" (...) O capuz escorregou para trás, e uma caveira voltou suas cavidades oculares vazias para ele. Nem tão vazias assim, porém. Bem no fundo, como se fossem janelas que davam para os precipícios do espaço, havia duas minúsculas estrelas azuis."

"Castanhos. – disse Mort a Ysabell – (meus olhos) são castanhos. Por quê?"

"- Meus olhos estão normais? – perguntou Mort, ansioso.
- Não vejo nada de errado. – respondeu Albert. – Meio vermelhos no canto, mais azul do que de costume, nada de especial."

"- Você não é o Morte – objetou ela. – Só está fazendo o trabalho dele.

- MORTE É QUEM QUER QUE FAÇA O TRABALHO DE MORTE."

"Então Morte virou a ampulheta de cabeça para baixo."

Um Mapa do Fim de Tudo

i. De Manhã Cedo

Poderia ter sido um dia bom. Bem, pelo menos começou bom.

Michael Keen acordou.

Ele fitou o teto durante alguns instantes. Virou para o lado e olhou o mostrador do despertador digital.

05:48.

Era muito cedo.

Michael levantou e foi até o banheiro. Parou em frente a pia, procurando sua escova de dentes. Ele se olhou no espelho e suspirou, estava com barba de uma semana, olheiras e uma espinha no meio da testa.

Ele lançou um olhar de profundo ódio para a espinha. "Saia daí, " pensou. "Você não nunca mais apareceu desde que eu tinha 17 anos, não vai querer se mostrar agora, vai?"

A espinha, obviamente, não respondeu.

Ele desistiu de achar a escova e foi até o quarto ver Luke.

Luke estava encarando a janela do apartamento.

- Ei, Luke! – exclamou ele surpreso. – O que você está fazendo acordado, filho?

O garoto não deu nenhum sinal de ter escutado. Michael foi para junto dele e passou o braço sobre seus ombros.

- O que foi? – ele olhou para o filho preocupado. – Fale comigo.

- Eu estava pensando, - disse ele devagar – sobre os carros. Lá em baixo. – acrescentou rápido, antes que seu pai perguntasse "Que carros?"

Michael olhou para baixo. Haviam carros, mas ele não conseguia ver o que havia de tão interessante neles.

- E o que você descobriu?

- Que existem mais carros escuros do que claros. E que as pessoas têm mania de colocar o braço para fora da janela de noite.

Michael estava tão perdido quanto sempre durante as conclusões de Luke. Eram todas sempre corretas, mas não tinham a menor importância.

- Você ficou acordado a noite inteira? – perguntou ele incrédulo.

- Não consegui dormir.

- Você tem que dormir de vez em quando, sabia?

Luke não respondeu, mas Michael não esperava uma resposta mesmo.

Michael foi para a cozinha em silêncio.

Ele não estava com paciência para fazer nenhum café da manhã muito complexo. Simplesmente pegou o leite na geladeira, derramando um pouco no chão, as únicas tigelas limpas em cima da pia, que estava atulhada de louça suja, e um pacote de cereal.

Ele parou de arrumar a mesa quando viu Luke parado na porta.

- Algum problema? – perguntou.

- Eu queria ovos com bacon. – respondeu o garoto finalmente.

Michael riu.

- Então ovos com bacon você terá. – disse ele enquanto abria a geladeira de novo.

Que, aliás, estava quase vazia.

Michael suspirou, pegando dois ovos e um bacon velho. Mesmo com o dinheiro que ele recebia todo mês do governo, não dava para pagar as contas, muito menos para comprar comida, roupas e essas coisas. Ele só recebia o dinheiro por causa da doença de Luke, mas pelo mesmo motivo não podia trabalhar. Luke exigia toda a sua atenção.

"A vida sabe ser uma merda quando quer." Pensou.

Ele foi em direção do fogão, evitando espalhar o leite que havia derramado há pouco no chão. Ele pegou uma lata de óleo no armário e colocou uma frigideira no fogo.

Michael sorriu para o filho, jogando óleo na frigideira quente e se virou para pegar os ovos.

Só que ele se esqueceu do leite no chão.

Seu pé escorregou e torceu, e seu corpo caiu em direção ao fogão. Ele tento se apoiar desesperadamente com as mãos em algo, mas isso só serviu para virar seu corpo mais, lançando seu rosto em direção do óleo fervente na frigideira.

Dor era tudo o que ele sentia.

Até não sentir mais nada.

Ele olhou para si mesmo, o rosto branco e desfigurado pelas bolhas.

E percebeu que a pessoa que estava no chão não era ele. Sim, os dois eram a mesma pessoa, mas ele estava olhando para o seu próprio corpo.

- NÃO SE PREOCUPE. VOCÊ MORREU.

Quem havia dito isso fora um rapaz ruivo de capa preta. Ele segurava uma foice, que emitia um ligeiro brilho azulado.

- Ah. – foi tudo que Michael conseguiu dizer.

- A SENSAÇÃO É MEIO ESTRANHA, MAS VOCÊ SE ACOSTUMA. – disse o rapaz, e Michael pensou que nunca vira alguém com olhos tão azuis. E frios.

Ele desviou o olhar daqueles olhos assombrados e virou para ver Luke.

O menino ainda estava parado na porta da cozinha, como se esperasse que o pai fosse levantar e continuar preparando o café.

-Por quê? – perguntou sem parar de olhar para Luke.

-O QUÊ?

-Por que eu morri? – ele balançou a cabeça. – Quer dizer, eu deveria só ter tido queimaduras sérias, não morrido.

O rapaz de preto balançou a cabeça também.

-VOCÊ TEVE UM COLAPSO NERVOSO. A DOR FOI MUITO GRANDE.– ele olhou para o garoto parado na cozinha. – DE QUEM VOCÊ ACHA QUE SEU FILHO HERDOU A PROPENSÃO A PROBLEMAS NERVOSOS?

-É, eu imaginei. Que morte ridícula. – ele não conseguia desviar o olhar de Luke. – O que vai ser dele agora?

-NÃO SEI. – disse o rapaz, e ele estava sendo sincero.

Michael suspirou.

-JÁ ESTÁ TARDE. VENHA COMIGO. – o menino da foice quebrou o silêncio.

-Sim.

Eles foram embora e Luke ficou totalmente sozinho na cozinha.

-Pai?

Somente o barulho da frigideira chiando o respondeu.

Poderia ter sido um dia bom.

É, talvez.

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NA) Só uma idéia que eu tive depois de ler Mort...Pode ser que ninguém goste, mas continua sendo incrivelmente dvivertido de se escrever.