugiado no depósito anexo à estrebaria, onde havia arreios e mantas extras para os palafréns, cavalos enormes, de parada, que eram o orgulho de Kingsclere. Enxugavam-se com a mesma manta quando Bella descobrira que perdera sua adorada fita azul e começara a chorar.
Claro que havia muitas fitas e enfeites de cabelos nas gavetas de sua penteadeira, mas perdera justo a fita que Edward lhe trouxera de Londres, dizendo que a comprara porque combinava com a cor dos cabelos dela. A fita fora levada pela água gelada do riacho e Bella tinha certeza que nunca mais teria outra igual. Além disso, sabia que a mãe ia bater nela por ter molhado e enlameado o vestido novo. Para completar conseguira um bom rasgão na saia!
Esses pensamentos haviam aumentado a angústia da menina que se pusera a soluçar perdidamente e Edward a abraçara, num gesto instintivo.
A pele macia e fria dela tocou a dele, pois tinham tirado a roupa para se enxugar e aquecer-se, antes de enfrentar a ira da mãe dela. Totalmente alheio ao significado sensual dos quase inexistentes seios infantis de Bella contra seu peito liso de garoto, ele fechou os olhos e, afagando-a, murmurou palavras de consolo, algumas em francês normando, outras em inglês.
O perfume dos cabelos dela misturou-se com o cheiro de cavalos, de feno e de couro — agradável para um menino de nove anos, prestes a ir embora para a casa do Conquistador em pessoa, a fim de ser educado por ele.
Bella acalmou-se com os carinhos de Edward, mas quando ouviu que ele lhe prometia uma porção de fitas azuis, reagiu:
— Mas, Edward, você só irá para Londres quando for se apresentar na corte real, vai voltar para cá quando já for grande! — e o choro recomeçou.
— Bella — murmurou ele, junto ao ouvido dela — vou vir aqui de vez em quando. Aquilo não é uma cadeia, sabe? E se o presente for mais importante para você do que quem presenteia — acrescentou, recuando um pouco para ela ver que estava brincando —, eu mando pelo correio…
— Edward! — Ela corou ao pensar que o amigo que adorava podia achá-la interesseira. — Vou mostrar que você é o mais importante!
Abraçou-o com força e encostou a boca na dele, como vira a criada Mary fazer com o pastor de ovelhas que namorava.
O corpo não percebia ainda a natureza apaixonada que se revelaria nela com a adolescência, mas seu peito contra o dele lhe dava uma sensação estranhamente gostosa e o entusiasmo com que Edward retribuiu o beijo a fez encostar-se mais nele.
— Vou sentir tanta saudade de você, Ed…
— Eu também, Bella… Não sabia quanto, até este momento. Me espere! Então, enquanto trocavam promessas infantis, a porta do depósito abriu-se um pouquinho, depois escancarou-se com violência, indo bater contra a parede. A repentina claridade cegou-os. Edward sentiu-se agarrado por um dos ombros e empurrado para a porta, enquanto lorde Carslile se imobilizava, pasmo, ao reconhecer na trêmula figurinha infantil a filha do seu confiante castelão, Charles Swan de Sherborne. Com um rugido, deu um tapa na cabeça do filho:
— Menino louco! É assim que pensa se tornar um cavaleiro? Desonrando a filha do meu vassalo?
— Não, senhor — respondeu o menino, rezando para sua voz não tremer e as lágrimas não lhe saltarem dos olhos. Raramente tinha motivo para temer o pai, pois o conde de Kingsclere educava o filho com mão firme, mas amorosa. Percebeu que o lorde entendera errado o que se passava e acrescentou:
— Eu só estava consolando Bella. Caímos no riacho, ficamos molhados, ela perdeu a fita e…
— E por isso tiveram que ficar como Deus os fez? — Lorde Carslile sorriu, sombrio. — Não sou assim tão ingênuo! Derrubei muitas aldeãs, até conhecer a sua mãe… — Ao mencionar lady Esme a voz dele suavizou-se. — Mas sugiro que você espere alguns anos e escolha meninas da criadagem quando chegar a hora. A filha der sir Charles não é para suas garras. Entendeu, frangote?
Então, lembrando-se da presença de Bella, voltou-se para ela, calmo:
— Vamos sair. Vista-se, vá para seu quarto e ponha uma roupa seca.
Enrolada na manta, ela adiantou-se e encarou o lorde:
— Mas, milorde, Edward disse a verdade… Não fizemos nada errado. Por favor, não o castigue, nem conte para meus pais!
O conde fitou-a, firme:
— Não se preocupe: você não vai ser punida. A culpa é de meu filho, que precisa aprender a respeitar os outros. Vamos — ordenou, com um gesto.
Ela fechou a porta depois que Edward foi arrastado para fora do depósito, pelas orelhas.
— Eu esperava que ele ficasse conosco até a festa de São Miguel… — entristeceu-se lady Esme à noite, quando o marido foi juntar-se a ela em seu enorme leito.
Tinha a relutância de toda mãe em entregar seu primogênito às alegrias e obrigações masculinas, mas sabia que era inevitável. Tratava-se de um hábito das famílias nobres — os filhos não deviam ser criados pelas amorosas mães ou se tornariam suaves demais.
No momento em que Edward saísse de Kingsclere para a corte de William, daria o primeiro passo no caminho para a vida de homem dispensando, temia ela, o amor da mãe para sempre. Mas por nada do mundo a lady o desviaria desse caminho, porque um menino que ficava em casa tornava-se motivo de desprezo para todos e nunca seria um cavaleiro.
— Sim, eu sei, mon'ange... — assentiu lorde Carlisle, que sabia o quanto ela sofria por separar-sé do filho e não desprezava seus temores. — Mas precisa reconhecer que ele está pronto… O que aconteceu hoje prova isso.
Lady Esme não pôde deixar de rir:
— Se sir Charles soubesse disso, iria querer matar o seu herdeiro… Ele idolatra a filha. Difícil acreditar que Renee e ele fizeram uma criatura tão linda!
Lorde Carlisle sorriu, os dentes muito brancos cintilando às chamas do braseiro.
Recordou os redondos rostos saxônios de sir Nyle, de sua esposa, e a menina linda de cabelos castanhos que nascera dois anos depois de Edward. O castelão fora a Sherborne, com mulher e filha, para consultar seu lorde sobre que medidas tomar para melhor defesa.
Fechando as cortinas do leito ao redor deles, Carslile comentou:
— Garanto que Renee não deixou a menina escapar quando viu o vestido sujo, molhado e rasgado, apesar de seu sir achar que Bella nada fez de errado. Creio que a pequena não está podendo sentar, como nosso Edward!
E, achando que já tinham falado demais nas crianças, abraçou a esposa e foram dormir.
Duas manhãs depois, Edward, montado em seu palafrém e acompanhado pelo pai, começava a viagem para Londres sem saber que Bella encontrava-se junto de uma das janelas da torre, olhando-o, com lágrimas descendo pelo rostinho pálido.
