Sou um menino estranho, diga-se de passagem. A vida sempre me mostrou que os fins nunca justificam os meios, mas por mais que eu saiba, eu nunca consigo entender essa lógica. Nasci dia 10 de junho há 15 anos atrás, em um albergue chamado "Chipi Chipi", em um município bucólico e sem graça chamado Alchiras, interior de Córdoba, uma província da Argentina.
Minha mãe sempre foi uma grande estudiosa do mundo político trouxa, particularmente da América Latina e o socialismo. Mas nesta ocasião ela não estava a trabalho, e sim de férias, posto que já era esperado que eu nacesse logo. Meu pai, assim como minha mãe, era um bom parisiense, mas diferente dela era como ele mesmo se qualificava "um ser sem opinião". Meu pai nunca dizia "non" ou "pas", "j'adore" ou "je detéste", "d'accord" ou "il n'est pas d'accord", ele nunca dizia nada, ou aliás, dizia sempre: "Resolva com sua mãe", e ai de mim se dissesse que minha mãe já havia morrido. Se o fizesse ele entrava em uma crise descontrolada de choro. Sempre tivemos uma convivência difícil, e acho que isso se deve a falta de empenho de ambas as partes. Éramos bruxos entre trouxas, não queríamos chamar atenção, minha mãe me teria naturalmente naquela tarde calorenta de junho, contrária à estação. Por complicações do parto ela acabou morrendo. Meu pai poderia ter feito alguma coisa, mas perplexo e estático, nada conseguiu fazer.
Pra mim minha mãe é uma foto em preto-e-branco de uma sepultura e um epitáfio onde havia escrito "Clément
Quincaploix. Les amis, c'est comme la neige, il y en qui ne durent qu'un hiver, et d'autres que sont eternelles". Acho que essa é a frase mais bonita que já li em toda minha vida; "Os amigos são como a neve, há os que não duram um inverno, e há os que são eternos". Talvez em inglês não faça muito sentido "neve eterna", mas em francês faz. Usamos essa expressão para definir a neve do cume dos montes Alpes, há as que derretem no fim do inverno, mas há as que apesar da chegada do verão, continuam lá em cima, pouquíssimas, mas continuam.
Então eu e meu pai voltamos para Paris e nos mudamos para um pequeno apartamento que mais parecia uma kitnet, mas como bons franceses (sim, me considero francês) dizemos que moramos em um "studio". Meu pai acabou ficando louco, não aceitava de jeito algum o fato da minha mãe ter morrido e ele não ter feito nada. Nos víamos o dia todo, mas eu acho que conversava mais com a florista do prédio ao lado do que com meu próprio pai. Dominique Quincaploix era um curandeiro-cardiologista, e assim gostava de ser, apesar de não exercer a profissão. Vez ou nunca recebia umas corujas aqui e acolá, de conteúdos extremamente restritos, e até hoje não sei de que tratam. Certa vez ele veio me examinar com seu estetoscópio, e de tão nervoso que estava por meu pai estar me tocando meu coração disparou. E assim foram as outras vezes que ele me examinou, até que ele chegou a conclusão errada de que eu era doente do coração, e por isso não poderia ir para a escola como as outras crianças.
Fui uma criança solitária, tentando entender quem eu era. Apesar de saber que era argentino, às vezes até esquecida disso, por não ter muito contato com a cultura argentina. Como diria um poeta sul-americano de que gosto muito "minha primeira namorada foi meu porquinho-da-índia". Não era bem um porquinho-da-índia fêmea, mas sim uma linda coelhinha chamada Luciétte. Mas por ironia do destino, Luciétte acabou falecendo aos dois meses de idade. Chorei quatro noites e três dias, até que meu pai me resolveu me dar algo que minha mãe adorava. Era uma máquina de fotografar trouxa, em que as fotos saíam da máquina assim que se fotografava. Ele sentou ao meu lado no nosso divã e disse "Tome meu filho, essa é uma Polaroid. Agora você poderá sair por aí e fotografar as coisas. Tome este álbum também, assim poderá arquivar e datar suas fotografias". Já tinha 8 anos, mas nem escrever sabia, apesar de que meu pai já havia me passado algumas lições. Ler sabia, mas era praticamente um analfabeto funcional (risos). Passava o dia fotografando tudo, as coisas, as pessoas. Adorava mesmo era fotografar as pisadas no cimento fresco da construção da esquina. Tudo pra mim tinha um gosto especial. Até que por maldade, a Mme. Lamercier me convenceu de que minha Polaroid causava grandes desastres. Fui para casa correndo, e abri a Gazeta Diária com rapidez. Fiquei perplexo, eu e minha máquina tínhamos causado um acidente com um trem na Suíça, uma morte em uma partida de Quadribol no País-de-Gales, e um grande assalto a uma filial do Gringotes no Canadá, ao qual foi chamado de "o assalto do século".
Dias depois, percebendo que a Mme. Lamercier gozara de mim resolvi me vingar. Todas as manhãs me acordava cedo e tratava de encher de sal a garrafa de leite que o leiteiro deixava em sua porta todas as matinas. Fiz isso, uma, duas, três semanas. Até que fui pego. Aprendi o significado da palavra "castigo" e o significado da palavra "pavor" de uma só vez.
Na semana seguinte eu estava catalogando meu álbum de fotografias, quando uma coruja preta entrou pela janela e deixou uma carta para meu pai. Foi a última vez que o vi lendo alguma coisa. Depois de ler, ele disse secamente: "Acho que você terá que morar com sua tia Amandine em Vichy". Acho que vocês já entenderam que estou contando a minha história em Vichy, não? A cidade é um buraco, literalmente, completamente rodeada por montanhas, faz um calor dos diabos.
Nunca mais falei com meu pai (pelo menos não diretamente). Minha tia falava com ele exploradicamente através de corujas. Ela sempre dizia para ele que eu estava bem, e ele sempre dizia para ela que sentia me falta, apesar de nunca ter mandado nenhuma coruja para mim. Pelas barbas de Merlin, minha tia era uma pessoa de cabeça erguida, e finalmente me pôs em uma escola normal, após ter-se comprovado que eu não sofria do coração. A escola é simples e sem muitos recursos, mas eu gosto bastante. Minha tia, ou melhor, minha nova mãe, me ensinou a tocar flauta transversa e a falar inglês. Costumamos passar o Natal em Liverpool, onde mora a sogra dela. Minha mãe mora sozinha comigo, viúva. Ela nunca me falou muito sobre meu tio, e nem meu pai falava muito sobre seu irmão (meu pai não falava nada mesmo). Diz a vizinhança que um dia meu pai estava de plantão no hospital (na época em que exercia a profissão) e chegou um corpo de um indigente, para que seja examinado. Mas para sua surpresa, era meu tio! Não acredito nesta história, já que Vichy é uma vila cheia de entrigas. O prazer aqui é ouvir algo pejorativo e guardar rancor daquela pessoa durante pelo menos cinquenta anos.
Estou debaixo de árvore em uma praça, sentado, ensimesmado, pensando na vida. Nessa árvore eu e Crispine escrevemos nossos nomes no verão passado dentro de um coração. "Gaël et Crispine". Minha namorada, meu primeiro amor. Ainda a carrego em meu pensamento, mas ela se mudou para Lyon. Mas pensamentos não beijam, pensamentos não abraçam, pensamentos não morrem, pensamentos não vivem, pensamentos não amam, não odeiam. Às vezes me acho ridículo por sentir um sentimento puro mas tão utópico, um amor tão platônico, já que nunca mais poderei tocar as mãos doces e afáveis de Crispine novamente. Mas também não me arrependo, decidi que toda vez que o amor me chamar vou correndo atrás dele, como um cachorrinho, mas coroado como um rei. É como diz um poeta português que também gosto muito, Camões; "Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar. Logo, não tenho mais o que desejar, pois em mim já tenho a parte desejada".
Ao horizonte, vejo algo preto sobrevoando as montanhas de Vichy. Um urubu? Não, uma coruja! Me lembro muito bem da última vez que vi uma coruja negra, será que seria para mim? A coruja se aproximou de mim e deixou cair uma carta amarronzada, selada com um símbolo onde pude ler "Hogwarts School". Abri a carta lentamente, observando que o destinatário era:
"Sr. Gaël Quincaploix,
Embaixo da figueira,
Praça de Vichy,
França".
Tratava-se de um convite para ingressar no sexto ano da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Já tinha ouvido falar dessa escola, mas porque me convidar no sexto ano? E não no primeiro ano como aos demais? Era de fato algo muito estranho, e isso me parecinha ter um dedinho do meu pai. Senti uma coisa boa, como se minha vida estivesse para começar literalmente. Eu, como cinéfilo-trouxa assumido não poderia deixar de sentir essa sensação. Certa vez ouvi dizer que os filmes geralmente começam aos 20min., quando já se apresentaram os personagens. Alguma coisa acontece de repente e muda todo o destino dos personagens. É como um cinema, a luz está se apagando... Eu vou esquecendo dos problemas de fora e mergulhando em uma história em um mundo paralelo, problemas, entrigas, armações, coisas que eu não posso resolver, só os personagens. A sensação que sinto é que sou um personagem, e que grandes coisas estão para acontecer para mim. As aulas começam dia 1° de setembro, ainda estamos em agosto. A sensação de não saber o que o destino está tramando para mim me deixa inquieto.
