Virundum
You say the sky, the sky's in love with you.
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— Você não vai me roubar, vai?
O rapaz do 104 viu pela pequena abertura da porta, a correntinha bem onde seus olhos estariam se não estivesse abaixado. Berwald não sabia ao certo como responder, então olhou para o saco plástico e depois novamente para o rapaz do 104.
Berwald ofereceu o açúcar.
O rapaz do 104 olhou para o saco, depois novamente para Berwald.
— Isso aí é cocaína? Desculpa mesmo, mas eu gastei todo meu dinheiro com bebida antes de saquearem as lojas.
— Açúcar.
Berwald deu um jeito de falar.
— Ah. Você trouxe açúcar?
O rádio tocava no apartamento do rapaz do 104. Em vez das notícias — as quais Berwald deixava fazendo um barulho de fundo constante e ensurdecedor — alguém cantarolava com um piano e uma gaita. Algo no som fazia o coração de Berwald derreter.
— Acabou nas lojas.
O rapaz do 104 olhou para o saco e para os olhos de Berwald.
— Ah, obrigado.
Fechou a porta, tirou a correntinha e abriu de novo.
— Desculpa, é que um outro cara veio aqui e tentou entrar à força!
O rapaz do 104 riu e pegou o saco.
— Por sorte, eu tinha colocado a correntinha e ele não era tão forte, deu pra bater a porta na cara dele.
Berwald não conseguiu dizer nada, mas assentiu com a cabeça.
O rapaz do 104 sorriu.
— Você é do 109, não é?
— Berwald.
— Tino.
Ele estendeu uma mão, que Berwald apertou. Tino apontou para algo com o olhar.
— Bem, enfim, estou tentando arranjar um voo antes de que o Matilda chegue. A Finlândia fica meio longe, só tem voos particulares, e eu só tenho álcool, então... Foi bom te conhecer, Berwald.
Berwald assentiu e saiu cambaleando. A mão dele ficou formigando.
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— Seu idiota!
Berwald tateou atrás de seus óculos, tropeçando na mesa de centro e no cachorro. Caiu meio torto na poltrona antes de conseguir chegar à porta. Os seus óculos estavam em algum lugar no chão, mas ele deu um jeito de destrancar a porta, Berwald saiu, com as mãos ao alto.
Alguém estava à porta da casa de Tino, e Berwald deu um rápido passo à frente.
— Eu vou acabar com você!
Berwald parou de se mexer.
— Tino, o que você está dizendo é ridículo-
— Eu? Eu que estou fazendo coisas ridículas? Não, ah, não, não, Eduard, é você o idiota, com toda certeza. O ridículo. Doentio!
— Tino — Eduard disse devagar, como se estivesse desarmando uma bomba. — Não é ilegal.
— Eu vou te matar.
— Eu não sou mais professor dele-
Berwald engoliu em seco.
— Tá tudo bem, Tino?
As duas figuras borradas se mexeram, provavelmente para olhar para ele. Berwald endireitou as costas, arrependendo-se de não ter procurado seus óculos, apesar do tempo que isso tomaria. O silêncio era desconfortável e pesava. Lá fora, alguém quebrou uma janela e um bebê resmungou.
— Berwald. — Tino respondeu, com a voz rouca. — Eu estou bem.
Berwald se recusou a reforçar a vista para tentar ver a outra figura.
— Certeza?
Tino riu de leve.
— Tem um abrigo anti-bomba?
— Tino — Eduard continuou — eu só preciso de algumas coisas.
A figura de Tino se moveu.
— Tá. Vai.
A luz que vinha da porta sumiu e o corredor ficou quieto. Do lado de fora, o balbucio do bebê tornou-se choro, e alguém murmurou tentando acalmá-lo. Berwald esperou para saber se Tino reapareceria. Isso não aconteceu, e Berwald voltou a seu apartamento.
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Tino abriu a porta, e o estômago de Berwald virou quando ele sorriu.
— Berwald?
— Trouxe mais açúcar.
Tino riu um pouco, pegando o saco. Berwald sentiu-se muito alto e desajeitado, ali na frente da porta da casa de Tino. Berwald cerrou os dentes, e ouviu a mesma música sibilando pelo rádio. Por dentro, o apartamento era quentinho e um pouco bagunçado, talvez pouco usado, com o cheiro parecido demais ao de um hotel.
— Quer entrar e beber um pouco?
Tino perguntou, abrindo um pouco mais a porta.
Durante os últimos meses, Berwald tinha imaginado qual seria sua resposta a essa pergunta. Na sua cabeça, tarde da noite, ele estava calmo e sereno, além de provavelmente não parecer que ia passar mal, Afinal, o rapaz do 104 estava convidando-o para entrar, sorrindo pacientemente.
— Quero. — Berwald respondeu com uma voz raspada.
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— Tá... Tudo bem?
Berwald perguntou, olhando fixamente para o sétimo, oitavo, nono copo que Tino segurava.
— Lembra daquele cara?
Tino perguntou, com a voz ainda estranhamente insegura.
Berwald assentiu devagar.
— Ele era meu namorado. A gente namorou por três anos. Ele dava aula de computação na faculdade.
Tino tomou o resto da sua bebida.
— Sabe, eu achava que estava tudo indo bem, mas sabe o que ele me disse ontem? Ele disse que estava apaixonado por um dos alunos dele e que ia me deixar.
Tino riu.
— Ele não conseguiu aguentar mais uma semana!
Berwald observava como o olhar de Tino vagava pelo cômodo. Ele tinha olhos tão lindos; Berwald queria desesperadamente dizer-lhe isso.
O olhar de Tino cruzou-se com o dele, e Berwald desviou o seu.
— Faz quanto tempo que você mora aqui?
— Alguns meses.
— Não é engraçado que a gente nunca tenha se falado até uns poucos dias atrás?
O sorriso de Tino, agora, era mais suave.
— Você que tem o cachorro, não é?
— Sim.
O rádio tocou a mesma música de novo, e Tino fechou os olhos.
— O que você queria fazer com o resto da sua vida, Berwald? Antes de a gente descobrir que só tinha mais três semanas?
As mãos de Berwald tremeram enquanto ele pegava a garrafa.
— Queria uma família. Alguns filhos.
— Você tinha uma namorada?
Berwald engasgou com sua bebida e sentiu suas bochechas avermelharem-se.
Tino piscou algumas vezes e depois riu.
— Ai, não, desculpa! Céus, sou tão sem-noção de vez em quando.
Esfregou a testa, ainda sem abrir os olhos, e estendeu seu copo. Berwald prontamente o encheu novamente.
— E você?
Tino mexeu a bebida no seu copo.
— Hm?
— O que você queria fazer? Antes de...
Por alguns minutos, foi só o piano e o cantarolar.
— Sabia que eu era um Papai Noel de shopping?
Tino abriu, um pouco um olho só.
— O Natal era, disparado, a minha época favorita do ano. Eu tinha que pôr enchimento na minha barriga.
Ele riu, debruçando-se sobre a mesa, aproximando-se de Berwald, do outro lado dela.
— Eu vou sentir falta de shoppings.
— Vou sentir falta de você.
A música terminou e Tino olhou para ele. Berwald encarou sua bebida, envergonhado. Quando olhou para cima, Tino parecia tão, tão triste.
— Ah.
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— Eu não quero morrer.
Tino estava sentado na cama, Berwald forçou a vista; seus óculos em algum lugar estavam, sobre o criado-mudo. Aproximou-se de tino, levantou uma mão, tocou o corpo de Tino pelo lado.
— Sinto muito.
Tino virou-se, de repente, e caiu sobre Berwald, rindo.
— Não é culpa sua.
Ambos ficaram ali, deitados no escuro, ouvindo o disparar de armas a distância, o queimar de um incêndio. Tino apoiou sua cabeça na curva do pescoço de Berwald, e Berwald sentiu a sua respiração irregular tocando a pele.
De certa forma, Berwald sabia que isso tudo era como um bichinho reconfortante, algo familiar e gostoso, mas ele podia empurrar isso, lá pro fundo. Ele não tinha muito tempo pra fazer de conta, de qualquer jeito.
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You see this guy, this guy's in love with you.
