O homem é a única criatura

Que se recusa a ser o que é.

(Albert Camus)

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Disclaimer: Não se enganem: é só de Takahashi Rumiko.

Damashi no Mori

Floresta de Enganos

Prólogo: A jovem, a besta, os lobos e o demônio.

Para Rin-chan

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Depois de muito andar, machucar os pés, suar, sujar as mãos, finalmente Rin podia dizer que ia descansar. Achara o lugar perfeito para isso: a base uma árvore que parecia centenária nas proximidades de um córrego, no qual se banharia e vestiria o quimono mais limpo – e único de reserva – que possuía. Depois pegaria um peixe, faria uma fogueira e arrumaria uma espécie de colchão de folhas secas para dormir.

Estava numa floresta, mas não sabia qual era. Devia ser qualquer uma dentro da área de Musashi, distrito no qual permaneceu durante alguns dias até que a gripe que pegara passasse.

Jogou no chão todos os pertences: uma sacola de roupas, um tubo de tinta e pincel e um bloco de papel, objetos que roubara de uma casa cujos donos – pintores da família imperial – morreram (talvez) de cólera. Viver na época das Guerras Civis Japonesas tinha seus muitos problemas.

–Muito bem... – ela murmurou para si ao esfregar as mãos umas nas outras, sentando-se no chão e pressionando as costas no tronco da árvore, dando um suspiro e um sorriso de alívio quando sentiu paz ao perceber o silêncio que dominava aquele lugar.

Os pais haviam morrido num ataque de lobos quando ela tinha onze anos. Agora, aos dezenove – não tinha ela certeza –, já tinha se acostumado a sobreviver pelo território em guerra, roubando as coisas dos mortos ou pedindo comida em troca do trabalho dela: desenhos. Aprendera a técnica quando era ajudante de um pintor meio trambiqueiro que morreu de fome dois anos depois de adotá-la. E então ela passou a desenhar o que quisesse a quem pudesse dar-lhe comida ou ajudá-la de alguma forma.

Pegou o bloco de papel e admirou as bordas enfeitadas. Aquilo devia ser tão caro. Com certeza era presente de algum gaijin... Estranho aquela família ter morrido de uma única vez... Pena que não pôde pegar um pouco de comida. Se morreram mesmo de cólera, não poderia pegar nada. Já tinha dado trabalho pegar um quimono que não tinha sido usado por ninguém... Fora sorte achar um dentro de uma caixa fechada e isolada das outras roupas.

Pegou o pincel e molhou-o na tinta, torcendo o nariz ao sentir o cheiro estranho ela tinha.

Olhando para o céu, Rin pensou durante alguns segundos no que ia desenhar, até finalmente começar a fazer rabiscos.

Admirou o resultado, mas estreitou os olhos ao perceber o quê desenhara parecia.

Um lobo. Detestável. Rasgou o papel e jogou-o longe.

Deu um suspiro cansado e esfregou os olhos com as costas da mão, rindo um pouco. Queria saber onde estava... Ali fazia tanto silêncio...

Levantou-se e pegou o quimono, ultrapassando uma clareira até encontrar o córrego que avistara. A lua estava bonita e, embora não soubesse calcular o tempo, achava que faltava muito para amanhecer.

Desatou o nó que prendia a roupa ao corpo e deixou-a cair no chão, aos pés dela, sentindo depois os cabelos – enormes, lisos e negros – cobrirem as costas. Teria que queimá-lo depois. Já devia estar usando aquilo por uma... Não... Duas semanas.

Pegou algumas folhas secas próximas e aproximou-se de uma pedra, jogando a roupa limpa numa parte seca ao alcance da mão. Entrou no riacho e gritou ao sentir a corrente gelada em contato com a pele.

Kaze no naka... Yume no naka... – começou, esfregando os braços. Cantar talvez a aquecesse.

Minutos depois, o serviço já estava completo. Não demorar quando a noite e a água estavam frias era algo levado muito à sério por ela.

Sentando-se na pedra e esfregando-se com o pano, ela tremia até secar cada parte necessária do corpo para não molhar o quimono novo. Teria que mantê-lo limpo por um bom tempo e não poderia estar molhado na hora de dormir. Foi nessa hora que descobriu que era uma roupa masculina, de duas peças, dobradas meticulosamente dentro da sacola de pano. Teve que se contentar com aquilo, ainda mais que a protegeria melhor do frio.

Porém, enquanto se vestia, um barulho chamou-lhe a atenção. Era o som de algo pisando em galhos secos.

–Quem está aí? – ela perguntou nervosa, pensando que fosse uma pessoa.

Levantou-se e colocou a camisa dentro do hakama, correndo para se esconder atrás de outra pedra.

Novamente, mais um galho quebrou e ela escutou mais uma coisa. Parecia um animal rosnando.

Encostou-se na pedra e fechou os olhos.

Não era um lobo. Não podia ser um lobo. Ali não havia lobos.

Escutou novamente o rosnado, desta vez ainda mais perto, levando a mão à boca para conter um grito. Em seguida, um hálito quente bafejava do outro lado da pedra na qual se escondia.

Gritou ao sentir uma língua lamber-lhe o braço, levantando-se exasperada e recuando.

Paralisou ao descobrir o que era: um demônio, um monstro, uma besta de duas cabeças. Uma delas comia parte da grama donde estavam e a outra foi a que lambeu Rin. Ela, ainda trêmula, não agüentou o próprio peso e caiu sobre as pernas, não reagindo mesmo quando viu o monstro dar alguns passos e... lamber-lhe a face.

–Ei! – ela ficou indignada. Esperava ser devorada por eles, mas o bicho era até dócil se comparado a outras coisas que existiam naquela época.

Em ordem do medo que sentia, Rin sempre ficava longe de lobos, pessoas e demônios. Mais de pessoas que demônios, já que nunca vira um. Mas já vira humanos cometendo... barbaridades por comida.

Suspirou cansada e desanimada, levantando-se e sacudindo a poeira da calça. Tanto medo por uma coisa tão pouca... Era engraçado ver uma espécie daquelas pela primeira vez... E ele parecia ter um dono. Era bem cuidado e tinha até uma bonita montaria. Talvez pertencesse a algum lorde... Se é que havia algum ali.

–Você tem dono? – ela perguntou, acariciando uma das cabeças.

Obteve como resposta um movimento de cabeça e franziu a testa.

–E onde ele está?

Quando ia receber uma resposta, outro barulho chamou-lhe a atenção. Desta vez teve certeza do que era e estremeceu.

Lobos.

Esqueceu-se completamente do novo amigo que fizera e correu para buscar as coisas e fugir dali. Onde quer que haja lobos, sempre alguma coisa terminará muito, muito mal.

Pegou o papel, o pincel e o... Onde estava o tinteiro?

–Cadê? Cadê? – ela perguntava quase chorando. Tinha que fugir dali antes que...

Viu algo brilhar e percebeu que o tubo havia rolado do meio dos pertences e ficar encostado numa das enormes raízes da árvore. Esticou o braço e pegou-o, recuando e gritando quando uma garra surgiu para atacá-la.

Afastando-se, segurando agora somente o tinteiro, Rin encarou o adversário. Era sim um lobo, que parecia faminto ao mostrar numa ameaça os cariados e afiados caninos.

Antes que ela pudesse correr ou gritar, Rin foi atacada, sentindo os dentes do animal rasgando a pele do braço, o que a fez soltar o tubo. Assustada, ela apenas arregalou os olhos e caiu no chão, dando-se conta que havia uma matilha que a rodeava. As pupilas ficaram reduzidas absurdamente e não diferenciava mais o que estava diante dos olhos.

Vou... morrer...

Pálida e não controlando as partes do corpo que tremiam, Rin sentia as forças faltarem enquanto sentia a vista embaçar e sangue escorrer por lugares como o nariz, os ouvidos e a boca.

Os pais e os irmãos haviam morrido daquela forma também.

Final... mente...

Estava indo um pouco depois deles, mas agora iria encontrá-los.

Pai...

Virou a cabeça um pouco para o lado num gesto inútil para que o líquido vermelho escorresse pelo nariz.

Foi só então que notou mais alguém ali. Uma figura vestida de branco e cuja aproximação chamou a atenção dos lobos, que deixaram de rodeá-la para fazerem o mesmo com a outra pessoa.

Mãe... Meus irmãos...

Depois ficou inconsciente.