Nossa história ocorrerá quase que completamente na batalha do abismo, o que me fez ter que alterar vários fatos. Deve ser considerado que entre a chegada dos elfos e a batalha se passaram três dias e não apenas um.
Boa leitura.
LAÇOS DE SANGUE
1 - O ENCONTRO
A fortaleza de Helm estava sempre abarrotada desde que uma legião de fugitivos para lá se dirigia tentando escapar da ira de Isengard e Mordor. Lady Éowyn e sua criada, uma mulher morena, ao contrário das mulheres daquele país, estavam procurando por mais espadas que pudessem ser usadas na batalha que se aproximava, contudo a maioria estava velha... Tinham pouco tempo e muitos preparativos a serem feitos. A sobrinha do rei, valendo-se do respeito que tributavam a ela, tentava ajudá-lo fazendo tudo o que estava ao seu alcance, pois sabia que o tio levava sobre suas costas uma carga muito grande, apesar do auxílio que lhe estava sendo prestado pelos guerreiros trazidos pelo peregrino cinzento: o elfo Legolas, filho do rei Thranduil; o anão Gimli, filho de Glóin e Aragorn, filho de Arathorn, herdeiro de Isildur e herdeiro do trono de Gondor, pelo qual a senhora da terra dos cavaleiros nutria uma afeição especial.
Subitamente, trombetas se fizeram ouvir. A criada da Senhora de Rohan – pelo menos era assim que a consideravam desde que Éowyn a acolhera – debruçara-se, juntamente com sua senhora, sobre a janela para ver o que estava acontecendo.
Seus olhos se fixaram no inusitado exército que surgira através dos portões da cidadela. Elas podiam ver tudo o que se passava. Estavam em um lugar privilegiado, pouco acima de onde o rei se apresentara para recebê-los.
A criada não podia deixar de reconhecer a coragem do rei: apesar da perda do filho, deixara de lado o próprio sofrimento para liderar seu povo, transmitindo-lhe uma segurança da qual ele mesmo intimamente duvidava.
O burburinho causado pela chegada dos imortais diminuíra quando seu líder tomou a palavra, transmitindo sua mensagem ao Rei Théoden. Ao que parecia, Rohan poderia contar com aliados imortais na batalha contra o Senhor do escuro.
Em agradecimento, o capitão recebeu o abraço de Aragorn. O elfo parecia pouco a vontade com o gesto, mas não se esquivou. Quando o capitão dos elfos entrou juntamente com os outros, voltou o seu olhar para cima e seus olhos cruzaram com os da criada. O coração da mulher disparou. Quando o imortal desapareceu, ela continuava com o olhar fixo, sem se mover. A sobrinha do rei não pode deixar de perceber isso:
- Parece um milagre – disse Éowyn tentando tirá-la de seu transe.
- O que disse, minha senhora? – a jovem perguntou, ainda com o olhar fixo no local onde o elfo havia estado.
- O exército élfico. É um milagre termos essa ajuda inesperada.
- Ah!
- Aconteceu alguma coisa? - Éowyn não pode deixar de notar o interesse da jovem pelos recém-chegados.
- Não. Eu apenas nunca tinha visto algo assim.
- Nunca viu um exército desse porte? É o que quer dizer?
- Não, minha senhora, não é isso. Já vi muitos exércitos, contudo, não como este. Esses soldados são tão... diferentes.
- Eles pertencem a outro povo. São elfos, os filhos imortais do Único.
- ...
- Você nunca tinha visto um imortal antes? - a senhora de Rohan prosseguia tentando decifrar os pensamentos da mulher ao seu lado.
- De onde eu venho isso é um tanto difícil, minha senhora.
- E o que achou? – Perguntou Éowyn esboçando um pequeno sorriso.
- Como assim?
- O que achou deles?
- Pelo menos aparentemente, impressionam.
- Entendo...
- Parecem todos iguais, usando esses elmos, exceto...
- Exceto?
- Exceto aquele com longos cabelos loiros que conversou com o rei, seu tio.
- Deve ser o comandante, por isso deve ter decidido não usar o elmo.
- Por que faria isso?
- Talvez para proporcionar uma maior proximidade, pelo menos enquanto conversava com o rei. Foram seus longos cabelos loiros que a impressionaram então?
A essa altura a mulher percebeu o erro que cometera. Tentou, então corrigi-lo voltando seu rosto impassível para sua senhora e respondendo:
- Com todo respeito, minha senhora, ele não me impressionou em nada.
- Então porque você está desse jeito?
- De que jeito?
- Algo a está intrigando - A Senhora de Rohan já a conhecia o suficiente para saber que poucas coisas prendiam a atenção dela por tanto tempo.
-Não tem nada me intrigando, Senhora.
-Não?
-Não.
Eowyn preferiu não insistir. Conquistara a confiança da estrangeira quando a ajudara em um momento muito difícil, mas a jovem era resistente em revelar seus pensamentos – e sentimentos.
- Nesse caso, é melhor você descer agora. Leve essas armas que estão em melhor estado para os homens lá embaixo. Vou tentar encontrar mais alguma por aqui.
Aliviada em se ver livre das insistentes perguntas da sobrinha do rei, a mulher descia as escadas lentamente, mas ao abrir a porta que dava acesso ao corredor da entrada do castelo sentiu algo atingindo seu ombro jogando-a da soleira da porta até o outro lado do corredor. O machado do anão a atingira com um golpe perfeito, embora não fosse essa a intenção dele. Vinha contando aos amigos Aragorn, Legolas e ao recém-chegado capitão dos exércitos élficos como um anão poderia ser perigoso em uma batalha e como os golpes do seu machado poderiam ser mortais. Gimli golpeava o ar sem prestar muita atenção ao seu redor e não percebeu quando a porta que levava à escada se abrira e dela saíra alguém a quem ele atingira com seu machado.
A criada caiu no chão, não muito machucada, porém tonta com a velocidade da queda. As armas se espalharam pelo chão e a jovem ainda tentava entender o que tinha acontecido quando ouviu uma voz grossa se dirigir a ela:
- Mulher estúpida, porque não está escondida nas cavernas com as outras.
Seu sangue ferveu; desde que chegou a Rohan tentava se controlar para não chamar atenção sobre si, entretanto a dor latejante que aumentava em seu braço a cada dia, somada ao aborrecimento da queda e ao desaforo do anão que não tinha o bom senso de admitir o próprio erro levaram-na ao limite. Dentre as espadas espalhadas à sua frente avistou uma adaga. Pegou-a rapidamente com a mão direita que, ainda que ferida era capaz de manejar uma arma com maestria.Seus movimentos foram tão precisos que antes que o anão pudesse esboçar qualquer reação, viu-se contra a parede e com a adaga roçando seu pescoço:
- Mulher estúpida? Sim! Mas esperta o suficiente para enfiar esta adaga em sua garganta, seu idiota!
A espada do filho de Arathorn foi desembainhada mais como um gesto de precaução do que de ataque, mas Legolas, que àquela altura já considerava o anão como um bom amigo, apesar das implicâncias, armou seu arco apontando a flecha para a cabeça da mulher.
- Minha flecha a mataria antes disso, 'minha senhora'!
A mulher voltou o rosto encoberto pelos cabelos revoltos para Legolas. O olhar assassino que se podia vislumbrar através dos fios de cabelos negros não passou despercebido a nenhum dos presentes. A criada, fixando seu olhar no príncipe do Reino da Floresta, debochou:
- Por que tem tanta certeza de que sua flecha será mais rápida que a minha adaga, 'mestre' elfo?
A palavra 'mestre', dita com toque de ironia, desagradou a todos, principalmente a Legolas. O que aquela mulher estava pensando? Era perfeitamente compreensível que estivesse com raiva, pois o filho de Glóin não havia sido nem um pouco sutil. Todavia por que transformar um incidente fútil em uma batalha? E, afinal, quem era ela? Estava claro que se tratava de uma estrangeira. Possuía os cabelos escuros, longos e ondulados, pele bronzeada e olhos que expressavam uma fúria poucas vezes vista antes pelo filho de Thranduil.
Aragorn baixou a espada e aproximou-se, tentando, como sempre, uma saída conciliadora:
- Amigos, não é hora de lutarmos entre nós. Temos algo muito maior a enfrentar. Que haja paz entre aqueles que lutam por Rohan.
Lentamente, sem desviar o olhar da mulher, Legolas depôs seu arco. A mulher acompanhou com o olhar os movimentos do elfo que até bem pouco tempo poderia tê-la matado. Depois olhou para Aragorn, para o anão e hesitou por um instante. Fitou novamente o herdeiro de Isildur que assentiu com a cabeça. Então, dirigindo um olhar ameaçador a Gimli, a mulher aos poucos baixou a adaga, pois não poderia dizer não ao apelo daquele guardião do norte. A ele, mais do que a qualquer um, ela não poderia desagradar. Era de suma importância conquistar sua confiança. Aos poucos seu olhar abandonou o Anão e voltou-se para os outros. Fez um leve sinal com a cabeça para Aragorn e para Legolas demonstrando que, pelo menos aparentemente, não havia mais animosidade. Seus olhos continuaram a percorrer o corredor e novamente se depararam com os olhos do capitão dos exércitos imortais. A criada sentiu o chão sumir sob seus pés. Estava constrangida com a situação. Não lhe agradou que o dono daqueles cabelos dourados tivesse testemunhado uma cena tão indigna como deveria ter sido aquela aos olhos de alguém como ele. "E por que eu estou me importando com a opinião dele? Nunca me importo com a opinião de ninguém..." Então a mulher deu as costas a todos. Quando ia começar a recolher as espadas ouviu Aragorn dirigir-se ao elfo recém-chegado:
- Perdão por esse pequeno incidente, Haldir. Nesses tempos difíceis, os ânimos de todos estão sempre exaltados.
'Haldir", ela repetiu mentalmente. O nome do imortal não lhe era estranho. Muitas vezes o ouvira na boca dos Orcs. Muitas vezes ouvira aquele nome ser amaldiçoado e seu portador jurado de morte. Quantas vezes desejou que aquele nome a alcançasse... E agora, diante dele, a curiosidade suplantou a prudência:
- Haldir de Lórien? O Guardião da Floresta Dourada? – A mortal voltou-se para o elfo, hesitando em se aproximar muito.
- Sim, sou eu mesmo.
Haldir respondeu levando a mão ao peito e inclinando levemente a cabeça. O elfo certamente a impressionara no momento de sua chegada, mas agora, olhando-o mais de perto, não parecia assim tão temível, era possuidor do porte de um guerreiro, sem dúvida, todavia sua elegante figura não refletia o poder destruidor que os orcs lhe atribuiam...
- De onde me conhece, senhora? - Haldir prosseguiu.
'Senhora?' Estranhou o tratamento ao qual não estava acostumada. A pergunta do elfo a fez voltar à realidade e tomar consciência do ato imprudente que acabara de cometer. E agora? O que responderia? Pensou que o melhor seria dizer a verdade, afinal, em Rohan, todos sabiam...contudo não entraria em detalhes,
- Sauron costumava dizer que nenhum homem conseguiria sustentar o olhar de Haldir de Lórien e que não suportava a idéia de que seus orcs tremessem tanto diante de seu nome – deu alguns passos em direção ao servo de Galadriel, ainda tentando compreender o motivo pelo qual as criaturas de Mordor tanto o temiam.
- Sauron? – Indagou Haldir, revelando o mesmo espanto que atingiu a todos os presentes. Entretanto, Gimli, que ainda não esquecera o incidente ocorrido há pouco, e a quem não agradava de modo algum a fama dos elfos, deteve-se em outro ponto:
- Se nenhum homem consegue sustentar o olhar dele, como ela consegue?
A estrangeira agradeceu mentalmente a intervenção do filho de Glóin, que mudou o rumo que a conversa estava tomando. Explicar seu relacionamento com Mordor era sempre algo constrangedor.
- É que eu não sou um homem, anão.
A mulher respondeu sem desviar olhar. Legolas completou:
- Os homens nunca conseguem sustentar o olhar dele, e as mulheres, nunca conseguem resistir a ele...
Risos se fizeram ouvir. Haldir apenas baixou um pouco a cabeça e sorriu recordando as investidas de que tinha de se livrar freqüentemente a fim de nunca falhar na vigilância das fronteiras da floresta. Não que as recusasse sempre, mas costumava ser seletivo. E isso o tornava ainda mais cobiçado.
Aquela situação deixou a criada desconcertada. 'Isso é ridículo! Como permiti que chegasse a esse ponto?' Preferia ser vista com raiva do que com graça. Sem baixar o olhar ela reagiu a fim de recuperar seu orgulho:
- Então as mulheres não conseguem resistir ao seu olhar, meu senhor?
- É o que dizem – respondeu o elfo com um leve sorriso, sem perceber de imediato o deboche disfarçado na pergunta da mortal.
- Não será isso muita arrogância de sua parte?
Haldir nada disse. Não estava acostumado a ser tratado assim por uma mulher.
- Todos os de sua raça são tão convencidos quanto o senhor ou isso é privilégio seu? – provocou novamente a jovem.
Diante do silêncio do servo da senhora da luz, a criada arrematou:
- Vocês se acham mesmo melhores do que todos, não é? Não entendo por que tanta arrogância. Elfos, homens, anões e orcs... Para mim, são todos iguais.
A mortal conseguiu o que estava pretendendo. Olhares irados se voltaram para ela. A mulher percebeu que exagerara, mas agora não poderia voltar atrás. Viu o olhar penetrante de Haldir ser tomado por uma justa ira:
- Como você pode dizer uma coisa dessas? – Disse o recém-chegado agarrando o braço direito da mulher à sua frente.
A mortal não prestava muita atenção em suas palavras. Pensava apenas em seu braço sendo segurado pelo elfo. O indesejado toque masculino juntamente com a dor por ele causada fizeram com que seus instintos de autodefesa viessem à tona. Seus olhos estavam cheios de repugnância. Haldir não conseguia compreender. Já tinha visto muitos olhares se voltarem para ele com raiva, inveja, medo, mas nunca um sentimento como aquele. Como se ele lhe causasse nojo. A criada puxou uma pequena navalha que estava em sua cintura e levou-a em direção ao pescoço do Elfo, mas este não era lento como o anão e com sua outra mão segurou o antebraço da mulher. Vendo-se agora totalmente imobilizada ficou enlouquecida de ódio e empurrou o elfo com tamanha força que ela mesma caiu para trás:
- Largue-me orc maldito!
Todos perceberam nas palavras dela o sentimento que Haldir havia percebido em seu olhar. E permaneceram em silêncio sem conseguir entender.
