Murray 01 – Highland Destiny
Hannah Howel
Escócia, 1430
Enquanto Maldie trata os ferimentos do rapaz que encontrou na estrada, ela tenta desesperadamente negar a atração que o irmão dele lhe despertou desde o primeiro instante. Embora Maldie e Balfour Murray logo se descubram partilhando a mesma missão de vingança, ela precisa a todo custo manter sua verdadeira identidade em segredo, pois, do contrário, será apontada como espiã.
Em nome da honra de sua família, Balfour jurou destruir seu maior inimigo, o nefasto Beaton de Dubhlinn. O apoio de Maldie seria um trunfo poderoso, mas Balfour sabe que não pode confiar nela, assim como não pode ignorar o desejo por aquela mulher de rara beleza e sensualidade. Agora Balfour está determinado a desvendar os segredos de Maldie, e também a viver a paixão que o consome, sem permitir que nada se interponha em seu caminho... nem mesmo a ameaça de ver seu clã dividido!
Capítulo I
Escócia, Primavera de 1430.
O jovem Eric se foi. Balfour Murray, lorde de Donncoill, empurrou o prato de ensopado que estivera degustando e fitou o mestre de armas, cujo rosto pálido e cansado revelava enorme preocupação. Poucas coisas costumavam abalar o sempre calmo e controlado James. Antevendo graves problemas, Balfour, já completamente sem apetite, levou o cálice de vinho à boca.
— Como assim, se foi?
— Sequestraram o rapaz — James esclareceu cada nervo do corpo musculoso retesado. — Estávamos caçando quando doze cavaleiros nos cercaram. Colin e Thomas, apesar de lutarem com bravura, morreram no local. Gritei para Eric fugir, enquanto eu me ocupava dos inimigos restantes. Porém o cavalo do menino refugou. Antes que me fosse possível ajudá-lo, os malditos o capturaram e partiram em disparada.
— Quem o levou? — indagou Balfour, depois de mandar um servo chamar seu irmão, Nigel.
— Homens de Beaton.
O fato de sir William Beaton, lorde de Dubhlinn, causar-lhe transtornos não o surpreendia, considerando o passado de discórdias entre os clãs. Entretanto, o rapto do garoto chocava-o. Eric resultara de um breve caso amoroso entre seu pai e a última esposa de Beaton. O infame, num ato de suprema crueldade, abandonara o recém-nascido num lugar ermo.
O destino fizera com que James, regressando de uma caçada, passasse pelo local e recolhesse o pequenino. Vendo-o embrulhado numa manta com as cores do clã rival, não fora difícil seu pai chegar à conclusão óbvia. Que William Beaton condenasse um bebê indefeso à morte, os estarrecera. E que tentasse assassinar um Murray, os enfurecera. A partir daquele momento, tornaram-se inimigos declarados. Balfour conhecia a extensão do ódio do pai por William, sentimento acentuado com a morte súbita e suspeita da mulher que o líder dos Murray amara. A antiga rixa entre as famílias, transformada num conflito feroz e sangrento, arrastara-se durante anos. Após o falecimento de seu pai, Balfour esperava um pouco de paz. Pois agora ficara dolorosamente claro que o senhor de Dubhlinn não dava a mínima para a paz.
— Por que Beaton iria querer Eric? — Tenso, Balfour apertou o cálice de prata com tal força, que os relevos da peça lhe cortaram a palma da mão.
— Você acha que o canalha pretende assassiná-lo? Terminar o que começou anos atrás?
— Não — James retrucou firme. — Se Beaton quisesse o garoto morto, seus capangas o teriam trucidado. O que houve na floresta foi uma emboscada planejada, não um encontro ao acaso. Aquele bando estava nos esperando, esperando por Eric.
— O que mostra o quanto nos descuidamos de nossa defesa. Ah, Nigel — Balfour murmurou, notando o irmão mais novo entrar no salão —, ainda bem que não demoraram a localizá-lo.
— O servo que você enviou à minha procura mencionou Eric. Algo sobre um sequestro? — Nigel sentou-se à mesa e serviu-se de vinho.
A princípio, Balfour perguntou-se como o outro podia parecer tão tranquilo. Então, percebeu que os dedos ao redor do cálice haviam perdido toda a cor e os olhos cor de âmbar estavam quase negros por causa da fúria crescente. Em poucas palavras, relatou o que sabia e aguardou impaciente, a opinião do irmão.
— Beaton precisa de um filho — disse Nigel, a voz fria como aço.
— O maldito abandonou Eric anos atrás — Balfour argumentou, fazendo sinal para que James se sentasse à mesa também.
— Sim, porque ainda tinha muito tempo pela frente para gerar um varão. E falhou. A Escócia está inundada de filhas legítimas e bastardas de Beaton. Filhas nascidas de esposas, amantes, prostitutas.
— Ouvi boatos de que Beaton anda muito doente. — Num gesto cansado, James passou a mão pelos cabelos grisalhos.
— Creio que caminha a passos largos para a morte — confirmou Nigel. — Seus parentes, inimigos e vizinhos mais próximos já o estão cercando. Entretanto ele ainda não escolheu um herdeiro, um sucessor. Com certeza teme que o eleito acabe apressando seu fim. Portanto, resta-lhe resistir e lutar.
— Ao abandonai - Eric naquela colina, Beaton deixou claro não acreditar que o filho fosse seu — Balfour ponderou.
— Eric possui as características físicas da mãe, não dos Murray. Beaton poderia tê-lo reivindicado como legítimo herdeiro. Sei que poucos iriam engolir essa história, considerando a notória ligação de nosso pai com a esposa de Beaton. Entretanto ninguém o desafiaria abertamente. Também achariam natural um homem de índole tão violenta haver abandonado o próprio filho à morte, num acesso de raiva e ciúme.
— O canalha planeja usar Eric como escudo contra os inimigos.
— Sim, essa é minha opinião, embora não tenha provas para sustentá-la.
— Concordo plenamente, Nigel. Eric é jovem demais para ser largado naquele ninho de cobras. Talvez permaneça seguro enquanto Beaton viver. Depois da morte do crápula, a disputa pela liderança do clã será brutal e o menino se tornará a primeira vítima da luta pelo poder.
— É possível que Eric não viva nem para ver o inimigo enterrado! Não podemos deixá-lo lá. Ele é um Murray!
— Eu não estava pensando em deixá-lo, apesar de Eric ter tanto direito a Dubhlinn quanto qualquer outro. Apenas tentava decidir quanto tempo ainda temos para libertá-lo das garras de Beaton.
— Talvez dias, talvez meses, talvez até anos.
— Ou talvez horas. Partiremos o quanto antes. — Sombrio, Balfour sorveu vários goles de vinho e procurou se acalmar. Haveria mais uma batalha. Mais homens bons perderiam a vida. Mulheres pranteariam e crianças ficariam órfãs. Ah, como odiava tudo isso. Não temia a luta. Em defesa de seu lar, da Igreja e do rei, seria sempre o primeiro a vestir a armadura. O constante derramamento de sangue provocado pelas discórdias entre os feudos era o que o angustiava. Tantos Murray haviam morrido porque seu pai amara e dormira com a esposa de outro lorde. Agora muitos morreriam para tentar salvar o fruto daquele romance adúltero. Apesar de amar o irmão e julgá-lo merecedor de que brigassem por ele, essa batalha seria mais um capítulo de um longo conflito, um conflito que nunca deveria ter começado. — Partiremos para Dubhlinn ao amanhecer. Reúna os homens, James.
— Nós venceremos e traremos Eric de volta — Nigel decretou veemente, mal o mestre de armas retirou-se.
Durante vários minutos Balfour permaneceu em silêncio, indagando-se se o irmão realmente sentia-se otimista, ou apenas queria animá-lo. Os dois se pareciam em muitas coisas, e também podiam ser tão diferentes quanto à água do vinho.
Nigel sempre fora mais alegre, jovial. Uma das razões de seu grande sucesso com o sexo oposto. Além da beleza, é claro. Balfour sabia que seus cabelos e olhos escuros e pele morena lhe conferiam um aspecto quase sinistro. Não haviam sido poucas as ocasiões em que chegara a invejar a personalidade extrovertida e a aparência do irmão, cujos cabelos e olhos claros fascinavam as mulheres. Agora, como em diversas ocasiões no passado, achava-se inclinado a partilhar da visão mais positiva de Nigel sobre a batalha iminente. Bem no íntimo, acreditava estarem todos marchando para a morte certa e temia que o ataque a Dubhlinn acarretasse a destruição antecipada de Eric.
— Se Deus estiver conosco, sim, venceremos — declarou afinal, esforçando-se para adotar uma posição menos pessimista.
— Salvar um menino gentil como Eric das mãos de um bastardo deveria contar com as bênçãos divinas. — Nigel sorriu brincalhão. — Porém, se Deus estivesse mesmo prestando atenção, já teria dado cabo de Beaton anos atrás.
— Talvez ele tenha decidido que Beaton mereça essa morte lenta e dolorosa, da qual vem padecendo.
— Faremos com que o homem morra só, sem arrastar inocentes consigo.
— O que você falou sobre os planos de Beaton faz sentido. Entretanto apenas um louco acreditaria na possibilidade de sucesso. Ele pode até conseguir convencer os outros de que Eric é seu filho legítimo, ou, pelo menos, impedir que o questionem abertamente. Só não irá controlar nosso irmão. Eric é pequeno e magro, porém está longe de ser fraco, ou medroso. O plano de Beaton jamais funcionará se Eric não desempenhar a parte que lhe cabe. No instante em que o maldito baixar a guarda, o garoto fugirá daquele hospício.
— É verdade. Contudo existem muitas maneiras de pressionar uma criança. — Nigel calou-se, esforçando-se para dominar as emoções.
— Também sabemos que existem muitas formas de corromper a verdade. Não raro cavaleiros destemidos, experientes, quando submetidos à tortura, confessam crimes que nunca cometeram. Depois das confissões arrancadas, os infelizes sofrem uma morte indigna. Sim, Eric é valente, mas ainda é um menino.
— E está sozinho — Balfour murmurou, lutando contra o impulso de partir para Dubhlinn imediatamente.
— Amanhã, quer vençamos ou não, pelo menos Eric saberá que não o abandonamos, que seu clã está lutando para libertá-lo.
A madrugada chegou fria e nublada. No pátio interno do castelo, Balfour estudou seus homens, procurando afastar o pensamento angustiante de que muitos deles não voltariam para casa. Mesmo se Eric não fosse amado em Donncoill, a honra exigia que o livrassem do inimigo. Gostaria que houvesse um modo de salvá-lo sem sacrificar inocentes.
— Vamos! — Nigel falou animado, percebendo o estado de espírito sombrio do irmão.
— Você deve parecer sequioso do sangue de Beaton e mostrar-se confiante na vitória.
— Sei disso e, quando cruzarmos os portões de Donncoill, ninguém me verá hesitar uma única vez. Mas eu havia rezado para que tivéssemos um período de paz, para curar as feridas, ganhar forças e lavrar nossas terras. Essas são terras férteis e jamais tivemos tempo de cultivá-las plenamente. Ou as negligenciamos para nos empenharmos nas batalhas, ou nossos inimigos as destruirão, obrigando-nos a recomeçar do zero. O fato é que sinto-me farto, cansado desse ciclo interminável de violência.
— Compreendo, porque às vezes sinto-me assim também. Contudo, esta é a hora de lutarmos pela vida de Eric. E, talvez, por sua alma.
— É este pensamento que faz meu sangue ferver nas veias e me dá ímpeto para liderar os homens na batalha.
Durante a cavalgada, o lorde de Donncoill não pensou em nada, exceto no jovem irmão prisioneiro. Logo, estava ansioso para enfrentar Beaton cara a cara. Chegara o momento de fazê-lo pagar por seus crimes hediondos.
Nigel caiu do cavalo, uma flecha cravada no peito, outra na perna direita. Praguejando aos berros, num misto de medo, frustração e raiva, Balfour desmontou e correu para junto do irmão, sem se importar de se expor à saraivada de flechas que os arqueiros disparavam das muralhas de Dubhlinn.
— Não, não devemos interromper o ataque só porque fui atingido — Nigel protestou, quando Balfour mandou que o carregassem para um lugar seguro, atrás da linha de frente.
— Não podemos permitir que o canalha vença.
— Beaton já havia vencido antes mesmo de estarmos a caminho. Ele sabia que viríamos atrás de Eric e estava preparado. — Virando-se para um escudeiro, ordenou:
— Soe o toque de retirada, rapaz. Abandonaremos essas terras antes de sermos enterrados aqui.
— Que o maldito apodreça no inferno — Nigel vociferou inconformado.
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— A derrota tem sabor amargo. Se insistirmos agora, estaremos nos condenando à morte e isso não ajudará nossa causa. A defesa de Dubhlinn é mais bem preparada do que eu me lembrava. Iremos embora, lamberemos nossas feridas e pensaremos numa outra forma de resgatar Eric. Vocês dois — disse Balfour, dirigindo-se aos pajens apavorados.
— Segurem meu irmão, enquanto cuido das flechas.
Nigel desmaiou quando a primeira foi arrancada. Sabendo ser impossível poupá-lo do sofrimento, Balfour se esforçou para concluir a tarefa rapidamente. Então, rasgou uma tira da própria túnica e cobriu as feridas, a sujeira do tecido incomodando-o. Seus homens já haviam recuado quando, enfim, acomodou Nigel numa liteira e seguiu-os.
Apesar de engasgado com a derrota, Balfour obrigou-se a aceitá-la. No instante em que se aproximara das muralhas de Dubhlinn, não tivera dúvida de que cometiam um erro. Precipitados, seus soldados atacaram sem esperar sua ordem. A defesa adversária mostrara-se rápida e fatal. Só esperava que a empreitada não houvesse ceifado um vasto número de jovens inocentes. Pedia aos céus para ser capaz de imaginar um jeito de livrar Eric das garras do inimigo sem provocar mais derramamento de sangue e também rezava para que a liberdade de um irmão não custasse à vida de outro.
Os sons ásperos da batalha romperam à paz da manhã primaveril. Maldie Kirkcaldy praguejou baixinho, por alguns segundos interrompendo sua marcha rumo a Dubhlinn, marcha iniciada junto à sepultura da mãe, três longos meses atrás. Enquanto o corpo de Margaret Kirkcaldy baixava à sepultura, ela jurara fazer o senhor de Dubhlinn pagar caro pelas afrontas cometidas contra ambas. Cuidadosamente, preparara-se para enfrentar quaisquer desafios: mau tempo, não ter o que comer, ou onde dormir. Entretanto, jamais considerara a possibilidade de que uma batalha viesse impedi-la de avançar.
Por um breve instante pensou em se aproximar da área do conflito. Seria útil descobrir qual clã tentava aniquilar Beaton. Mas desistiu. Não valeria a pena se expor a um risco prematuro e desnecessário. Melhor encontrar uma maneira de convencer o inimigo de Beaton de que era uma aliada.
Exausta, Maldie passou a mão pelos cabelos negros. Embora pequenina e delicada, há três meses vagava sozinha por essas terras desconhecidas. Conseguira sobreviver porque sempre fora cautelosa. Não se permitiria agir por impulso quando se
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achava tão próxima de alcançar seu objetivo. Na verdade, precisava redobrar a cautela. Falhar em seu propósito quando estava perto de executar a vingança prometida à mãe seria intolerável.
Os sons da batalha começaram a se dissipar e Maldie soube não lhe restar muito tempo para tomar uma decisão. Logo o exército passaria pela estrada, ou eufórico pela vitória, ou vergado pelo peso do fracasso. Parte de si insistia para que continuasse sozinha, mas o bom senso a aconselhava a buscar uma aliança proveitosa. Pelo menos poderia desfrutar de algum conforto, enquanto deliberava sobre como usar as informações coletadas nos últimos noventa dias.
Mal acabara de se convencer de que os inimigos de Beaton eram seus amigos e que, portanto, se beneficiaria dessa união de forças, quando avistou os primeiros soldados. Sua confiança desabou. Mesmo a distância, percebia-se a fragorosa derrota. Se um exército de cavaleiros treinados e bem armados não fora capaz de vencer Beaton, que esperanças teria ela?
Mas, antes um aliado derrotado do que nenhum. No mínimo eles lhe passariam algum dado extra, algum conhecimento adicional que a ajudasse a obter o que buscava: a completa destruição do lorde de Dubhlinn. Isto é, se os estranhos não a matassem antes. Rezando com todo o fervor para não estar apressando a própria morte, Maldie saiu de trás do arbusto onde estivera escondida e plantou-se no meio da estrada.
Em silêncio, Maldie pediu a Deus que o cavaleiro alto e moreno, parado à sua frente, não ouvisse as batidas desesperadas de seu coração. Apesar da postura impassível do desconhecido, sentia-se à beira do pânico. Quando abandonara a segurança do esconderijo e se expusera, fizera-o movida pela crença de que valia a pena arriscar-se para conquistar aliados. Porém agora, diante daqueles homens exaustos, enlameados e sujos de sangue, perguntava-se se não se precipitara. E pior, não sabia como iria justificar sua presença ali, sozinha, no meio da estrada para Dubhlinn, sem revelar os planos sinistros de vingança.
— Talvez você queira me explicar o que uma moça tão pequenina está fazendo sozinha nesta estrada? — Balfour indagou, quase não resistindo ao fascínio exercido pelos incríveis olhos verdes.
— Talvez eu apenas queira ver de perto o quanto terrivelmente o velho Beaton os derrotou. — Quem seria esse nobre de ombros largos e olhos escuros, capaz de induzi-la a se comportar de forma impertinente?
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— Sim, o canalha nos venceu. — A voz de Balfour soou fria, carregada de fúria. — Você é uma dessas carniceiras que vasculham os ossos dos mortos? Se for, é melhor continuar seu caminho.
Decidindo ignorar o insulto, merecido porque o provocara com suas palavras impensadas, retrucou:
— Sou Maldie Kirkcaldy, de Dundee.
— Você está muito longe de casa, moça. O que a trouxe a essas terras amaldiçoadas?
— Procuro alguns parentes.
— Quem são? Talvez eu possa auxiliá-la a encontrá-los.
— É muito gentil de sua parte, porém não creio que alguém da sua classe social os conheceria. — Antes que o cavaleiro a pressionasse em busca de mais informações, Maldie voltou a atenção para o homem na liteira. — Seu companheiro me parece gravemente ferido, sir. E possível que eu seja capaz de ajudá-lo. — Notando a tensão tomar conta da figura musculosa, afirmou categórica: — Falo a verdade quando digo que sou hábil na arte da cura.
A confiança exprimida no comentário levou Balfour a relaxar, apesar de não agradar-lhe ser convencido tão depressa pelas palavras de uma mulher, uma completa estranha. Sim, uma bela estranha, com seus cabelos negros, olhos cor de esmeralda e corpo sinuoso. Entretanto nunca se permitira sucumbir aos encantos de um lindo rosto. Pouco à vontade, observou-a se ajoelhar junto de Nigel.
— Sou sir Balfour Murray, lorde de Donncoill. Este é meu irmão. — Balfour ajoelhou-se também, disposto a acompanhar cada movimento das mãos delicadas. — Nigel foi abatido quando o inimigo, valendo-se da astúcia traiçoeira, nos atraiu para uma cilada.
Ao retirar os trapos que cobriam os ferimentos, Maldie franziu o cenho, apreensiva. Bastou um exame rápido para decidir quais iniciativas tomar. Infelizmente, no momento, não possuía consigo o material necessário.
— Sempre me espanta essa idéia masculina de que todos os homens respeitam as honrosas leis da guerra. Se vocês agissem com um pouco mais de cautela, talvez não continuassem sendo dizimados.
— Não julgo irracional acreditar que um cavaleiro aja de acordo com sua posição e honre seus juramentos.
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Maldie deixou escapar um muxoxo cheio de raiva, amargura e desprezo. Embora trajasse um vestido grosseiro, prova de sua origem simples, ela não mostrava nenhuma deferência para com aqueles de uma casta superior. Muito pelo contrário. Surpreso com seu interesse por uma completa desconhecida, Balfour descobriu-se indagando-se quem a teria prejudicado. E como?
Em silêncio, viu-a limpar as feridas e estancar o sangramento, o toque gentil dando a impressão de abrandar o sofrimento de Nigel. A suavidade e segurança com que as mãos delgadas se moviam, o fez imaginá-las deslizando sobre sua pele. A reação imediata e inequívoca de seu sexo o assombrou. Não era hora disso.
Embora tentasse resistir ao impulso, analisou-a demoradamente, de cima a baixo. O vestido velho e gasto, evidenciava as curvas deliciosas dos seios empinados, a cintura estreita oferecendo um contraste sensual com os quadris largos e arredondados. Apesar de pequenina, Maldie Kirkcaldy possuía pernas longas e bem torneadas. Os cabelos negros e rebeldes emolduravam o rosto de beleza clássica, os olhos de um verde intenso reluziam sob as sobrancelhas arqueadas. Nariz reto, ligeiramente arrebitado, lábios carnudos e sedutores. Como alguém podia parecer assim, jovem, inocente e, ao mesmo tempo, voluptuosa?
Eu a quero, Balfour concluiu, entre atônito e divertido. Intrigava-o desejar essa criatura miúda, impertinente e desgrenhada. Principalmente, impressionava-o desejá-la como jamais desejara nenhuma outra mulher, com um ardor que beirava a insanidade. A fome que Maldie Kirkcaldy despertara em seu corpo era tão forte que quase o alarmava. Esforçando-se para se libertar das sensações insidiosas, procurou manter os pensamentos fixos na saúde de Nigel.
— Meu irmão já tem um aspecto melhor.
— Palavras polidas as suas, porém reveladoras de seu pouco conhecimento do assunto. — Maldie secou as mãos na saia. — Não fiz quase nada exceto limpar as lesões, livrando-as do sangue e da sujeira, e trocar os curativos imundos. Não tenho comigo o necessário para cuidar do paciente como deveria.
— Do que você necessita? — Balfour arregalou os olhos diante da lista interminável, muitos itens dos quais nunca ouvira falar. — Não carrego essas coisas comigo quando vou para as batalhas.
— Mas deveria. Afinal, são nas batalhas que vocês, tolos, acabam se machucando desse jeito.
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— Não é tolo quem tenta libertar o irmão mais novo das garras de um crápula como Beaton. — Erguendo a mão, Balfour silenciou-a, decidido a pôr um ponto final na conversa. — Demorei-me demais aqui. Não tenho certeza de que os cães de Beaton se recolheram, ou se nos perseguem. Nigel precisa de cuidados e de um lugar seguro para se recuperar.
— Sim, é verdade. Portanto, apressem-se. — Maldie levantou-se e alisou as roupas amarfanhadas, preparando-se para seguir seu caminho.
— Você se saiu tão bem cuidando de Nigel, mesmo sem contar com aquilo que considera indispensável, que estou curioso para ver quais milagres fará quando tiver tudo o que precisar.
— Como assim?
— Você vai para Donncoill conosco.
— Então serei sua prisioneira?
— Não, minha convidada.
Maldie abriu a boca para recusar-se, mas engoliu as palavras ásperas. Não valia a pena agarrar-se à teimosia e obstinação. Afinal, existiam vantagens em unir seu destino ao dos Murray. Além de sir Balfour estar em guerra com o homem que pretendia destruir, em Donncoill encontraria refúgio enquanto planejava os últimos detalhes da vingança.
Naturalmente havia algumas desvantagens. Beaton impusera uma derrota amarga a sir Balfour, e se este descobrisse a verdade sobre sua origem, correria sério perigo. Também poderia enfrentar problemas se o belo e soturno cavaleiro desconfiasse da razão que a fizera tomar a estrada para Dubhlinn. Se o acompanhasse, teria de omitir certas informações e o instinto lhe dizia que lorde Murray não costumava perdoar quem o enganava com facilidade. Seu plano para obter um aliado já não estava parecendo tão simples como supusera no início.
Além de tudo, outra complicação inesperada surgira. Reconhecia o brilho dos olhos penetrantes. Um brilho que a perseguira com frequência. Sir Balfour a queria. O que a preocupava era a maneira como estava reagindo a isso. Se o assédio de outros sempre lhe despertara raiva, asco, saber-se cobiçada por este guerreiro alto e másculo a excitava como nunca antes.
E deixava-a curiosa. Tratava-se de um homem inegavelmente bonito, porém conhecera vários de igual beleza. O corpo musculoso atrairia qualquer mulher, assim como o rosto viril. Queixo firme, nariz reto, ombros largos e fortes. Os cabelos escuros
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e longos lhe concediam um ar quase selvagem, e os olhos castanhos pareciam ter o poder de incendiá-la. Ao fitar a boca carnuda, Maldie abaixou a cabeça, sentindo-se pisar em terreno perigoso. Como seria ter aqueles lábios colados aos seus?
— É muito gentil de sua parte oferecer-me abrigo, sir — falou agitada, recolhendo o bornal onde guardava os poucos pertences. — Mas não posso me deter agora. Gostaria de encontrar meus parentes antes de ser obrigada a interromper a busca com a chegada das chuvas, pois as estradas tornam-se intransitáveis.
— Se a recuperação de Nigel for demorada, você poderá permanecer em Donncoill durante o verão. Meu irmão precisa desesperadamente de seus cuidados.
— Então, milorde, não é um convite e sim uma ordem.
Enlaçando-a pela cintura, Balfour a colocou sobre a sela sem esforço, pensando que umas boas refeições lhe fariam bem. Maldie Kirkcaldy pesava tanto quanto uma pluma.
— Com certeza sua estada em Donncoill lhe parecerá mais agradável se você considerar minha oferta um convite.
— Não sei se eu mesma engoliria essa mentira.
— Tente.
Sir Murray sorriu e Maldie sentiu o coração disparar. Não havia arrogância ou vileza naquele sorriso, apenas cordialidade e simpatia. Tensa, ela se deu conta de que não apenas a beleza física do cavaleiro representava um perigo, mas também a possibilidade de encontrar nele outras qualidades que nunca imaginara achar num homem. Temia não ser capaz de guardar seus segredos, temia abrir o coração.
— Como quiser, milorde. E quando seu irmão melhorar poderei partir?
— Claro — Balfour retrucou, perguntando-se por que fora tão difícil concordar.
— Então cavalguemos sir. O sol não tardará a se pôr e seu irmão não reagirá bem ao frescor da noite.
O grupo retomou a marcha. Caminhando junto à liteira de Nigel, Balfour observou a perícia com que Maldie conduzia seu cavalo. De fato, o garanhão mostrava-se atento às palavras que a jovem murmurava aos seus ouvidos e obedecia ao menor comando sem hesitar.
— A moça também tem jeito para lidar com animais — ele comentou, notando que Nigel acompanhava a cena.
— Sim. Cavalos e homens.
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— Por que Maldie Kirkcaldy o incomoda? É evidente que os cuidados dela lhe proporcionaram alívio.
— Sim, a dor diminuiu. Não questiono suas habilidades na arte da cura. É uma mulher bonita, com os olhos mais lindos que jamais vi. Porém, não a conhecemos. Creia-me, essa moça guarda segredos.
— E por que ela deveria nos contar tudo a respeito de si?
Afinal, tampouco nos conhece. E natural que aja com cautela.
— Rezo para que seja apenas cautela, não dissimulação. Vivemos uma época perigosa demais para depositarmos nossa confiança em estranhos tão rapidamente, ainda que essa estranha tenha um lindo rosto. Um passo em falso agora poderia custar à vida de Eric.
Balfour cerrou os punhos. Nigel tinha razão. Não era um bom momento para se deixar influenciar pelos encantos de uma mulher. Embora não pudesse, ou não quisesse voltar atrás na decisão tomada, seria cuidadoso quando chegassem a Donncoill. Sua família já sofrera as consequências da luxúria impensada. Não pretendia repetir os erros de seu pai.
Ao vencerem a barreira composta de árvores centenárias, Maldie avistou, pela primeira vez, os contornos de Donncoill. O castelo erguia-se no alto de uma colina, tão inexpugnável quanto ameaçador. As vastas terras que o cercavam pareciam férteis, capazes de suprir os Murray com uma fartura invejada por muitos escoceses. Entretanto, bastou-lhe um breve olhar para concluir que não se cultivavam os campos como deveriam. As guerras constantes consumiam o tempo e o esforço que, em outras circunstâncias, seriam dedicados à agricultura.
Quando os homens entenderiam que as rixas e as batalhas infindáveis lhes roubavam o essencial?
Depressa, Maldie afastou os pensamentos melancólicos e concentrou a atenção na fortaleza. Circundado por altas muralhas de pedra, Donncoill não mostrava haver sofrido a mesma negligência das terras que o rodeavam. Pelo contrário. Imponente com suas torres quadradas, a velha estrutura, além de bem conservada, ganhara novas alas que conservavam a harmonia da arquitetura original. Sua mãe costumara entretê-la contando histórias sobre os magníficos castelos da França e Inglaterra. Pois começava a se perguntar se lorde Balfour não visitara tais lugares, tamanho o esplendor de Donncoill.
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— Ainda há muito que fazer aqui, porém o trabalho prossegue a passos lentos — disse Balfour, surgindo ao seu lado de repente e segurando as rédeas do cavalo.
Esforçando-se para controlar o nervosismo, provocado pela simples proximidade da figura máscula, ela murmurou:
— Talvez você deveria deixar sua espada embainhada com mais frequência.
— Eu ficaria feliz se fosse possível. Receio que Beaton não partilhe de meu desejo de paz.
— Você fala de paz e marcha para a guerra. Duvido que Beaton o tenha convidado para um confronto.
— Oh, convidou, sim. Mesmo se houvesse enviado um emissário, o recado não teria sido mais claro. O canalha sequestrou Eric, meu irmão mais jovem, numa emboscada dentro de minhas terras.
— E depois foi só aguardar sua chegada aos portões de Dubhlinn.
— Sim — Balfour admitiu, um pouco embaraçado com a própria estupidez. — Desde o princípio eu sabia que nosso ataque precipitado seria um erro, mas também sabia que não abandonaria Eric nas mãos daquela gente. Tentei falar com Beaton antes de iniciar o ataque, para resolver a questão sem derramamento de sangue. O infame me levou a acreditar que aceitaria um acordo e me fez chegar mais perto das muralhas. Naturalmente tratava-se de uma armadilha. Ele me queria perto para dar aos seus arqueiros oportunidade de me atingirem com maior facilidade. O plano quase deu certo. Por sorte, ordenando a retirada, consegui evitar que meus homens fossem massacrados.
— Você não deveria nem ter marchado para Dubhlinn.
— Você não compreende. — Por um instante Balfour indagou-se por que estava se dando ao trabalho de justificar suas ações perante uma estranha. Então percebeu que simplesmente gostava de conversar com ela. E ao analisar o ocorrido em voz alta, tentava explicar o amargo fracasso a si mesmo. — Meus homens estavam encolerizados por causa da ação traiçoeira dos inimigos e ansiosos para arrancar-lhes sangue. Decididos a ir às últimas consequências, perderam a capacidade de raciocinar com clareza e demorei para fazê-los recobrar a razão. Apenas quando Nigel foi atingido é que ouviram minhas ordens para recuar.
— E Beaton continua mantendo seu irmão prisioneiro.
— Apesar de não querer, Maldie sentiu na carne a angústia do cavaleiro. Preferia não se preocupar com atribulações e problemas alheios, quando mal conseguia lidar com os seus.
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— De fato. Porém, pelo menos, Eric agora sabe que os Murray lutarão para libertá-lo.
— Por que o menino pensaria diferentemente? Afinal, é seu irmão.
Por um segundo Balfour hesitou. Então concluiu não haver necessidade de guardar segredo.
— Eric é meu meio-irmão. Filho de meu pai e da última mulher de Beaton. Quando Eric nasceu, Beaton, para se vingar da esposa adúltera, abandonou-o numa colina para morrer. Um dos nossos o encontrou. Não tardamos a descobrir a verdadeira identidade da criança e o motivo da selvageria.
— A partir daí acentuou-se o desentendimento entre os clãs.
— Sim. O que fora rixa, transformou-se em conflito armado. A morte de meu pai não pôs fim à discórdia. E agora, há desdobramentos inesperados. Porque não foi capaz de gerar um filho varão, Beaton quer proclamar Eric seu legítimo herdeiro e usá-lo como escudo para se proteger dos que tentam lhe tomar o poder. Temos que resgatar Eric antes que a doença de Beaton lhe roube o resto das forças e o deixe à mercê dos adversários políticos.
— Beaton está morrendo?
Maldie mordeu o lábio inferior até sangrar. E sua reação suspeita à notícia não passou despercebida a sir Murray. Sua voz soara por demais áspera, por demais exaltada. A idéia de que a doença de Beaton acabasse impedindo-a de vingar-se a enraivecia e alarmava. Se Beaton morresse de causas naturais, não poderia cumprir a promessa feita à mãe.
— Sim, é o que me informaram — respondeu Balfour, observando-a com evidente curiosidade. Qual seria o motivo da súbita emoção estampada no rosto adorável?
— Desculpe-me, sir, mas por um breve instante só consegui pensar em como você ergueu a espada contra um idoso desenganado. — Esperava que sua mentira soasse convincente. Não era hora de confessar a verdade ao cavaleiro. — Então lembrei-me do tormento de seu irmão.
— Você não tem muita fé na honradez dos homens, não?
— Nunca tive motivos para tal. — Ao cruzarem os portões de Donncoill, Maldie mudou de assunto. — Com certeza num castelo desse porte existe uma pessoa capacitada para cuidar dos doentes. Não creio que você precise realmente de mim.
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— Tínhamos uma excelente herborista, falecida há dois anos. Ela tentou treinar uma sucessora, que revelou não possuir nem aptidão, nem habilidades para o exercício da função. Essa mulher sempre usa sanguessugas no tratamento de quaisquer enfermidades. Com frequência pergunto-me se sua incompetência não apressou a morte de meu pai.
— Sanguessugas — Maldie repetiu, balançando a cabeça. — Reconheço sua utilidade, embora costumem ser aproveitadas erroneamente. Seu irmão, por exemplo, já sangrou bastante e expeliu todas as impurezas e veneno do corpo. O uso de sanguessugas no caso não só seria inadequado, como perigoso.
— É o que penso.
— Mas, não desejo ofender sua herborista.
— Isto não acontecerá. Ela não gosta do trabalho e só o faz por causa do prestígio. Será fácil arrumar-lhe outra tarefa que lhe dará a mesma posição de honra entre as outras mulheres.
No pátio interno da fortaleza, uma multidão os esperava. Logo choros convulsivos enchiam o ar e Maldie tentou, desesperadamente, cerrar os ouvidos às lamentações. Desde menina, partilhara a dor dos outros e o sofrimento daqueles que haviam perdido um ente querido em batalha.
Pela milésima vez, desejou que sua mãe a tivesse ajudado a aprender como se proteger desses ataques emocionais. Não estava sendo ingrata. Fora essa mesma habilidade que lhes permitira conseguir algum dinheiro de tempos em tempos. Inspirando fundo, Maldie procurou se acalmar para suportar a invasão dos torturantes sentimentos alheios.
— Você está doente? — Balfour indagou preocupado, notando sua palidez extrema ao ajudá-la a desmontar.
— Não, somente cansada. — Maldie virou-se para o ferido. — Seu irmão deve ser posto na cama. A jornada na liteira foi dura e a noite não demorará a cair.
— Creio que você também precisa repousar.
— Ficarei bem. Seu cavalo é um ótimo animal, porém não estou acostumada a montar. É natural sentir-me exausta. Mas não tema, sir. Estou em condições de cuidar de seu irmão e lançá-lo de volta à luta.
Sorrindo de leve, Balfour observou-a seguir os homens que carregavam Nigel com passadas rápidas e decididas. Por um momento ela lhe parecera tão afetada pela
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tristeza que a cercava, tão abalada pelo sofrimento alheio, que receara vê-la desmaiar. Então, ainda pálida e trêmula, retomara a impertinência que lhe era peculiar. Nigel tinha razão. Algum mistério a envolvia. Numa fração de segundos, a jovem saltava da compaixão ao escárnio. Também houvera aquela reação esquisita à notícia da morte iminente de Beaton. A explicação oferecida pela pequenina Maldie Kirkcaldy não o convencera. Entretanto, continuava desejando-a mais do que deveria mais do que sabia ser sensato. Mas esse desejo não o cegaria, não o faria se esquecer da cautela. Com a vida de Eric em jogo, não podia permitir que a paixão calasse a sabedoria. Maldie Kirkcaldy guardava alguns segredos e, mesmo tentando satisfazer o desejo que o consumia, iria descobrir que segredos eram esses.
Capítulo II
Levantando-se, Maldie deixou escapar um pequeno gemido, o corpo dolorido de cansaço. Aliviada, notou que Nigel continuava a dormir, indiferente ao ruído. Durante três longos dias e noites estivera lutando para livrá-lo da febre, permitindo-se apenas breves períodos de descanso enquanto Balfour assumia seu posto à cabeceira do irmão. Por fim a febre cedera, mas preferira manter a vigília constante.
Caminhando até uma mesinha junto da janela estreita, serviu-se de um cálice de cidra. Não era fácil cuidar de Nigel sozinha, porém bastara cruzar com a herborista de Donncoill para decidir conservá-la a distância. Grizel tinha uma aparência imunda e a pele coberta de pústulas. Além do mais, exalava amargura e infelicidade. A mulher não apenas detestava a função que lhe coubera, como dava a impressão de odiar tudo e todos.
Tal tipo de pessoa, indiferente ao sofrimento alheio, jamais poderia se dedicar à arte da cura, não importando quanto conhecimento possuísse sobre o assunto. Para ajudar alguém, precisava-se, acima de qualquer coisa, desejar proporcionar alívio, suavizar a dor. Antes de partir de Donncoill teria que explicar o problema a Balfour, para que Grizel não retomasse aquela posição de extrema responsabilidade. Gostaria de achar uma substituta para a função enquanto ainda estivesse no castelo.
Pensativa, Maldie tornou a encher o cálice de prata. Agora que Nigel melhorara, descobria-se relutante em sair de seus aposentos, pois isso significaria enfrentar Balfour sem usar o doente como um escudo. Nunca vacilara em seu dever de herborista e
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devotara-se inteiramente à recuperação de Nigel. Mas reconhecia haver se escondido atrás do enfermo sempre que o lorde de Donncoill se aproximava.
Tamanha covardia a irritava e assustava. Ao entrar no quarto do irmão, Balfour não tentara tocá-la em nenhum momento, toda a atenção concentrada em Nigel. Entretanto, um simples olhar do cavaleiro fazia seu sangue ferver nas veias. Apesar da exaustão, pouco conseguira descansar quando Balfour estava por perto, a figura viril e sensual roubando-lhe o sossego.
Embora ele a tratasse com a mais absoluta cortesia, estava claro que a desejava. E ela, apesar de querer o contrário, não conseguia ficar indiferente à presença máscula, cada nervo vibrando de antecipação. A situação perigosa ameaçava escapar ao seu controle. Como lidar com essas sensações estranhas? Até quando resistiria aos apelos do corpo? Talvez devesse ter ficado escondida atrás do arbusto, à margem da estrada.
— Começo a pensar que cometi um sério erro — Maldie murmurou, suspirando fundo.
— Não, não creio. Meu irmão me parece muito melhor — soou uma voz profunda às suas costas.
Agitada, ela virou-se, quase derrubando o cálice no chão.
— Você me assustou, milorde.
Balfour sorriu, deliciando-se com o nervosismo da jovem. No início, perguntara-se se causava medo a Maldie Kirkcaldy. Logo, porém, descartara a possibilidade. Não era temor o que via estampado naqueles maravilhosos olhos verdes e sim um reflexo de seu próprio desejo. Ah, como gostaria de saber se a origem dessa inquietude estava na inocência da donzela, ou no receio de ceder à óbvia atração mútua. Esse conhecimento o ajudaria a decidir qual seria seu próximo passo. Não, não era verdade. Não importava como Maldie se sentia a respeito da situação. Desejava-a e pretendia possuí-la.
— Vamos, não sou tão assustador assim. — Incapaz de conter-se, estendeu a mão e acariciou suavemente os cabelos negros e brilhantes.
Apesar da leveza do toque, Maldie estremeceu. Lorde Murray não precisava falar nada, suas intenções eram evidentes. Nervosa, afastou-se.
— Não estou com medo de você, sir — mentiu, colocando o cálice vazio sobre a mesa. — Apenas considero essa situação um tanto aflitiva. Ensinaram-me que não devo ficar sozinha num quarto com um homem que pouco conheço. — A solução para esse problema é simples.
— Oh, é mesmo? Então você está de saída?
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— Não, milady. Você me conhecerá melhor. — Reparando na expressão desgostosa da jovem, completou:
— Não será uma experiência desagradável, acredite-me. E você não pode se esconder aqui o tempo todo.
— De fato. Permanecerei em Donncoill até seu irmão se recuperar. Depois, partirei.
— Talvez sejam necessários meses para a completa recuperação de Nigel. Ele já não precisa de cuidados constantes. Você gostará de apreciar a primavera.
— Posso apreciar a beleza da primavera de minha janela — ela devolveu cautelosa.
— É verdade. Os encantos da estação devem ser saboreados de perto. Não há nada que se compare ao prazer de sentir a brisa suave roçar nossa pele. — Devagar, Balfour tornou a acariciá-la nos cabelos de um modo quase íntimo. — O ar perfumado nos acalma e dissipa o mau humor.
— Não estou nervosa, nem mal-humorada. — De mãos nos quadris, ela deu um passo atrás e fitou-o, altiva. — Se pareço irritada é porque não costumo fazer este tipo jogo.
— De que jogo você está falando, moça? Não estou fazendo jogo nenhum. — Apesar de se esforçar para mostrar inocência, Balfour concluiu não tê-la enganado.
— Você não sabe mentir. Está flertando comigo, me provocando, fazendo o jogo da sedução.
— Talvez você tenha me interpretado mal.
— Não. Conheço essa estratégia muito bem. — Só de pensar nas maneiras sutis, e mesmo brutais, que os homens tinham utilizado para tentar levá-la para a cama a enfurecia. — Muitos já se valeram dessas táticas antes.
— E falharam? — Para seu assombro, Balfour surpreendeu-se ao desejar que ela fosse intocada. Não deveria importar-lhe se uma estranha fosse inocente, ou não. Mas importava!
Boquiaberta, Maldie não conseguia acreditar nos próprios ouvidos. Os homens, em geral, consideravam qualquer moça pobre amoral e ficavam intrigados quando constatavam o contrário. Não julgara lorde Murray um tipo preconceituoso, por isso o pasmo diante da pergunta insultuosa.
Recusando-se a se deixar dominar pela fúria cega, Maldie procurou analisar a situação com imparcialidade. A última coisa que gostaria de descobrir era que Balfour,
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como muitos anteriormente, acreditavam-na uma vadia, apenas por ser pobre. Então, aos poucos, percebeu o que se passava. Ele não pretendera afrontá-la, ou desmerecê-la. Agira movido pela raiva, medo e uma relutante curiosidade. Quase como se quisesse escutá-la responder "sim" para se libertar de sentimentos incômodos e confusos.
— Claro que falharam — retrucou áspera. — Como você bem sabe, não desfrutei da riqueza e dos confortos que sempre o cercaram, milorde. Fui criada num mundo mais duro. Sim, muitos homens crêem que uma moça simples nunca se recusa a fazer qualquer coisa em troca de algumas moedas e que deve agradar aos membros de uma classe social superior. Quanto a mim, escolhi aprender a me defender, em vez de desempenhar o papel de prostituta.
— Não era minha intenção ofendê-la.
— Talvez não, no entanto foi o que aconteceu.
— Neste caso, imploro seu perdão. — Galante Balfour tomou a mão pequenina entre as suas e beijou-a.
— Se seu pedido de desculpas fosse sincero, você não continuaria tentando me cortejar. — Antes de perceber o que se passava, Maldie viu-se aprisionada entre os braços fortes. — Você acabou de se desculpar e agora pretende me insultar novamente — acusou-o, tentando se libertar.
— Não, apenas pretendo beijá-la.
Balfour tinha plena consciência de estar ignorando os limites impostos a um cavaleiro honrado. Apesar de possuir algum conhecimento do mundo, Maldie preservara a inocência. Os costumes exigiam que a tratasse com grande respeito. Por que, então, não conseguia controlar o impulso de beijá-la? Seria um erro agir assim com a bela e arredia Maldie Kirkcaldy. Mas era fraco demais para superar a tentação. Desde o primeiro momento, quisera sorver o gosto da boca carnuda. Só esperava não vir a pagar caro pela ousadia.
— Você está indo longe demais, sir.
Maldie pretendera falar num tom firme, cortante, porém sua voz soara rouca, trêmula. O instinto lhe dizia que se oferecesse alguma resistência, seria respeitada. Mas, não tinha forças para repeli-lo. Embora relutante, e odiando a própria fraqueza, admitia desejar ser beijada. E ansiava retribuir a carícia.
No instante em que os lábios de ambos se tocaram, Maldie soube haver perdido toda a chance de escapar. Em transe, permitiu que a língua imperiosa invadisse sua boca e a arrastasse rumo ao desconhecido. Sensações que nunca se imaginara capaz de
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experimentar subjugaram-na, apagando temores e inseguranças. O mais assustador, era descobrir que seu desejo se igualava à de lorde Murray.
Quando ele afastou-se alguns centímetros para respirar, protestou baixinho, inconformada com a separação. Logo seus corpos estavam colados, a extensão do desejo masculino não lhe passando despercebida. Enquanto Balfour cobria seu pescoço de beijos ardentes, Maldie, instintivamente, pressionou sua coxa junto a ele, exultando ao escutá-lo gemer de prazer.
— Ah, você é tão doce — Balfour sussurrou, beijando-a nos olhos, no nariz, na testa, na boca.
Silenciosamente ele se recriminou pela má escolha das palavras. O jeito como Maldie o fazia sentir-se merecia elogios maiores, versos capazes de emocionar uma muralha de pedra. Mas, mesmo se possuísse o dom da oratória, não conseguiria usá-lo no momento. O gosto, o cheiro dela, as curvas sinuosas do corpo escultural o impediam de raciocinar com clareza. Só conseguia pensar numa coisa. Em torná-la sua.
— Maldie, linda Maldie — falou baixinho, puxando-a na direção da cama. — Você também está ardendo, não?
— Sim. Parece que fui enfeitiçada.
— Nós fomos enfeitiçados.
Beijando-se com sofreguidão, os dois esbarraram na cama e Nigel deixou escapar um queixume. O ruído trouxe Maldie de volta à realidade. Horrorizada com a ousadia do próprio comportamento, afastou-se de Balfour e caminhou até o lado oposto do quarto.
Graças a Deus, Nigel continuava dormindo e não testemunhara a cena chocante. Agira de forma irresponsável e não sabia a quem culpar. Lorde Murray, por tê-la quase seduzido sem grande esforço, ou a si mesma, por permitir-lhe chegar a esse ponto com um único beijo.
— Por que você ainda está aqui? — interpelou-o furiosa, alisando as roupas num gesto repleto de nervosismo.
Com as costas voltadas para a enorme lareira, Balfour não parecia nem um pouco arrependido, muito pelo contrário. Na verdade, lamentava apenas a brusca interrupção das carícias e a certeza de que não tornaria a tocá-la naquela noite. Maldie reassumira a postura fria e inacessível de antes. Para impedir que aquela frieza se transformasse em ressentimento, precisava fazê-la compreender, e admitir, que ela estivera em seus braços de livre e espontânea vontade. Sim, roubara o primeiro beijo.
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Mas, o que acontecera depois, fora consentido. Não a forçara a nada. A paixão mútua simplesmente explodira, incontrolável.
— Até minutos atrás eu era bem-vindo — Balfour retrucou, mantendo o tom de voz propositadamente calmo e agradável.
Desconfortável, Maldie enrubesceu. Impossível negar a verdade. Não somente aceitara os beijos avidamente, como os retribuíra com igual vigor. Entretanto, um cavalheiro não deveria lembrá-la de que não possuía fortaleza moral. Jamais teria descoberto o quanto fraca era se lorde Murray não houvesse roubado o primeiro beijo. Antes dos lábios sensuais tocarem os seus, apenas suspeitara de que seria incapaz de resistir-lhe. Agora sabia - o com certeza.
— Pois você já não é bem-vindo — devolveu ríspida, odiando-se por soar como uma criança emburrada. — Como pode ver, tenho muito trabalho à minha espera.
— Ah, sim. Você precisa ficar assistindo a Nigel dormir. — As palavras destilavam fina ironia. — Ora, enfrente a verdade. Você quer que eu vá embora porque a fiz sentir a mesma paixão que me domina. Ardemos de desejo um pelo outro e você teme que, permanecendo aqui, eu reacenda esse fogo que nos consome.
— Tanta arrogância. Tanto descaramento. Você me enganou. Eu disse "não" para aquele primeiro beijo e fui ignorada. Como todos os homens, você não hesitou em tomar o que queria.
— Sim, aceito a culpa pelo primeiro beijo. — De cabeça erguida, Balfour caminhou até a porta e abriu-a. Então, virou-se para fitá-la. — Mas você, moça, deu-me o segundo, um beijo tão voraz quanto o meu havia sido. Sim, você provavelmente tentará negar o inegável assim que me vir pelas costas, porém não a considero uma mulher dissimulada, que aprecie mentiras. Você me deseja Maldie Kirkcaldy, tão avidamente quanto a desejo. Nós dois o sabemos.
Quando a porta se fechou, Maldie sentou-se no tapete diante da lareira, fumegando de raiva. Oh, como adoraria ter conseguido responder à altura da provocação. Permanecera muda, imóvel como uma tonta. O insolente dissera tudo o que quisera e se retirara sem que ela esboçasse qualquer reação em defesa própria. Sem que encontrasse justificavas para aquele acesso de loucura.
O que realmente a preocupava e enfurecia, contudo, era reconhecer que sir Murray tinha razão. Podia chamá-lo de arrogante, indelicado e vaidoso, mas nada mudava o fato de que ele estava certo. Desejava-o com todas as forças. Queria-a de
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corpo e alma. Ficara cega de paixão quando haviam se beijado e não seria justo obrigá-lo a assumir sozinho a culpa pelo que ocorrera. E pelo que quase chegara a ocorrer.
Entretanto, fora o que fizera. Sempre achara fácil ridicularizar a paixão, sempre rira e afastara os homens que ten¬tavam assediá-la. A indiferença com que tratava aqueles que procuravam conquistá-la a tornara por demais segura de si mesma e acabara imaginando-se forte o suficiente para não repetir as tolices da mãe. Balfour aniquilara essa segurança. Destruíra sua autoconfiança. Com um único beijo, obrigara-a a se ver como qualquer outra mulher, fraca e vulnerável. Agora, não somente o acusava de forçá-la a aceitar a incomoda revelação, como passara a temer sua proximidade. Viera a Donncoill buscar auxílio na sua campanha contra Beaton, não para se transformar na amante do senhor do castelo.
Quando Nigel estivesse em condições de cuidar-se sozinho, teria de tomar uma decisão. Ou se aliaria aos Murray na cruzada contra Beaton, ou fugiria da tentação representada por lorde Balfour. Já não alimentava dúvidas de que permanecer em Donncoill significaria perder a inocência.
E, principalmente, o coração. Perguntava-se se não seria um preço alto demais a pagar pela ajuda na destruição de Beaton.
Balfour inspirou fundo, os olhos fixos no horizonte. Estava agindo como um adolescente apaixonado e isso o incomodava. Simplesmente não conseguia parar de pensar em Maldie, no gosto delicioso dos lábios rosados, na sensualidade do corpo mignon e escultural. Deixara-a uma hora atrás e ansiava tornar a vê-la, abraçá-la, beijá-la. Apenas a certeza de que cometeria um sério erro caso cedesse ao impulso, o segurava. Ela levaria algum tempo para aceitar, e assimilar, o que acontecera entre os dois.
— Assim como eu — ele falou baixinho, debruçando-se sobre o parapeito da muralha.
Nunca mulher alguma o fizera experimentar uma paixão tão violenta, nunca mulher alguma lhe roubara a capacidade de raciocinar com clareza. E raciocinar com clareza era essencial neste momento, quando a vida do jovem Eric estava em jogo.
— Nigel piorou? — perguntou James, aproximando-se.
— Não. A febre cedeu e ele dorme.
— Foi o que me disseram. Porém sua expressão sombria me levou a imaginar o contrário, milorde.
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— Não é a saúde de meu irmão o que me preocupa agora, e sim a herborista.
— Uma moça bonita — comentou o mestre de armas, observando o outro com atenção.
— Bonita demais. Doce demais. Tentadora demais.
— E disponível demais. Pensativo, Balfour balançou a cabeça.
— É verdade. Precisávamos desesperadamente de uma herborista em Donncoill e, como num passe de mágica, lá estava Maldie Kirkcaldy, à beira da estrada. Uma bênção, ou uma armadilha? Sei que, às vezes, em casos de extrema necessidade, Deus ouve nossas preces e realiza um milagre. Contudo, não posso correr o risco de acreditar em milagres agora. Há muita coisa em risco.
— Talvez você devesse mandá-la embora.
— Seria a atitude sensata. Ela mesma afirmou pretender partir tão logo Nigel esteja recuperado. A razão me diz ser melhor assim. Mas receio não haver aprendido nada das muitas tolices de meu pai. Desejo a moça e é tudo em que consigo pensar.
— Não, não é tudo, porque você sabe que essa estranha guarda segredos. E há perguntas que devem ser respondidas.
— De fato. Mas quando estou junto de Maldie, não penso em arrancar nenhuma resposta.
— Então eu cuidarei do problema. Balfour hesitou por um breve instante.
— Meu orgulho me obriga a querer resolver o assunto sozinho. Felizmente, o bom senso fala mais alto. O fascínio que aquela mulher exerce sobre mim me impediria de agir com imparcialidade. Não sei se eu poderia tomar as decisões acertadas. Descubra o que puder. Maldie Kirkcaldy surgiu num momento de necessidade, e também numa época de conflito. Talvez seja um belo anjo da misericórdia. Ou então uma serpente introduzida em nosso meio pelo inimigo. Não há dúvidas de que guarda muitos segredos, segredos que podem vir a comprometer nossa segurança. Não demore muito para descobri-los, velho amigo. Confesso que ao mergulhar naqueles olhos verdes, meu sangue ferve nas veias e minha vontade fraqueja. Descubra a verdade, antes que eu esteja por demais envolvido para acreditar em qualquer coisa negativa sobre Maldie Kirkcaldy.
— Você cuida bem de mim — disse Nigel, enquanto Maldie o ajudava a sentar-se na cama e colocava vários travesseiros às suas costas para proporcionar-lhe maior conforto. — Eu teria morrido se você não houvesse me socorrido.
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Ela se retraiu quando Nigel a enlaçou pela cintura. Livre da febre há cinco dias, o cavaleiro vinha cercando-a de atenções que tanto a incomodavam quanto assustavam. Bastara recuperar a força no braço, para Nigel começar a tocá-la. Sim, toques sutis, inofensivos, facilmente desculpáveis, exceto pela crescente frequência. Também os olhos cor de âmbar a fitavam com excessivo calor.
A última coisa da qual precisava era de outro Murray tentando arrastá-la para a cama, pensou, esquivando-se com a desculpa de apanhar a bandeja que a criada deixara sobre a mesa perto da janela. Nigel a estava assediando de modo muito mais doce e cortês do que Balfour, tratando-a como um nobre deveria tratar uma verdadeira dama. Porém, apesar da gentileza e das palavras galantes daquele homem extraordinariamente bonito, não se sentia nem um pouco atraída.
— Acho que vou necessitar de seu auxílio para comer o ensopado — ele falou, ajeitando a bandeja no colo.
Embora o julgasse perfeitamente capaz de se alimentar sozinho, Maldie atendeu ao pedido e sentou-se na beirada da cama. Em segundos, uma das mãos masculinas pousava em seu joelho com naturalidade. Apesar de o toque desagradar-lhe, resolveu não repudiá-lo de imediato. A febre alta e os ferimentos profundos haviam sugado as energias de Nigel e existia a possibilidade de que ele receasse não conseguir manejar a colher com eficiência. Por considerar o enfermo inofensivo, resolveu não discutir o pedido.
— Por que você está procurando seus parentes aqui? O clã Kirkcaldy fincou raízes a muitos quilômetros de Donncoill.
— Sim, eu sei. Não me perdi se é o que você está pensando. Apenas não queria encontrá-los.
— Por quê? — Nigel tossiu quando Maldie, não muito gentilmente, meteu-lhe um pedaço de pão na boca. — É uma pergunta razoável — protestou, sorrindo ao percebê-la irritada.
— Talvez. Os Kirkcaldy não me desejariam por perto. Afinal, sou pobre e tenho tido uma vida dura.
— Como vários dos Kirkcaldy, sem dúvida.
— Sim. Mas, o que ainda não lhe contei sir, é que sou ilegítima. — Apesar da surpresa, não havia desdém, ou desgosto, no olhar do cavaleiro. — Minha mãe, filha mais velha de lorde Kirkcaldy, deixou-se convencer a se afastar da família. O homem
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que a seduziu já era casado e, quando a pobre ingênua engravidou, abandonou-a. Envergonhada, ela não teve coragem de voltar para a família.
Não correria riscos contando essa parte da verdade, Maldie decidiu. Porém, guardaria segredo sobre o nome do canalha. Também omitiria o detalhe de que ele só as abandonara depois de seu nascimento, ao constatar não ser a criança o menino que ansiava gerar. Revelar o nome de seu pai lhe criaria mais problemas e, talvez, a expusesse a um perigo maior.
— Você pode ter julgado mal os Kirkcaldy. — Nigel usou ambas as mãos para levar o cálice de vinho à boca. — E possível que não se importem com sua ilegitimidade. Provavelmente o medo de sua mãe, de que fossem rejeitadas, resulte do próprio sentimento de culpa e vergonha. Talvez você devesse voltar para se casar e conversar com ela.
— Não posso. Minha mãe morreu.
— Lamento sua perda. Então você está à procura da família de seu pai?
— Não. O maldito nunca demonstrou interesse em mim. E o sentimento é recíproco. — Inquieta Maldie levantou-se abruptamente. — Você já terminou?
Retirando a bandeja do colo do enfermo, colocou-a sobre a mesa perto da janela. Estava claro que responder a umas poucas perguntas não satisfaria a curiosidade de Nigel. Apesar de cuidadosa, suas respostas davam à impressão de provocar outras indagações. Não seria fácil continuar guardando seus segredos sem levantar suspeitas. Se resolvesse permanecer em Donncoill, e se envolver na luta contra Beaton, seria obrigada a inventar uma história sobre seu passado, uma história detalhada, bem elaborada o suficiente para ajudá-la a enfrentar perguntas indiscretas. Mas não sabia se conseguiria inventar uma mentira tão complicada. Ou se sentiria-se à vontade sustentando-a.
Quando Balfour entrou no quarto, pondo fim ao interrogatório de Nigel, Maldie experimentou um alívio inesperado. Desde que haviam se beijado, fizera o impossível para evitá-lo. Embora se limitasse a tratá-la com a mais respeitosa deferência quando visitava o irmão enfermo, o brilho intenso dos olhos escuros deixava claro que lorde Murray não tardaria a tomar uma atitude.
Com os nervos à flor da pele, ela tentou escapar do aposento. Mãos firmes a seguraram pelo braço.
— Eu ia deixá-lo a sós com sir Nigel — Maldie murmu¬rou, tentando, em vão, livrar-se dos dedos que a seguravam feito tenazes.
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— Apesar de não desejar ferir os sentimentos de meu irmão — disse Balfour, sorrindo —, vim buscá-la.
— Por quê?
— Está na hora de você tomar um pouco de ar fresco, de saborear a primavera.
— Já tomei ar fresco suficiente quando andei de Dundee até aqui.
— Mas o tempo não estava tão bom. O céu está mais azul agora, o sol mais quente.
— Seu irmão pode precisar de alguma coisa.
— Sim — concordou Nigel com tamanha pressa, que Balfour parou para fitá-lo atentamente. — Não acho que devo ser deixado sozinho.
— Você não ficará sozinho. A velha Caitlin já está a caminho, ansiosa para lhe fazer companhia. — Ouvindo o outro praguejar por entre os dentes, sorriu. — A coitada mal pode esperar para passar algumas horas cuidando de seu "lindo bebê".
— Que história é essa? — Maldie indagou curiosa, assim que os dois saíram para o jardim.
— A velha Caitlin foi babá e ama de leite de Nigel. Ela ainda o vê como um menino e o trata como tal. E por que você concordou em vir comigo, depois de passar dias e dias me evitando?
Por um instante Maldie pensou em falar a verdade, em contar que Nigel a estava assediando. Simplesmente fizera uma escolha entre os dois irmãos que tentavam levá-la para a cama. Havia uma chance de pôr um ponto final nas investidas de Nigel antes de qualquer confronto desagradável. Aceitar a companhia de Balfour, que nunca disfarçara o quanto a desejava, deveria contribuir para Nigel desistir da empreitada.
Não, não diria nada a Balfour. Já enfrentava problemas suficientes em Donncoill sem lançar um irmão contra o outro ou, ainda pior, sem incitá-los a alguma espécie de competição masculina, em que ela seria o prêmio.
— Não estive evitando-o.
— Esteve sim. Escapando sempre que me via, como uma gatinha tímida.
— Você se julga mais importante do que é, milorde. Por que sua presença me incomodaria?
— Correndo como uma coelhinha assustada, em busca de um refúgio seguro?
— Eu apenas pretendia dar a você e seu irmão oportuni¬dade de conversarem em particular.
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— Como uma pequena raposa, fugindo de cães perdi¬gueiros?
— Logo lhe faltarão comparações com animais, sir.
Balfour riu com prazer.
— Esquivando-se para dentro das sombras, como um bi¬chinho inseguro?
— Espere um momento — Ela o encarou, irritada. — O que houve com "escapando", "correndo", "fugindo"?
— Você não gosta do termo "esquivar"?
— Não tenho medo de você, lorde Murray.
Segurando-a novamente pelo braço, ele retomou a caminhada.
— Não mesmo? Então por que me evita? Por que não sou tão bonito quanto Nigel?
No instante em que percebera o desejo estampado nos olhos do irmão, Balfour lutara contra o impulso de arrastar Maldie para longe e escondê-la, agindo como um menino enciumado que não quer dividir seu brinquedo favorito com ninguém. Desde quando tivera idade bastante para se interessar pelo sexo oposto, percebera a preferência das damas por Nigel, cujo rosto perfeito, personalidade extrovertida e admirável habilidade com as palavras as encantava. Todas suspiravam pela beleza de Nigel, elogiavam seu charme e modos envolventes. Uma delas até lhe dissera que amante nenhum superava o desempenho de Nigel na cama. Com o tempo, Balfour aprendera a aceitar a superioridade do irmão em relação às mulheres. Porém, quando o vira sorrir sedutoramente para Maldie, o velho ciúme voltara. Tivera que lutar para manter-se em silêncio, para sufocar a insegurança enquanto os observava juntos. Na verdade, não notara nenhum sinal de que Maldie se interessasse por Nigel, mas queria ouvi-la afirmar em voz alta.
— Não creio que existam muitos homens na Escócia tão bonitos quanto Nigel. — Seu comentário dava a impressão de haver ferido Balfour, pensou, entre surpresa e curiosa. — Talvez sequer no mundo inteiro. Seu irmão é mesmo um homem lindo.
— As moças sempre o perseguiram.
— Imagino que sir Nigel nunca tenha precisado correr atrás das mulheres, ou se esforçar para conquistá-las.
— Quanto duramente ele terá que se empenhar para conquistar você?
Lorde Murray estava com ciúme, Maldie concluiu, com uma pontada de orgulho. Reparando na maneira como Nigel a fitava, ele deduzira que, a exemplo de muitas outras, ela sucumbiria ao fascínio exercido por aquele rosto bonito, pelo sorriso
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devastador e palavras doces. Embora tal demonstração de ciúme a envaidecesse, também a insultava. Entretanto, não era difícil compreender que Balfour lidava com sentimentos antigos, velhas rivalidades fomentadas por mulheres imaturas ao longo de anos. Pois ali estava sua chance de rejeitá-lo, de pôr um ponto final nos avanços de sir Murray, fingindo ter sido cativada pelo charme de Nigel. Por que, então, se recusava a fazê-lo? Porque não queria jogar um irmão contra o outro? Não, não apenas por isso. Entendia muito bem a angústia de Balfour, havendo experimentado na pele a rejeição. Sendo pobre e ilegítima, fora, com frequência, ignorada, ou descartada.
— Muito duramente — respondeu, afinal.
— Verdade? Notei como meu irmão a olha.
— Ah, é uma pena. Eu esperava que sir Nigel acabasse curado dessa tolice antes que alguém percebesse. Ele sente-se grato a mim porque aliviei seu sofrimento. Não se esqueça de que, durante uma semana, seu irmão viu quase que exclusivamente meu rosto.
— Um rosto que qualquer homem teria prazer em contemplar.
Um calor intenso invadiu-a. Os galanteios de Nigel sempre a tinham deixado indiferente. Porém, bastara lorde Murray dizer que a achava bonita, para corar e derreter por dentro. Naquele momento deu-se conta de que seu coração traiçoeiro havia acolhido aquele homem severo e altivo. Não se tratava apenas de paixão carnal o que sentia, mas de algo mais profundo. E assustador.
De repente, ela se descobriu num canto isolado do jardim, aprisionada entre os braços fortes. Não fora levada para um passeio ao ar livre, para desfrutar de uma tarde primaveril, e sim para um lugar recluso, onde o senhor de Donncoill poderia lhe roubar um beijo.
O que realmente preocupava Maldie era sua incapacidade de repudiá-lo, de impedi-lo de continuar esse jogo de sedução. Deveria libertar-se do abraço, feri-lo com algumas palavras rudes e correr, o mais depressa possível, para a segurança do quarto de Nigel. Em vez de tomar uma atitude sensata, permaneceu paralisada como uma tola, enfeitiçada pela beleza do rosto másculo.
— Então era este seu plano desde o início — acusou-o, pousando as mãos sobre o peito largo num arremedo de resistência.
— Você está me acusando de me valer de artifícios para atraí-la até aqui? — A voz baixa e intensa soou como uma caricia aos ouvidos femininos.
— Sim, estou. Você o nega? — Maldie estremeceu ao ser beijada na nuca.
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— Não, não tramei nada, bela senhorita. Apenas cheguei à conclusão de que você precisava sair daquele quarto.
Quando Maldie abriu a boca para protestar, um beijo a calou. Apesar de saber estar cortejando o perigo, a pressão da língua imperiosa dissolveu todos os seus receios. Não tinha forças para recusar a caricia.
Num impulso incontrolável, enlaçou-o pelo pescoço e estreitou o contato de seus corpos. Assombrava-a que um simples beijo pudesse incendiá-los, levando-os a agir como animais no cio. Ainda beijando-a avidamente, Balfour a imprensou contra a parede da torre inacabada, obrigando-a a sentir o pulsar de seu corpo rígido. Enlouquecida de desejo, Maldie percebeu os dedos longos e ágeis desfazerem o laço de seu vestido e abaixarem o corpete até a cintura. Ao ter os seios expostos, ensaiou um protesto e quis afastá-lo. Mas no momento em que Balfour deslizou a língua ao redor de um dos mamilos e depois pôs-se a sugá-lo, o mundo lá fora parou de existir, as noções de certo e errado perdendo o significado. Como se de muito longe, Maldie escutou gemidos de prazer e, pasma, descobriu ser ela mesma a fonte dos sons desconexos. Durante intermináveis minutos, os dois se beijaram e se acariciaram com uma voracidade que beirava a selvageria, as mãos deslizando pelos corpos um do outro como que movidas por um desejo insaciável.
Risadas de crianças por fim penetraram o casulo de paixão no qual ambos tinham se fechado. Aos poucos, Maldie recobrou a razão, dolorosamente consciente de seu estado de seminudez. Murmurando palavras ininteligíveis, empurrou Balfour para longe, notando, então, que ele já havia se afastado, sem dúvida antecipando sua súbita mudança de humor. Enquanto se recompunha, ela se obrigava a pensar apenas em como estivera a ponto de perder a inocência encostada numa parede, a poucos metros de um pátio cheio de gente. Estava furiosa, consigo mesma e com lorde Murray.
Em silêncio, Balfour observou Maldie ajeitar as roupas, o sangue ainda fervendo nas veias. No segundo em que a sentira se retrair, precisara de toda a sua força de vontade para soltá-la. E embora soubesse ter feito a coisa certa, continuava ardendo de desejo. Porém a expressão furiosa da jovem deixava claro que não teria chance de voltar a experimentar o gosto daquela paixão tão cedo.
— Não sou nem um pouco melhor do que qualquer prostituta vulgar e ignorante — Maldie falou baixinho, procurando, em vão, arrumar os cabelos despenteados.
— Não. Uma prostituta não sente nada — devolveu Balfour, encostando-se na parede de pedras e cruzando os braços para não ceder ao impulso de tornar a agarrá-la.
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— Uma prostituta apenas se deita, suporta o que está acontecendo passivamente e estende a mão para receber o dinheiro.
— Pelo menos ela tem um objetivo: ser paga por seus serviços. Quanto a mim, ficou claro que basta um belo sorriso para me fazer abrir as pernas. — Maldie estava tão desgostosa consigo mesma, tão desapontada com a própria fraqueza, que o embaraço causado pela cena tórrida caíra para segundo plano. — Não sou melhor que minha pobre mãe. Vejo-me à beira de repetir as tolices dela porque herdei suas fraquezas.
— Assim como eu pareço inclinado a repetir as tolices de meu pai. Nunca agi desse modo antes. E você?
— Não! — Maldie exclamou horrorizada, sabendo que devia fugir dali antes que lorde Murray dissesse mais qualquer coisa. O homem possuía uma habilidade natural de falar as verdades. Verdades duras porque inegáveis.
— Meu pai se deitou com todas as mulheres atraentes que encontrou pelo caminho, convencido de que amava pelo menos metade delas. E espantoso que Donncoill não esteja repleto de seus bastardos. Quanto a mim, até hoje nunca havia precisado lutar para manter o sangue e a cabeça frios.
Qual era a fraqueza de sua mãe?
— Ela me gerou.
— Não creio que tenha sido uma tolice.
— Oh, mas foi sim. Sou filha ilegítima de um homem que não dava a menor importância aos sagrados votos matrimoniais, um canalha que abandonou minha mãe ao descobri-la grávida. — O olhar compassivo de Balfour quase a impeliu a abrir-se sem reservas. — Depois dessa experiência trágica, ela deveria ter se tomado mais cautelosa. Porém a cautela durou pouco. A infeliz sempre achava que o homem seguinte seria diferente. E, de certa forma, o foram. Muitos lhe deram presentes, ou dinheiro. Por fim, ela cessou de se importar, ou de sentir. Apenas aceitava o dinheiro.
— Nunca você será assim. Você é forte demais.
— Minha mãe era uma mulher forte. — Apesar de veemente, Maldie já não tinha tanta certeza. — Seduzida, usada e descartada por um crápula, transformou-se numa mulher sem coração, insensível como o monstro que a destruiu. Nenhum homem me arrastará para a lama. Não darei ouvidos a mentiras, nem sairei derrotada em jogos de sedução.
— Eu não minto. Tampouco estou jogando. O que há entre nós é pungente e doce. Está acima de nossas forças resistir.
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— Não. O que há entre nós é algo sem importância, mera atração carnal. Não me deixarei vencer.
Suspirando fundo, Balfour observou-a se afastar. Nada podia dizer para induzi-la a mudar de idéia. Porém, estava convencido de que ambos haviam sido subjugados por um sentimento que ia além da luxúria, do desejo. Ainda não compreendia muito bem a natureza desse sentimento novo.
Não sabia exatamente o que queria de Maldie, além de levá-la para a cama. Portanto, não podia lhe fazer nenhuma promessa. Se tentasse discutir o que sentiam, ela perceberia suas inseguranças e incertezas. Talvez até o acusasse de estar mentindo para seduzi-la.
Achavam-se num impasse, Balfour decidiu, rumando para o castelo. Um impasse terrível e assustador. Ambos temiam repetir os erros dos pais. Maldie perderia a virgindade se sucumbisse aos apelos da paixão e a virgindade costumava ser o único dote de uma moça pobre. E ele não podia, pelo menos no momento, oferecer-lhe algo mais além de ardor sexual. Com a vida de Eric por um fio e uma batalha se aproximando, não era hora de fazer promessas a mulher nenhuma, em especial a uma órfã que guardava tantos segredos. Lorde Murray inspirou fundo, tentando acalmar a agitação interior. Maldie começava a lhe parecer a única capaz de resolver aquele dilema, porque seria ela quem arriscaria tudo ao entregar-se. Só gostaria de ter mais alguma chance de mostrar-lhe que valeria a pena render-se a uma emoção tão rara. Depois do que houvera naquela tarde, duvidava de que Maldie iria permitir-lhe abordá-la tão cedo.
Capítulo III
O que você está fazendo seu grande tolo? Ao entrar no quarto de Nigel, Maldie não pôde acreditar nos próprios olhos. Ausentara-se durante uma hora e, sem dúvida, cometera um erro. Na última semana, desde que Balfour quase a seduzira, entregara-se com redobrado empenho à tarefa de levar seu paciente à recuperação plena, evitando que esforços exagerados fossem feitos antes da hora. Assim, vendo-o trêmulo e banhado de suor ao tentar andar apoiado numa serva, enfureceu-se. O insensato não apenas corria o risco de que as feridas tornassem a se abrir, como também o de ficar permanentemente aleijado.
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— Jennie — falou dirigindo-se à jovem criada enquanto obrigava o cavaleiro a voltar para a cama —, sei que este maluco consegue ser muito persuasivo, porém, daqui em diante, ignore as ordens para ajudá-lo a caminhar.
— Mas senhora... — A moça hesitou, parada sob a soleira da porta.
— Não se preocupe em desobedecer a sir Nigel. Eu mesma explicarei a situação a sir Balfour que, com certeza, me apoiará. O enfermo ainda não tem condições de ficar de pé sobre as pernas esquálidas.
— Esquálidas? — Nigel resmungou ofendido.
— Você quer ficar aleijado, sir? — Maldie o interpelou seca, fazendo sinal para que Jennie se retirasse.
— Não, de jeito nenhum. Mas é o que acabará acontecendo se eu não me exercitar e recuperar minhas forças.
— Há somente quinze dias você foi ferido, perdeu muito sangue e a febre alta o castigou. Portanto, é necessário permitir ao seu corpo recuperar-se devagar, com boa alimentação e bastante descanso.
— Pelo menos sinto-me bem o bastante para tentar andar.
— Sim, é verdade. O suor e a tremedeira deixam claro que seu corpo ainda não está pronto para tamanho esforço. Ignore o aviso e pagará caro.
— Você faz parecer que meu corpo tem vida e regras próprias, diferentes daquilo que minha mente diz.
— De fato. — Maldie serviu-lhe um cálice de vinho, notando-o segurá-lo com ambas as mãos para levá-lo à boca, sinal evidente de fraqueza. — Creio que você é inteligente o suficiente para perceber que cometeu uma tolice ao ultrapassar seus limites.
Praguejando baixinho, Nigel estendeu-lhe o cálice ao terminar de beber, quase o derrubando no chão devido ao tremor incontrolável.
— Se eu tiver que permanecer na cama por um longo tempo, acabarei doido.
Sorrindo compreensiva, Maldie apanhou um pano úmido e pôs-se a lavá-lo, livrando-o do suor frio gelado.
— Entendo como é duro não poder fazer nada exceto repousar, como é frustrante a mente estar alerta e o corpo fraco demais para atender aos nossos desejos. Sei que muita gente acha que sou maluca quando afirmo que nosso corpo nos envia mensagens. Quando você se levantou, não ficou zonzo, coberto de suor e trêmulo? Pois
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isto era seu corpo dizendo-lhe, da maneira mais enfática possível, para deitar-se e descansar.
— Seria melhor se minha mente me avisasse antes de eu colocar os pés no chão.
— Ah, a mente costuma ser contraditória e nem sempre nos conduz na direção certa, ou nos fala a verdade. Não importa o quanto espertos sejamos, porque às vezes nos permitimos enganar. Quem nunca tomou certas atitudes, mesmo sabendo que não seria sensato, nem seguro?
— Oh, sim. E o pior é que nossa maldita mente nos impede de esquecer essas idiotices.
O riso morreu nos lábios de Maldie. Nigel não estava tão enfraquecido quanto imaginara uma determinada parte de sua anatomia não revelava nenhuma dificuldade para ficar de pé. Sempre suspeitara que o atraísse, mas contemplar a prova concreta dessa atração embaraçou-a. E não podia continuar fingindo que nada reparara.
— Por sorte não estou inteiramente incapacitado. — Nigel sorriu sedutor.
A impertinência começava a sacudi-la do choque, quando o pano úmido lhe foi arrancado das mãos e uma voz familiar soou ás suas costas.
— Creio estar na hora de outra pessoa assumir a tarefa de banhá-lo, irmão. — Balfour afastou Maldie da cama. — Nossa Convidada pode se ocupar com funções diferentes.
— Mas a moça e eu estávamos tendo uma conversa fascinante, sobre como devemos dar atenção ao que o corpo nos diz?
Maldie sentiu-se tentada a mandar Balfour embora, irritada com o modo como ele decidia o que lhe cabia, ou não, fazer. Porém o bom senso prevaleceu sobre o orgulho. Nigel a desejava e estava bem-disposto o bastante para demonstrá-lo não apenas com olhares e palavras sugestivas. Sem dúvida seria melhor para ambos se transferisse certas obrigações para terceiros.
— Vou buscar a refeição de milorde — ela murmurou, retirando-se apressada.
No momento em que a porta se fechou, Balfour inspirou fundo, lutando para controlar a raiva gerada pelo ciúme. Quando entrara no quarto e vira Maldie banhando o irmão, ficara enciumado, como de costume. Ao perceber a óbvia excitação de Nigel e sua expressão lasciva, precisara de todo o autocontrole para não esmurrá-lo.
— Não me olhe assim, como se quisesse me matar.
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— Talvez eu esteja apenas enojado por você querer seduzir a mulher que trabalhou sem cessar para restituir-lhe a saúde. — Balfour serviu-se de vinho, maldizendo-se por não ser capuz de manter a calma.
— Por que isso deveria preocupá-lo?
— Ela é órfã, pobre, desamparada. E não foi você mesmo quem a acusou de guardar muitos segredos? — Sua veemência provavelmente traíra seus verdadeiros sentimentos.
— Deduzi que tais segredos não têm nenhuma relação conosco, não constituem nenhuma ameaça à nossa segurança. Maldie Kirkcaldy é sim, como você me lembrou, pobre e órfã. Viveu uma vida dura e ressente-se da vergonha à qual a mãe foi exposta. Também não superou o fato de ter sido abandonada pelo pai. Seus segredos giram em torno de um passado cheio de mágoas e não penso que ela tenha a obrigação de nos revelar.
— Talvez. — Se fechasse a boca agora, quem sabe Nigel esqueceria o assunto? Esperanças vãs.
— Não creio que você esteja zangado comigo porque eu assediava uma moça que lhe inspira desconfiança.
— São tempos conturbados os nossos. A cautela é necessária.
Nigel ignorou solenemente as palavras do irmão.
— Acho que você a deseja para si e irritou-se ao imaginar que eu a estava roubando.
— Pois eu acho que você está na cama há tanto tempo, que parou de raciocinar com clareza.
— Tolice. Você desejou Maldie desde o primeiro momento, quando a encontrou no meio da estrada. Eu, por comodismo, preferi esquecer o que observei, preferi me convencer de que você não a queria, pois acabaria interferindo em meus planos. Quanto ardentemente você a quer?
Por um momento Balfour considerou a possibilidade de adotar uma estratégia covarde para lidar com a situação: negar tudo e sair correndo. Porém, sabia que o irmão não o deixaria em paz até extrair-lhe uma confissão. Uma resposta honesta agora poderia silenciar Nigel. Mas o faria afastar-se de Maldie? Odiava-se por sentir-se inseguro quanto à própria habilidade de conquistá-la, de ser obrigado a competir com alguém por quem todas as mulheres sempre suspiraram.
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— Eu a desejo com todas as minhas forças — admitiu relutante. — Às vezes me pergunto se não perdi por completo a cabeça.
— Ah, aqueles olhos verdes têm o poder de enfeitiçar qualquer homem, de despertar a luxúria.
— O que sinto vai além da luxúria.
— Quanto além?
Embora se mostrasse impassível, Nigel esforçava-se para disfarçar algo, Balfour concluiu. E se os sentimentos do irmão por Maldie também ultrapassassem a simples atração por uma mulher bonita? Parte de si pensava que não faria mal ao belo Nigel ser rejeitado uma única vez na vida. A outra parte reconhecia ser esta a voz do ciúme.
— Não sei — Balfour retrucou num tom baixo e contido. — Sei apenas que vai além da paixão carnal.
— E como ela se sente a respeito?
— Maldie me quer. Tenho certeza disso. Ainda resiste porque acredita que a paixão destruiu sua mãe e teme repetir os mesmos erros. Quando percebi que eu já não receava repetir os erros de nosso pai é que me dei conta da intensidade de meus sentimentos. Embora sejam sentimentos confusos também.
— Então a tome para si, irmão. Maldie Kirkcaldy é sua. Retiro-me de campo. Com tantas confusões, temores e paixões mal resolvidas acho que o campo está mesmo cheio demais. Prefiro não me aventurar no meio desse caos.
Maldie entrou no quarto e, depois de fulminar Balfour com o olhar, depositou a bandeja no colo de Nigel. Teria ela ouvido a conversa, Balfour perguntou-se, logo descartando a idéia. Se a moça os houvesse escutado discutir quem teria o privilégio de tentar seduzi-la e levá-la para a cama, com certeza estaria se contorcendo de ódio. Maldie parecia somente irritada, ofendida com sua interferência.
— Você me permite ajudar seu irmão a comer? — indagou seca.
— Pensei que ele já tivesse condições de se alimentar sozinho.
— E teria se não houvesse se levantado e saltitado pelo quarto.
— Não saltitei coisa nenhuma — resmungou Nigel, praguejando por entre os dentes enquanto Maldie cortava o pão em pequenos pedaços.
— Por que ele não deveria tentar andar? — Balfour a questionou, notando, pela primeira vez a palidez do doente. — Afinal, a febre cedeu há uma semana e as feridas estão cicatrizadas.
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— É verdade. Mas sir Nigel precisa recuperar a energia e as forças perdidas. Os primeiros passos irão requerer muito cuidado, especialmente porque o ferimento na perna foi profundo. Até entendo o que o levou a cometer tal tolice. Quando permanecemos um longo período de cama, repousando e comendo bem, é natural esquecermos de como estamos fracos. Assim, ignoramos a cautela. Se o processo de convalescença não for rigoroso, é possível que essa perna nunca perca a rigidez e seu irmão fique definitivamente manco.
O tom firme da herborista não admitia dúvidas. Bastara à febre sumir e as feridas cicatrizarem, para Balfour considerar Nigel curado, necessitando apenas se alimentar e descansar antes de reassumir suas funções. Agora começava a compreender que a total recuperação exigiria tempo e atenções redobradas.
— Como está indo o plano para libertar Eric e derrotar Beaton? — indagou Nigel, terminando de comer.
— Vagarosamente. Sabemos muito pouco a respeito daquele infame, ou a respeito de Dubhlinn. Infiltrei um dos nossos no coração das tropas inimigas, mas tem sido difícil para ele nos enviar informações. Qualquer detalhe sobre a rotina do castelo, o mais simples que fosse, nos auxiliaria, mas nada temos por enquanto.
— Quando você diz "simples" está se referindo a coisas do tipo quando os portões são abertos e fechados? — Maldie perguntou a Balfour, servindo-se de um cálice de cidra.
— Sim. Toda informação é valiosa.
— Os portões são abertos ao nascer do sol e fechados ao entardecer.
O brilho da suspeita no olhar dos irmãos, apesar de justificado, perturbou-a. Na sua ânsia de ajudá-los a destruir Beaton não considerara como seu conhecimento a respeito de Dubhlinn poderia parecer estranho e gerar desconfianças. Se confessasse haver aprendido o máximo possível sobre Beaton para aumentar suas chances de matá-lo, os Murray, provavelmente, sentiriam-se ainda mais incomodados.
— Como você soube sobre os portões? — Balfour a interrogou.
— Andei procurando meus familiares nos arredores de Dubhlinn.
— Você é parente de algum Beaton?
O tom de Balfour, misto de desdém e censura, apenas confirmou sua decisão de nunca revelar sua verdadeira origem.
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— Não. Meus parentes são menestréis. Segui o rastro deles até Dubhlinn e permaneci na região tentando descobrir qual rumo tinham tomado. Por sorte, um casal de aldeões idosos me ofereceu hospitalidade.
— Por que você não nos contou nada, quando soube que estamos lutando contra Beaton?
— Não sou guerreira, sir Balfour. Não poderia imaginar que o pouco que vi e ouvi lhe interessaria. Não estava nas proximidades do castelo quando seu jovem irmão foi sequestrado.
Inspirando fundo, Balfour passou as mãos pelos cabelos escuros e revoltos.
— Peço-lhe desculpas, senhora. Não era minha intenção insultá-la, ou acusá-la. Cada dia que Eric passa nas garras daquele canalha, me dilacero por dentro e talvez por isso meu coração se encha de suspeitas, às vezes infundadas. Mesmo agora, continuo tentando entender como o maldito soube onde e quando armar uma emboscada para capturar meu irmão.
— Não há necessidade de desculpar-se, sir. Você está em guerra e eu sou uma estranha.
— Você realmente acha que alguém nos traiu? — Nigel interrogou Balfour. — Que alguém ajudou Beaton a se apoderar de Eric?
— Sim. Quanto mais penso nisso, mais convencido fico. Quando os dois passaram a discutir a possibilidade de Donncoill abrigar um traidor, Maldie aproveitou para arrumar o quarto, aliviada com o fim do interrogatório a que fora submetida. Falara num impulso, sem medir as palavras. Menestréis. Uma boa escolha, considerando a vida nômade exigida pela profissão. Faltava-lhe agora arrumar um sobrenome para sua fictícia família, caso sir Murray lhe perguntasse.
A teia de mentiras começava a enredá-la, fato que tanto a alarmava quanto desgostava, pois sempre abominara falsidades. E, apesar de não querer admitir, constatara que enganar Balfour era-lhe particularmente doloroso. Ele aceitara suas mentiras sem questioná-las, até se desculpando por haver alimentado algumas dúvidas e suspeitas a seu respeito, fato que servia apenas para torná-la ainda mais infeliz consigo mesma. Detestava iludir alguém, em especial alguém que a acolhera e mostrara-se confiante sobre a retidão de seu caráter. Esse seria um pecado que mancharia sua alma.
A entrada silenciosa de Grizel afastou Maldie dos pensamentos sombrios. Sorrateira, a mulher se movia sem produzir nenhum ruído, entretanto, seu mau cheiro empestava o ambiente. Os homens, absortos na conversa sobre batalhas e traições,
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pareciam não perceber a presença da velha herborista que, por outro lado, não perdia uma única palavra do que diziam. Notando que Maldie a observava, ela procurou disfarçar a curiosidade e, apanhando a bandeja, apressou-se a se retirar do quarto, não sem antes lançar um último olhar aos dois cavaleiros.
Como se houvesse sido picada por um animal peçonhento, Maldie estremeceu de horror ante a expressão de Grizel ao fitar os irmãos. Nunca um olhar contivera tanta raiva, tanto rancor. Por um momento a jovem perguntou-se se não fora pura imaginação, se não acabara contagiada pelas suspeitas de intrigas e deslealdades. Mas não, não fantasiara nada, decidiu. Embora não conhecesse bem os Murray, não os julgava, em hipótese alguma, merecedores de tamanho ódio. Seria Grizel a traidora do clã? Poderia levá-los a enxergar isso?
— Você parece exausto, Nigel — Balfour comentou preocupado. — Descanse. Conversamos sem encontrar respostas para nossas dúvidas. Pelo menos me resta o conforto de saber que você partilha minhas suspeitas sobre a existência de um traidor em Donncoill.
— É Grizel — afirmou Maldie, convicta de que a verdade sempre revelava-se como o caminho mais fácil de resolver as coisas. Mentira sobre sua origem porque não tivera alternativa e não repetiria o erro.
— O que tem Grizel? — Balfour a interrogou seco. — Pelos céus, acho que o fedor impregnou o ar.
— Com certeza. Mantenho este quarto muito limpo, portanto agora é fácil notar a entrada de qualquer odor desagradável.
— Você está sugerindo que meus aposentos não eram asseados antes? Estou arrasado — Nigel brincou.
— Não estou me referindo somente à sujeira corporal de Grizel, ou ao seu mau cheiro. Mas ao ódio que ela exala. É um sentimento tão forte que pude sentir-lhe o amargor. Grizel odeia vocês dois, senhores. Realmente os abomina.
Balfour ficou em silêncio durante vários segundos, pesando as palavras ouvidas.
— Sei que aquela mulher vive mal-humorada e não se dá bem com ninguém no castelo, seja homem, mulher, ou criança. Mas, dificuldade de relacionar-se é muito diferente de ódio. Qual a relevância de Grizel me detestar, ou a Nigel?
— Assim fala um homem criado no meio da riqueza e do poder. Aqueles acostumados a ser servidos, muitas vezes não percebem o valor, ou a ameaça, representada por seus serviçais. Vocês estão convencidos de que alguém auxiliou
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Beaton na captura de Eric e, no entanto, não conseguem pensar numa pessoa com motivos para traí-los. Pois eu lhes forneço uma boa razão: ódio. Antes de eliminarem Grizel como ameaça, sugiro que ponderem sobre o possível motivo desse ódio. Talvez, então, encontrem a resposta que buscam.
— Nosso pai a seduziu. — Nigel deu de ombros, como se fosse algo sem importância. — Ela era bonita e asseada, anos atrás.
— Depois seu pai a abandonou? — indagou Maldie, pensando que aquele tipo de comportamento sempre a repugnava.
— Sim, ao se apaixonar pela mãe de Eric. E quando a mãe de Eric morreu nosso pai não teve vontade de voltar para os braços de Grizel.
— Resumindo: Grizel, ainda jovem e bonita, ocupou a posição de amante do senhor de Donncoill. Trocada por uma nova amante, viu o filho da rival ser criado como um dos herdeiros do clã, enquanto a própria beleza e juventude se apagavam. Parece-me uma ótima razão para odiar os Murray e desejar causar mal a Eric.
— Sem dúvida é motivo suficiente para passarmos a observá-la mais de perto — Balfour concordou, caminhando até a porta. — É o que farei. Preciso de mais do que palavras e desconfianças para acusar Grizel. Ela nasceu em Donncoill e seus parentes nos ajudaram a conquistar essas terras, sempre foram leais à minha família. Não tomarei nenhuma atitude antes de obter provas concretas de traição. Não correrei o risco de cometer uma injustiça. E agora, quero que você se arrume para jantar em minha companhia no salão principal.
— Mas Nigel precisa de...
— Mandarei Jennie vir atendê-lo.
Balfour retirou-se sem dar a Maldie chance de argumentar. Por breves segundos ela considerou a possibilidade de simplesmente ignorar a ordem. Não, de nada adiantaria desafiá-lo, pois lorde Murray viria buscá-la. Seria uma longa refeição, disso não tinha dúvidas. Melhor começar a se aprontar.
Balfour disfarçou um sorriso ao ver Maldie entrar no salão principal. O vestido azul-escuro, gasto e cuidadosamente remendado, moldava as curvas do corpo delicado de uma maneira que lhe agradava demais. Os cabelos negros e ondulados, presos com uma fina tira de couro, caíam-lhe às costas como uma cascata sedosa. Levantado-se, o lorde de Donncoill acenou, mostrando-lhe a cadeira à sua direita.
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— Não sou digna de me sentar aqui — ela protestou baixinho, hesitando em tomar o assento que lhe fora oferecido. — Não possuo nem títulos, nem origem nobre para ser vista num local de destaque.
— Você salvou a vida de Nigel — retrucou Balfour, fazendo sinal para um criado servi-la de vinho. — Isto a torna merecedora de um lugar de honra à minha mesa, mais do que títulos, ou riquezas.
— Seu irmão estava ferido e fui capaz de ajudá-lo. Qualquer um com minhas habilidades faria o mesmo.
— Não qualquer um. — O cavaleiro tentou não reparar na quantidade de comida que a jovem colocava no prato. Sem dúvida não era falta de apetite que a conservava tão esbelta. — Você tem sido dedicada, cercando-o de cuidados sem pedir nada em troca.
— Tenho uma cama macia onde dormir, um teto sobre minha cabeça e toda a comida que sou capaz de consumir. É pagamento suficiente.
Durante alguns minutos Balfour limitou-se a observá-la comer. Embora o divertisse constatar que uma mulher tão pequenina pudesse ter tão grande apetite, também lhe doía à alma. O modo como Maldie Kirkcaldy degustava os alimentos deixava claro que conhecera a fome. Pela primeira vez ocorreu-lhe nunca ter pensado muito sobre a vida dura dos desafortunados. Sempre cuidara bem do povo de Donncoill e alegrava-o saber que nada lhes faltara ao longo dos anos. Mas, à exceção de donativos ocasionais para os pobres, jamais estendera essas benesses para aqueles fora do círculo de sua responsabilidade imediata.
Envergonhava-o imaginar que por falta de caridade pessoas como Maldie sofriam. Em silêncio, jurou a si mesmo nunca mais ficar indiferente às necessidades alheias.
— Talvez você gostaria de um vestido novo — sugeriu, arrependendo-se em seguida ao notar o brilho desafiador dos olhos verdes. Deveria ter escolhido as palavras com mais cuidado, pois acabara insultando-a.
— Se você acha meu vestido modesto demais, posso jantar em meu quarto. — Na verdade, Maldie não se considerava insultada, nem supusera que essa houvesse sido a intenção do cavaleiro. Apenas ficara magoada com a possibilidade de Balfour não aprovar sua aparência.
— O vestido lhe cai bem e ressalta sua beleza. Mas, se me permite dizê-lo, você se ofende facilmente. Reconheço que sou desajeitado com as palavras, porém não a considero o tipo de mulher que aprecie mentiras. O seu não é o vestido mais bonito que
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já vi. Não entendo nada de moda feminina, mas percebi que você possui somente dois vestidos, ambos muito gastos. Não há vergonha nisso. Quero apenas encontrar uma forma de premiá-la pela recuperação de Nigel e julguei que um vestido novo iria lhe agradar. Maldie suspirou fundo.
— Tem razão. Às vezes fico eriçada como um porco-espinho, ouvindo o que não foi dito e julgando ironia atrás das palavras mais inocentes. Agradeço-lhe a oferta gentil, mas devo recusá-la. Sim, meus vestidos são velhos e rotos, mas não posso aceitar presentes por fazer algo que teria feito por qualquer um. Deus me concedeu o dom de contribuir para a cura das pessoas. Não acho certo aceitar pagamento por um trabalho que Ele faz. Sou mero instrumento.
Murray decidiu não insistir no assunto. Falaria com Una, a melhor costureira do clã, e lhe pediria para confeccionar um vestido em segredo. Não perguntaria a Maldie o que ela gostaria de ganhar, qual pequena recompensa a satisfaria. Simplesmente a presentearia. Apesar da evidente pobreza, Maldie fora educada como uma dama e saberia identificar, e aceitar, uma cortesia.
— Durante quanto tempo você esteve espreitando Dubhlinn?
— Não estive espreitando nada. E a propósito, permaneci duas semanas na região.
Embora esperasse perguntas, Maldie sentia-se desconfortável. Não suportava mais mentir. Balfour Murray não errara ao usar a palavra "espreitando". Fora exatamente o que fizera, aproveitando-se de cada oportunidade para espionar os Beaton. E talvez ainda estaria por lá se tantos homens não houvessem começado a assediá-la. Lamentava apenas não ter se despedido do velho casal de aldeões que a acolhera. Partira no meio da noite sem dizer adeus e, pior, sem expressar gratidão.
De repente uma raiva surda inundou-a. Será que, nem por um instante, sua amargurada mãe não pensara nos pecados que obrigaria a filha a cometer para cumprir o juramento de vingança? Com a mesma rapidez com que a raiva surgira, foi substituída pela culpa. Estava agindo como uma criatura ingrata, quando a mãe se submetera à degradação para mantê-la de barriga cheia. Seria pedir demais que o homem responsável pela vergonha de ambas acabasse castigado? Seria pedir demais que a filha a vingasse? Maldie preferiu ignorar uma vozinha interior que insistia em responder "sim".
— Você ficou muito séria de repente. — Balfour tocou-a de leve na mão. — Enfrentou algum problema em Dubhlinn?
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— Não. Apenas me dei conta de que, ao ajudá-lo, eu poderia estar colocando em perigo o casal de aldeões que me abrigou. — Sorrindo melancólica, Maldie passou uma grossa camada de mel numa fatia de pão. — Então lembrei-me de que a velha senhora sempre reclamava sobre como Beaton, ao menor sinal de ameaça, mandava trancar os portões sem se importar com quem não conseguisse entrar na fortaleza a tempo. Dizia-se que o senhor de Dubhlinn não hesitaria em deixar a própria mãe do lado de fora se ela não fosse rápida o bastante. Por fim, os camponeses desistiram de buscar refúgio atrás das muralhas. Quando algum inimigo surgia para atacar Beaton, apenas escondiam-se e rezavam para não serem caçados também.
— Pode ficar sossegada, pois não planejo matar nenhum aldeão. Só quero trazer o jovem Eric para casa e acertar contas com o lorde de Dubhlinn. Talvez aquele clã vá viver melhor e mais em paz sem o idiota que os lidera.
Balfour calou-se e Maldie, notando que o cavaleiro parecia observar algo atentamente, seguiu a direção de seu olhar. Grizel havia saído do meio das sombras e plantara-se atrás dos soldados agrupados numa das extremidades da longa mesa. Enquanto fingia costurar, ela não perdia uma única palavra do que os homens falavam e nem se esforçava para disfarçar o interesse na conversa. Grizel não possuía a necessária discrição para espionar, Maldie concluiu. Sem dúvida fora bem-sucedida até o momento somente porque ninguém lhe prestara atenção. E, talvez, segura por nunca ter levantado suspeitas a respeito de suas ações, tornara-se descuidada.
— Não posso acreditar que não percebi nada antes — murmurou lorde Murray, pasmo.
— Você raramente a notava. E, conforme me explicou, a família de Grizel esteve com os Murray desde o início. Seria a última pessoa de quem você desconfiaria.
— Por isto uma escolha perfeita. Eu deveria ter imaginado. Você tem razão, ela nos detesta. Vejo claramente agora. E há motivo para rancor. Meu pai a tratou de maneira vil. Aliás, tratamento dispensado a inúmeras outras mulheres.
— Esta não é razão suficiente para trair o próprio clã, os próprios ancestrais. Sim, é compreensível alguém desejar se vingar daquele que lhe causou mal, mas não destruindo todos os membros da família, como Grizel está ajudando Beaton a fazer. Começo a sentir muita pena do pobre Eric.
— Não deve ser fácil cair prisioneiro de Beaton.
— Na verdade eu estava pensando em como Beaton odiava Eric a ponto de querer matá-lo no dia de seu nascimento. Agora é Grizel quem o odeia e não se importa
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de contribuir para levá-lo à morte. Deve ser difícil para o menino saber que seu simples nascimento o tornou alvo da ira de dois inimigos. E agora, o mesmo homem que quis matá-lo deseja chamá-lo de filho. Seu jovem irmão deve estar pensando que o mundo inteiro enlouqueceu, ou então que ele perdeu a razão.
Pensativo, Balfour concordou. Não lhe agradava admitir, mas ainda não havia se detido sobre os sentimentos de Eric. Ansiava tanto libertá-lo das garras de Beaton, afastá-lo do veneno que o infame poderia destilar em seus ouvidos, que não considerara as emoções do garoto. Sim, Maldie estava certa. Seu irmão devia estar achando difícil entender à situação e imaginando por que despertava tanta raiva. Embora Beaton tentasse reconhecê-lo como filho agora, Balfour duvidava de que o canalha deixara de odiar o menino. Eric, apesar de extremamente inteligente, talvez o mais inteligente dos Murray, deveria estar confuso e inseguro.
— Sim, meu irmão deve estar a ponto de arrancar os cabelos. — Balfour sorriu tristemente. — Ele detesta quando não consegue compreender algo. Se Beaton não lhe deu nenhuma explicação, por menor que seja capaz de ajudá-lo a enxergar alguma lógica no que está acontecendo, Eric acabará perdendo a paciência e tomando uma atitude insensata, como tentar matar o inimigo com as próprias mãos.
— Você fala como se o garoto fosse intolerante.
— Não é o caso. Apesar de Eric nunca ter tido muita paciência com tolos.
— Posso entendê-lo.
— Eric é inteligentíssimo, mas reconhece ser sua inteligência um dom concedido por Deus. Assim, jamais despreza aqueles que não foram abençoados da mesma maneira. Se pensa que alguém está agindo de forma errada propositadamente, mostra-se intolerante. Com os anos, creio que se tornará menos inflexível. Este é seu único defeito. De fato, Eric é ainda mais bonito e envolvente que Nigel.
— Um perigo para todas as moças da Escócia. Balfour concordou rindo e Maldie sentiu o coração se enternecer. Lorde Murray amava o meio-irmão e tinha orgulho dele. Parte de si invejava Eric que, apesar de bastardo, conquistara o amor da família do pai. Quanto a ela, nunca conheceria esse sentimento de aceitação. Não possuía um pai, ou uma família que a acolhesse. Pudera contar apenas com a mãe. Sua mãe que, muitas vezes, dera a impressão de desprezá-la, de irritar-se com sua simples presença.
Depressa, Maldie afastou o pensamento aflitivo. Era doloroso demais enfrentar a verdade. Melhor continuar ignorando-a, antes de se transformar num poço de amargura.
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— Você me parece triste Maldie Kirkcaldy. — Gentilmente, Balfour cobriu a mão delicada com a sua. — Não tema. Venceremos a batalha e traremos Eric de volta para Donncoill.
— Claro que sim.
Durante o restante da refeição, lorde Murray induziu-a, com muito tato, a contar tudo o que descobrira sobre Dubhlinn. Mesmo não se esquivando das perguntas, Maldie preferiu ser cautelosa, como se desconhecesse a importância das informações que passava. Apesar do prazer de estar contribuindo para a queda de Beaton, incomodava-a que o fizesse através da dissimulação.
Quando Balfour chamou James para se juntar aos dois à mesa, ela sufocou o desagrado. O mestre de armas vinha observando-a há dias, os olhos penetrantes dando a impressão de querer devassar seus segredos. Se James alimentava desconfianças a seu respeito, seria fácil contaminar seu líder. A menos que lhes contasse toda a verdade, algo impossível corria o risco de vir a ser considerada uma espiã, trabalhando para Beaton contra os Murray.
— Você tem uma expressão cansada. — Balfour levantou-se e estendeu-lhe a mão. — Venha, permita-me acompanhá-la aos seus aposentos.
Por um triz Maldie não retrucou, dizendo ser perfeitamente capaz de encontrar o caminho para o próprio quarto, mas engoliu as palavras mal-educadas. Preferia evitar o início de uma discussão que se prolongaria por tempo indeterminado e escapar, o quanto antes, do olhar arguto de James. Assim, levantou-se e se deixou conduzir por lorde Murray através do salão cheio, Sentia-se presa numa cilada, numa armadilha que preparara para si com suas meias-verdades. Não existia um único lugar em Donncoill onde pudesse se esconder do vigilante James. E, para piorar, bastava Balfour aproximar-se para seu coração traiçoeiro arrastá-la num turbilhão de sensações perigosas, fazendo-a se esquecer do bom senso. O único lugar onde encontrava alguma privacidade era na cama na qual passara a dormir desde a chegada a Donncoill. Mas, a cama ficava num canto do quarto de Nigel e, portanto, permanecia perto de um Murray. Cansara-se de mentir, de guardar segredos.
Balfour parou diante de uma porta oposta à dos aposentos de Nigel e abriu-a, os olhos fixos em Maldie. Ela estava com um humor muito estranho, num momento sorridente e falante; no outro absorta e preocupada. Não imaginava como reagiria à notícia de que mandara transferi-la para outro quarto.
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Nigel já não necessitava de cuidados constantes. Porém não fora esse o motivo pelo qual resolvera tirá-la do quarto do irmão, e sim o óbvio interesse dele na jovem herborista. Só esperava que a moça não desconfiasse de suas verdadeiras razões, ou acabaria se considerando insultada com sua falta de confiança.
— Este não é meu quarto — Maldie falou, tentando livrar-se dos dedos fortes que a seguravam pelo braço.
— Agora é. — Lorde Murray empurrou-a para dentro e fechou a porta.
— Nigel não deve ser deixado sozinho. E se fizer alguma tolice?
— Meu irmão não ficará só. Já não precisa que você o vigie dia e noite.
— Então, talvez, tenha chegado à hora de minha partida. A idéia de que Balfour pudesse concordar angustiou-a, quando o bom senso gritava ser essa a melhor solução para todos os seus problemas. Apesar de evitar mentir, as meias-verdades que vinha sendo obrigada a sustentar estavam se tornando tão complicadas, que corria o perigo de ser desmascarada a qualquer instante. Balfour a desejava e já não tinha dúvidas de que lhe faltava vontade para resistir-lhe por muito tempo. Nigel também a desejava, e poderia resistir-lhe facilmente.
Porém existia a possibilidade de que, mesmo não querendo, provocasse atritos entre os dois irmãos. James não confiava nela. Seria sensato partir antes que qualquer uma dessas complicações se avolumasse e a engolisse. Entretanto, continuava ali parada, no meio do quarto, esperando que Balfour lhe desse um motivo para permanecer em Donncoill. E, para seu desgosto, sabia que qualquer motivo a convenceria a ficar.
— Não, você não deve partir. Nigel ainda necessita de cuidados. Ambos sabemos que meu irmão é capaz de cometer alguma tolice na sua ânsia de sair da cama e retomar a rotina. Ainda enfraquecido, ele não pode correr o risco de se ferir outra vez. Foram suas habilidades que o mantiveram vivo. Pois agora eu preciso que essas mesmas habilidades o conduzam à plena recuperação e o façam voltar a andar com a segurança de antes.
— E a manejar a espada — Maldie completou, não oferecendo nenhuma resistência quando lorde Murray a tomou nos braços.
— Sim, reconheço que quero Nigel ao meu lado quando tornar a atacar Beaton. E em condições de empunhar o escudo e a espada. — O cavaleiro inclinou-se e beijou-a de leve na nuca. — Eric precisa de seus dois irmãos lutando para salvá-lo.
— Eric tem sorte pela família que o destino lhe deu. Incapaz de controlar o impulso, Maldie o enlaçou pelo pescoço e ergueu o rosto, num pedido silencioso e
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desavergonhado por um beijo. Mas já não se importava de parecer ousada. Tinha desejo dos beijos de Balfour, de sorver seu gosto embriagador. Bastava um único beijo para se esquecer de seus problemas e medos. Bastava um único beijo para seu corpo inteiro latejar e o sangue ferver nas veias.
— Lábios tão lindos, tão tentadores — ele sussurrou, a voz baixa e rouca vibrando de paixão.
Porém, apesar de reconhecer o desejo estampado nos olhos escuros de Balfour, Maldie o sentia hesitar. Confusa, não sabia como interpretar essa indecisão. Era como se ele houvesse se fechado em si mesmo, erguido uma barreira invisível para impedi-la de se aproximar. Teria Balfour sido contaminado pelas suspeitas de James?
— Pensei que você quisesse me beijar. — Nervosa e insegura, ela se esforçou para mostrar-se firme e tranquila.
— E quero.
— Mas você vacila. Eu não o rejeitei, não lhe disse "não".
— Oh, sei disso. Seu "sim" silencioso foi muito eloquente. — Numa carícia repleta de ternura, Balfour deslizou os dedos pelos cabelos negros e sedosos. — Na verdade, seu convite foi uma mistura tão enlouquecedora de inocência e sensualidade, que mal posso me conter.
— E você ainda se contém.
— Porque não é apenas um beijo que me saciará. Nem aquelas carícias que trocamos na semana passada, sob a torre no jardim. Já não sou capaz de ter paciência para esse jogo. Nenhuma. Sim, sei que deveria ter paciência, porque você é inocente. Mas talvez eu seja fraco demais. Ou talvez esteja faminto demais para pensar em outra coisa que não seja satisfazer meu desejo.
— Do que você está falando?
Balfour segurou o rosto delicado entre as mãos, quase sorrindo ante a expressão de Maldie. Na sua ingenuidade e inexperiência, ela não procurava disfarçar as emoções que a sacudiam, um misto de irritação, nervosismo e muita, muita paixão.
— Estou tentando dizer que se você me deixar beijá-la, se você me deixar tocá-la, não permitirei que fuja de mim desta vez. — Devagar, ele roçou os lábios macios com os seus, provocando-a, atiçando-a. — Se você me deixar beijá-la, não haverá protestos repentinos, nem súbita mudança de idéia que me detenha, pois sei que, por dentro, você grita "sim". Terei tudo, Maldie, ou não terei nada.
— Não é um pouco injusto? — ela indagou num sussurro trêmulo.
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— Sim. É possível que seja um pouco injusto e provavelmente pouco honroso de minha parte. Mas quando a beijo, receio que meu desejo devore minha culpa. Então, o que me diz?
Por um longo momento Maldie o fitou convencida de que deveria estar furiosa com aquela postura de "ou tudo ou nada". Porém, no íntimo, compreendia o que impelira a tomar essa atitude. Se Balfour houvesse sofrido metade do que ela sofrera ao dar as costas à paixão, não podia culpá-lo. De fato, surpreendia-se com a paciência que ele tivera. Mergulhando nos olhos escuros, Maldie percebeu que sua paciência também chegara ao fim. Já não queria apenas sonhar sobre o que os dois podiam partilhar nos braços um do outro. Queria saber. Se o que acontecesse, se provasse um erro, lidaria com as consequências depois.
— Sim — falou baixinho, aconchegando-se ao peito forte.
Capítulo IV
Nervosa, Maldie observou Balfour trancar a porta do quarto. A expressão tensa e o brilho dos olhos escuros do cavaleiro deixavam claro já ser impossível voltar atrás. Mesmo se mudasse de idéia naquele exato instante, duvidava de que seus protestos seriam ouvidos. Entretanto nada mais a assustava. Como Balfour, estava cega de paixão. E em nome dessa paixão preparava-se para se entregar ao momento sem medir as consequências, sem garantias de qual seria o amanhã.
— Repita o que você disse — Balfour pediu num murmúrio rouco, tomando-a no colo e depositando-a sobre a cama.
— Sim. Eu tinha certeza de que você havia me escutado da primeira vez, ou não ousaria trancar a porta.
— Escutei, mas senti necessidade de que você repetisse, porque temi que, na minha ansiedade, houvesse apenas imaginado o que tanto desejei ouvir.
— Se eu tivesse dito "não", não permaneceria impassível enquanto você trancava a porta.
— Verdade. — Rígido de desejo e antecipação, Balfour procurou sorrir. — Se eu estivesse raciocinando com clareza, não ficaria inseguro sobre o que ouvi ou não. Você tem certeza?
— Posso ser virgem de corpo, milorde, mas conheço a vida. Morei numa choupana com minha mãe e uma fila interminável de fregueses. — Notando a piedade
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no rosto viril, ela o acariciou suavemente. — Não, não sinta pena. Às vezes não restam muitas alternativas a uma mulher pobre para sustentar a si e aos filhos. Minha mãe, de origem nobre, não possuía muitas habilidades, ou conhecimentos para o exercício de uma profissão. Às vezes, pergunto-me se a vergonha maior não seria daqueles que nunca a auxiliaram que nunca lhe estenderam a mão para ajudá-la a sair da lama. Só estou lhe falando isso para você não questionar o que está para acontecer entre nós. Tenho plena consciência de minha escolha. — Maldie o envolveu num olhar sugestivo. — Bem, caro sir, eu não imaginei que você havia trancado a porta para que pudéssemos conversar.
— Não. Mas, saiba de uma coisa, agradeço a sua mãe por tê-la poupado daquele destino cruel.
Maldie permitiu que o beijo de Balfour calasse a resposta que lhe viera aos lábios. Não, não havia razão para lhe contar toda a horrenda verdade, para confessar que sua mãe não procurara preservar sua castidade. Pelo contrário. Bastara entrar na adolescência, para os homens tentarem roubar, ou comprar, sua virgindade. Em certas ocasiões sua mãe ficara tão furiosa com sua recusa em aceitar as ofertas, que chegara a agredi-la fisicamente. Tais lembranças dolorosas preferia deixar que Balfour as apagasse com o ardor de sua paixão.
— Quisera ter talento para reverenciá-la com palavras bonitas — ele murmurou, desfazendo os laços do vestido. — Seria bom dominar a linguagem dos menestréis para cobri-la de elogios.
— Não preciso de poesias, ou canções românticas. Se os versos falharem, fale com seu corpo. Foram suas mãos e seus lábios que me arrastaram até aqui, não meros galanteios.
Como um homem faminto, Balfour devorou a boca carnuda e sensual. As palavras dela o haviam enlouquecido de desejo, porque deixavam claro que ambos se queriam com igual sofreguidão. Apenas pedia aos céus para se conter e avançar lentamente, para lhe proporcionar prazer, e não apenas dor, naquela primeira vez.
Entregue aos beijos ávidos, Maldie fechou os olhos enquanto as mãos rápidas e experientes a livravam das roupas. Então, voltou a abri-los, notando que Balfour agora se despia. Observá-lo desnudar-se afastou toda a inquietude e vergonha iniciais. Quase não conseguia conter o ímpeto de tocá-lo. A pele morena evidenciava os contornos das pernas musculosas e braços fortes. No peito largo não havia sinal de pêlos, porém uma linha escura, logo abaixo do umbigo, se estendia até transformar-se num tufo espesso,
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do qual brotava a virilidade. A visão do sexo ereto não a assustou, ou lhe causou repulsa. Estranho pensar que agora se sentia atraída por algo que sempre lhe provocara medo e aversão. A paixão era mesmo uma coisa fascinante, inexplicável.
— Sou muito moreno — Balfour murmurou inseguro, sem saber como interpretar o sorriso de Maldie.
— E eu muito magra — ela respondeu, estremecendo quando seus corpos nus se tocaram.
— Esguia — corrigiu-a ele, cobrindo os seios empinados de beijos. — Eu estava me perguntando por que você sorria. Um homem fica inquieto quando uma mulher sorri ao vê-lo nu.
Percebendo que Balfour não entendera o verdadeiro motivo de seu sorriso, Maldie riu baixinho.
— Eu estava espantada comigo mesma diante de minha reação à sua nudez. Sempre considerei o membro intumescido como uma arma, feio e ameaçador. Mas, descobri que me agrada admirar seu sexo rígido. Pelo visto a paixão não apenas entorpece os sentidos, mas atrapalha a visão também.
Lorde Murray riu, entre aliviado e envaidecido.
— Então eu lhe agrado, hein?
— Sim, muito. — Maldie suspirou de prazer quando os dedos elegantes massagearam seus mamilos com movimentos ritmados.
— Você não está com medo?
— Não. Nem um pouco.
— Perder a virgindade não será indolor, embora eu vá me esforçar para suavizar o desconforto.
— Sei que vai doer, mas já estou tão excitada que não me importo. — Quando Balfour pôs-se a sugar seus mamilos, Maldie arqueou as costas, oferecendo-se sem reservas. — Sim, estou excitada demais para me importar com qualquer desconforto.
As carícias foram se tornando mais urgentes, os beijos mais vorazes, até Maldie implorar para ser possuída. Enlouqueceria se aquela doce agonia não tivesse fim. Numa única investida, Balfour a penetrou, a dor rápida e súbita levando-a a gritar e abrir os olhos.
Tenso, o cavaleiro a observava atentamente, cada músculo do corpo retesado.
— Por que você ficou imóvel de repente? — ela indagou trêmula.
— Porque prefiro esperar que sua dor passe.
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— Dor? — Sensual Maldie cruzou as pernas ao redor dos quadris de lorde Murray, aprisionando-o.
— Escutei-a gritar.
— Ah, aquele barulhinho à toa o fez parar?
— Sim.
— Pois explique a esta pobre mulher inocente que ruído ela deverá emitir para induzi-lo a continuar.
— Um gemido de prazer talvez? — Balfour beijou-a na boca avidamente.
Maldie não precisou se esforçar para atender à sugestão. Bastou senti-lo começar a mover-se para ser consumida por um turbilhão de emoções. Seu último pensamento coerente, antes de perder por completo a noção de tempo e espaço, era que Balfour continuava se contendo. Então, uma explosão inesperada. Gemendo alto, ela experimentou uma sensação tão absurdamente intensa, que achou não ser capaz de resistir. Morreria de prazer. Agarrando-se aos ombros fortes, exultou quando Balfour estremeceu e inundou-a com sua semente.
Durante intermináveis minutos, os dois se deixaram ficar abraçados, lânguidos e saciados. Ainda em êxtase, Maldie saboreou o calor emanado da figura máscula, o toque gentil das mãos pousadas em suas costas. Quando Balfour levantou-se, ela ensaiou um protesto, odiando a impressão de abandono. Vendo-o retornar dali a instantes, com um pano tímido, fechou os olhos e, apesar de embaraçada, permitiu-o banhá-la. Por fim, quando Balfour tornou a deitar-se ao seu lado, Maldie, para seu próprio pesar, havia voltado a raciocinar com clareza e a perceber a extensão do passo que acabara de dar.
O silêncio de Maldie começou a afligi-lo. Arrastara-a para a cama e, valendo-se da mútua e irresistível atração física, fizera-a entregar-se, talvez mais depressa do que ela teria desejado. Entretanto, não fora simples paixão carnal que o motivara. Desesperara-se ao notar o óbvio interesse de Nigel na jovem e quisera marcá-la como sua. Jamais poderia confessá-lo a Maldie. Tampouco teria coragem de admitir que seu plano pouco honroso voltara-se contra ele próprio. Não somente a marcara como sua, como também fora marcado. Pertencia-lhe agora. Completamente. No instante em que seus corpos haviam se unido, soubera-o. Todos os sentimentos que lutara para ignorar, ou negar, haviam se confirmado. A revelação o atingira com a força de um raio. Não tinha tempo, nem condições, de lidar com a verdade neste momento. O silêncio prolongado de Maldie o levava a crer que ela, de alguma maneira, adivinhara a natureza de seus sentimentos.
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— Como você está? — ele perguntou, vasculhando o rosto sério e delicado com o olhar.
Por um instante Maldie imaginou o que aconteceria se respondesse sinceramente. Se confessasse que o amava. Soubera-o quando seus corpos se fundiram. Se a paixão não a houvesse dominado de forma tão absoluta, talvez tivesse fugido do quarto, fugido de Donncoill. Balfour não lhe pedira amor, apenas paixão. E fora o que tentara se convencer de que também queria e precisava. Até se entregar. Não culparia Balfour de sua própria tolice. Mentira para si mesma e negara-se a encarar a verdade. Agora era tarde demais para voltar atrás.
— Estou bem. Você não continua preocupado por ter me causado dor, não é?
— Não. Somente a achei muito quieta. Temi que algo a perturbasse.
— Não há nada. Eu só estava pensando no quanto minha decisão foi definitiva. Claro que não sou tola a ponto de achar que, após esta noite, recuperaria minha virgindade de um modo milagroso. Será que poderei dizer "não" daqui para frente?
— Você pode gritar "não" quantas vezes quiser. O fato de haver perdido a virgindade não significa que seja obrigada a se submeter aos avanços de qualquer homem. — A idéia de Maldie nos braços de outro homem o enfurecia. Com dificuldade, ele sufocou o ciúme. — Nunca acreditei que a honra e a inocência de uma mulher fossem sinônimos de virgindade.
Não apenas a opinião de Balfour a surpreendeu, como o tom áspero da voz. Não sabia como ou por que, mas algo que dissera o irritara.
— Seu coração é generoso, sir. Mas não estava me referindo à possibilidade de vir a seguir o caminho desajustado de minha mãe, e sim ao fato de ter me tornado sua amante. Isto não pode ser facilmente desfeito.
— Você está arrependida? — Balfour beijou-a no ombro e deslizou a mão ao longo das costas acetinadas.
— Deveria, mas não. — Devagar, Maldie o acariciou no estômago firme, exultando ao percebê-lo estremecer. Consolava-a constatar não estar sozinha na sua vulnerabilidade. — Sempre jurei não cometer os erros de minha mãe. Quando tento me culpar pelo que houve entre nós, não consigo acreditar que seja igual ao que aconteceu com ela. Talvez eu esteja me enganando, preferindo não enfrentar minhas fraquezas... É mais reconfortante acreditar que não as possuo.
— Saiba que partilho dessa fraqueza.
— Isso deveria me fazer sentir menos perturbada? — Maldie ensaiou um sorriso.
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— Eu não conseguia pensar em outra coisa para dizer capaz de ajudá-la a se tranquilizar. Conforme falei antes, também receei repetir os erros de meu pai. E, como você, acho que o que aconteceu conosco em nada se assemelha às atitudes irresponsáveis de nossos pais. Nós dois lutamos contra o desejo mútuo, esforçamo-nos para resistir. Meu pai nunca hesitou em tomar qualquer mulher que quisesse.
— Minha mãe jamais hesitou em se deitar com qualquer homem, fosse por paixão, ou dinheiro. Como parecemos determinados a nos iludir, chamemos esse curto período em que reprimimos nosso desejo de...
— Não foi um curto período. Pelos céus, pareceram-me anos!
— Duas semanas não são exatamente um longo período. Porém podemos nos consolar, e aliviar nossas dúvidas e medos, agarrando-nos à idéia de que nossos pais jamais se conteriam por tanto tempo. É triste enxergarmos defeitos naqueles a quem deveríamos honrar e reverenciar, você não acha?
— É quase impossível não enxergar falhas de caráter quando ficamos mais velhos e, graças a Deus, mais sábios. A sabedoria nos permite se não entender, pelo menos perdoar os pecados de nossos pais. O amor que eu nutria por meu pai não diminuiu quando descobri suas fraquezas. Afinal, ele possuía inúmeras qualidades além da extrema habilidade para lidar com o sexo oposto.
Vendo-o sorrir ao comentar as tolices do pai, embora deixasse claro repudiar o comportamento insensato, Maldie desejou poder sentir-se tão serena ao relembrar os erros da mãe. Infelizmente, quanto mais velha ficava, mais certeza tinha de que sua mãe cometera graves enganos. O sentimento de culpa e a impressão de estar sendo desleal, que costumavam atormentá-la quando se entregava a esses momentos de dúvidas, também estavam se tornando mais fracos, e isto a entristecia.
Nos últimos meses pensar na mãe só lhe trouxera sofrimento e incitara perguntas para as quais ainda não encontrará respostas. Decidindo sufocar a angústia, sorriu. A paixão vivida nos braços de Balfour fora a única coisa que a permitira se esquecer das dores do passado. Ao se entregar experimentara, pela primeira vez, paz interior. Seu amor por lorde Murray lhe concedera a graça de colocar de lado, ainda que por um breve período, a fria e amarga necessidade de vingança. Confiante de que não teria grandes dificuldades para inspirá-lo a lhe dar uma outra amostra daquela paixão cega, Maldie o acariciou na base da espinha.
— Talvez você não deva culpar seu pai pela extrema habilidade com o sexo oposto — sussurrou, beijando-o no pescoço. — Parece-me um traço hereditário.
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— Sim. — Balfour fechou os olhos, saboreando o prazer do carinho. — Muitas mulheres costumam elogiar a habilidade de Nigel como amante.
Embora fosse uma herborista competente, Maldie sabia-se incapaz de curar algumas feridas. O comentário de Balfour revelara o quanto à fama do irmão, de amante extraordinário, deixara-o inseguro quanto ao próprio desempenho. Somente ele tinha o poder de libertar-se desses fantasmas produzidos por mulheres idiotas, impressionadas com a beleza física de Nigel. Mas iria ajudá-lo mostrando-lhe, com palavras e atos, que apenas em seus braços ardia de paixão e que mais ninguém no mundo possuía a capacidade de enlouquecê-la de desejo.
— Não tenho o menor interesse em descobrir se o que dizem sobre seu irmão é verdade. — Fitando-o fixamente, ela roçou os dedos sobre sua intimidade rígida. — Tudo de que preciso e quero está bem aqui. Duvido que possa encontrar algo mais doce, ou mais forte. De fato, mais um pouco e eu não sobreviveria.
A carícia íntima o excitava tanto, que Balfour mal conseguia raciocinar. Certo de que não tardaria a perder o controle, deitou-a de costas e a imprensou com o peso do corpo. Apesar de saber que Maldie apenas o provocava, imaginá-la nos braços de Nigel o enfurecia e apavorava.
— Sim — concordou, beijando-a de leve no rosto. — Você não sobreviveria se dormisse com meu irmão. E não por excesso de prazer.
— Por acaso você está me ameaçando, sir? — ela indagou, no mesmo tom sério e brincalhão.
— Não. Somente a avisando. — Suspirando fundo, ele a abraçou com força. — Receio que seria capaz de perder a cabeça, e um homem irracional pode representar um perigo para todos que o cercam.
— Você recuperaria a razão antes de ferir alguém seriamente.
— Você parece muito segura do que diz.
— E estou. De qualquer forma, não importa, pois trata-se de uma hipótese absurda. Você é um grande tolo, lorde Murray, se não consegue enxergar que eu o desejo e a ninguém mais.
As palavras de Maldie o emocionaram profundamente, e Balfour estava convencido de que levaria algum tempo para não questioná-las.
— Você reconhece que é minha?
— Sim, sou sua. Você me marcou, meu soturno cavaleiro.
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— Ótimo, porque você também deixou sua marca em mim. — Breves segundos de hesitação. — Você ainda sente algum desconforto?
— Não, milorde, nenhum. — Sedutora Maldie o enlaçou pelo pescoço e entreabriu os lábios.
Quando Balfour a beijou, ela se entregou às sensações sem pensar no amanhã. O confronto final com Beaton não tardaria a acontecer e seria obrigada a tomar decisões duras. Contaria a verdade ao lorde Murray então? Tentaria despertar nele algo mais do que paixão carnal? O senhor de Donncoill continuaria desejando-a, depois de sabê-la filha de seu maior inimigo? Tantas perguntas sem respostas. E só teria respostas quando desvendasse seus segredos sombrios. Embora amasse Balfour, não podia lhe confessar a verdade. Não ainda. Apenas, restava-lhe esconder seus sentimentos e aceitar que, enquanto Beaton não fosse derrotado, sexo era a única coisa que poderia pedir a Balfour, ou a lhe dar. Seria dona de seu destino apenas quando cumprisse a promessa feita à mãe. Mas a paixão que os unia era tão intensa, tão gloriosa, que deveria bastar por enquanto.
Maldie procurou disfarçar o bocejo, temerosa de que algum dos guardas a visse. Ninguém teria dúvidas sobre o motivo de seu cansaço e preferia não ser submetida a tamanho embaraço. Então sorriu da própria tolice. Há uma semana partilhava a cama de Balfour e, com certeza, todos o sabiam. Além de saberem, pareciam tê-la aceitado como amante do senhor do castelo sem reservas e sem condenações. De fato, começava a pensar que o povo de Donncoill estava satisfeito com a situação. Talvez muitos acreditassem que lorde Murray acabaria pedindo-a em casamento para assegurar um herdeiro. Depressa, Maldie afastou os pensamentos tentadores. Caso se permitisse sonhar, sofreria ainda mais ao ser obrigada a abandonar Donncoill e Balfour.
Do alto da muralha, ela observava o movimento, o entra-e-sai de aldeões e mercadores. Até que uma figura encurvada, coberta da cabeça aos pés com uma capa marrom, escapuliu através dos portões imensos. Apesar de não conseguir enxergar o rosto da mulher, o instinto lhe dizia tratar-se de Grizel. Precisava avisar Balfour com urgência. A infame pretendia passar novas informações a Beaton.
Como se conjurado, lorde Murray surgiu ao seu lado.
— Eu estava à sua procura — ele sussurrou, beijando-a no pescoço.
— Acho que sei por que — devolveu Maldie, percebendo a excitação do cavaleiro quando os corpos de ambos se tocaram. — Você é insaciável.
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— A culpa é sua. Você deixa um homem faminto.
— Também sinto o mesmo por você. Mas, precisamos adiar nosso prazer por enquanto. — Ela apontou para a criatura encapuzada que acabara de tomar a estrada. — Creio que seria bom segui-la imediatamente.
— Quem é aquela mulher e por que eu deveria segui-la?
— Sei que você só consegue enxergar uma pessoa esfarrapada, contudo acredite-me, é Grizel, preparando-se para traí-lo mais uma vez.
Ainda não de todo convencido, lorde Murray debruçou-se sobre o parapeito da muralha.
— Por acaso você tem visões? Como pode estar certa sobre a identidade e as intenções de um mero vulto?
— Cada fibra de meu ser grita que aquela é Grizel, indo ao encontro dos cúmplices de Beaton. Por favor, apenas siga-a. Se eu estiver certa, você obterá as provas necessárias para acusá-la e assim pôr um fim às traições. Se eu estiver errada, dou-lhe permissão para me chamar de tola.
— Ter sua permissão tira um pouco da graça — Balfour brincou, começando a descer os degraus de pedra. — Vou procurar James e iremos atrás da figura encapuzada. Só espero que ele não me pergunte a razão de espionarmos um vulto. James morreria de rir se eu confessasse estar agindo por causa de um palpite seu.
Maldie sorriu e então ficou muito séria, ao voltar o olhar para Grizel. Era imperioso dar um basta às intrigas daquela mulher. Ninguém tinha idéia das informações que ela já havia passado a Beaton, informações capazes de colocar em risco a vida de Balfour. Bastava pensar no perigo a que lorde Murray estava exposto para Maldie ter vontade de esganar a velha herborista com as próprias mãos. Aliviada, viu James, Balfour e mais dois outros homens saírem de Donncoill ao encalço da vilã. Aproveitaria a ausência do cavaleiro para descansar um pouco. Há dias não dormia o suficiente.
— Agora você vai me explicar por que estamos atrás de uma criatura imunda e esfarrapada? — interrogou-o James, enquanto o pequeno grupo se esgueirava pelo bosque denso que ladeava a estrada.
— Acho que essa é a pessoa que fornece informações a Beaton — Balfour respondeu, satisfeito ao constatar que haviam sido capazes de avançar sem chamar a atenção.
— Pensei que você acreditava ser Grizel a traidora.
Hannah Howell 56 Destinos ao Vento
— E é. — Como explicar o motivo que o induzira a seguir uma figura indistinta? Já podia ouvir as risadas. — Aquela é Grizel.
— Como, em nome de Deus, você tem certeza? Por acaso viu-a se disfarçando com os andrajos ao deixar Donncoill?
— Não. Antes de você continuar me distraindo com perguntas intermináveis, saiba que foi Maldie quem me alertou sobre a verdadeira identidade desse vulto e suas intenções criminosas.
— Ah, então a jovem Kirkcaldy o mandou perseguir Grizel, depois de convencê-lo de que a velha herborista odeia todo o clã Murray.
Irritado com o tom debochado do mestre de armas, Balfour franziu o cenho.
— Quando Maldie me abriu os olhos a respeito de Grizel, pequenos detalhes passaram a fazer sentido.
— Bem, não vou discordar, mas a moça escutou Grizel falar algo suspeito? Algo que indicasse traição?
— Não — admitiu Balfour, fazendo sinal para que os outros permanecessem escondidos atrás das árvores. — A aldeia ficou para trás e não há mais ninguém nesta clareira. Exceto Grizel. Um cenário suspeito.
James esfregou o queixo pontudo, os olhos fixos em Balfour.
— Reconheço sua autoridade como meu lorde, mas você também é o menino que ensinei a cavalgar. Por isso, sinto-me à vontade para interrogá-lo. Diga-me exatamente o que foi visto e ouvido. Explique-me por que desmontamos e estamos espreitando uma pessoa como se fôssemos ladrões.
— Nada foi visto, ou ouvido — Balfour retrucou impaciente. Maldie apenas sabia que sob essa capa estava Grizel, prestes a nos trair outra vez.
— Ela teve uma visão?
— Não, somente um palpite. Sim, sei que pode parecer tolice. Que mal há nisso? Ou assistiremos à ação de uma traição, ou nada acontecerá. Embora eu ache difícil acreditar que Grizel, suja e esfarrapada, tenha vindo até este local ermo para encontrar-se com um amante.
— Quem pode afirmar o contrário? A paixão deixa qualquer um cego e estúpido.
Decidindo ignorar o insulto velado, Balfour rezou para que Maldie estivesse certa, para que aquela fosse mesmo Grizel, a um passo de se revelar a traidora do clã. Apesar de odiar a idéia de que alguém de sua própria gente ajudasse Beaton, essa situação detestável era preferível a parecer um completo idiota.
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Movimentando-se silenciosamente, o grupo avançou até as proximidades de um riacho. Sentada numa pedra, livre do capuz, Grizel expunha as feições rudes ao sol.
— Então a jovem Kirkcaldy estava certa sobre quem se escondia sob a capa — James admitiu, sorrindo. — Agora ainda nos resta obter provas de traição.
— Não creio que teremos que esperar muito — interveio um dos soldados, um tipo forte e taciturno chamado Ian. — Ou esses são enviados de Beaton, ou alguém, enfim, resolveu dar cabo dessa bruxa imunda.
Cautelosos, três homens se aproximavam de Grizel, cuja expressão não revelava medo, ou surpresa, apenas o mau humor habitual. Imediatamente Balfour notou as cores do clã de Beaton nas roupas dos desconhecidos. Ali estava a prova de que necessitava.
— Você planeja escutar a conversa antes de atacar? — indagou James.
— Deveria?
— Não. A identidade desses homens é óbvia, assim como o fato de que conhecem bem Grizel.
— Tentem capturar um dos canalhas vivo — Balfour ordenou, fazendo sinal para tomarem posição. — Talvez possamos obrigá-lo a nos revelar o tamanho do estrago que Grizel nos causou.
Embora soubesse ainda não ser possível derrotar Beaton, ou resgatar Eric, Balfour não pretendia desperdiçar a chance de, pelo menos, ferir o inimigo e conquistar uma pequena vitória. Aniquilaria a vantagem que Beaton obtivera com a traição de Grizel ao próprio clã.
Tudo aconteceu tão depressa, que Balfour sentiu-se de certa forma desapontado. Os asseclas de Beaton recusaram-se a se render e, ao tentarem fugir da armadilha na qual haviam sido pegos, foram rapidamente mortos. Grizel não esboçou um único gesto para se salvar. Limitou-se a acompanhar a breve luta exalando ódio por todos os poros. Quando o último inimigo foi exterminado, Balfour perguntou-se se ela, num rompante de autopreservação, negaria as acusações.
— Então o poderoso lorde de Donncoill não tem nada melhor a fazer do que espreitar velhas?
— Você se provou culpada de um grave crime. Falar com um pouco mais de humildade, talvez até expressar algum arrependimento, lhe conviria.
— Arrependimento? — Grizel cuspiu no chão, cheia de desprezo. — Não tenho nenhum arrependimento.
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— Você traiu seu clã. Lançou na lama o nome de sua família e essa será uma mancha da qual seus parentes não se livrarão facilmente.
— Não me importo a mínima com meus parentes. Todos passaram suas vidinhas miseráveis trabalhando para você e sua família. Quando lhes contei sobre como seu pai me envergonhou e implorei para que lutassem por minha honra, recusaram-se. Deixe-os agora salvarem-se sozinhos, como me salvei.
— Você não se salvou sua tola — disse James. — Você não fez nada além de pôr uma corda ao redor do pescoço. E tudo porque um homem a levou para a cama uma vez e não repetiu a experiência? Você tinha um lugar de honra entre nós e escolheu nos apunhalar pelas costas?
— Lugar de honra? — Grizel riu amarga. — Você está se referindo ao posto que nosso antigo lorde reservou à sua prostituta descartada? Que grande honra ter que enfrentar toda e qualquer doença que assola Donncoill. Que grande honra ser obrigada a limpar os narizes e as nádegas dos doentes. Uma única coisa boa ganhei com essa função detestável. Pude ficar mais perto de seu pai, Balfour. Sim, vocês, tolos, puseram a vida do velho lorde em minhas mãos e permitiram-me fazer o que me agradasse.
— Você o matou — murmurou Balfour, o choque roubando-lhe o vigor da voz.
— Sim, bem diante dos olhos de todos. Dia após dia drenei o sangue daquele bastardo até não lhe sobrar uma única gota. E agora entreguei seu querido filho ilegítimo ao maior inimigo dos Murray. — Grizel endireitou os ombros quando Balfour desembainhou a espada.
— Não — interveio James, segurando o cavaleiro pelo braço e impedindo-o de desferir o golpe. — É isto que ela quer. Uma morte rápida e limpa pela espada é sempre preferível à forca.
— Ela matou meu pai. Pensei que fosse vontade de Deus, ou pior, o triste resultado da incompetência dessa maldita. Mas trata-se de assassinato. E nós assistimos ao lento homicídio sem o saber. — Balfour virou-se de costas, embainhando a espada devagar. Se continuasse ouvindo-a, ou fitando-a, acabaria matando-a. — Não suporto tê-la perto de mim. Leve-a para o castelo e mantenha-a presa — ordenou aos soldados, afastando-se a passos largos.
Lorde Murray valeu-se do longo percurso de volta a Donncoill para tentar se acalmar. Precisaria ter o ódio sob controle quando pusesse os parentes de Grizel a par da situação e quando a sentenciasse. Não poderia cumprir nenhum desses deveres bem se permitisse que a cólera, embora justificável, o subjugasse. Naturalmente ninguém o
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condenaria se sucumbisse ao ódio, mas o melhor seria mostrar-se calmo e racional, em especial porque a pena de Grizel seria a morte. O domínio das emoções inspiraria mais respeito ao seu povo do que uma raiva insana.
Ao entrar no castelo, Balfour dirigiu-se aos aposentos de Maldie, rezando para encontrá-la sozinha. Precisava vê-la, abraçá-la, saciar o forte desejo que subitamente o assolara. O instinto lhe dizia que apenas Maldie o ajudaria a recuperar o controle de si. Estranho pensar que a única pessoa capaz de despertar sua paixão de modo selvagem, era a mesma capaz de lhe devolver a sanidade.
Maldie acordou com o ruído da porta sendo aberta. Sentando-se na cama, fitou Balfour, cuja expressão, misto de melancolia e ódio profundo, assustou-a. Por um terrível momento indagou-se se não seria a causa dessa raiva, porém logo baniu o receio descabido. Afinal, lorde Murray não estivera longe tempo suficiente para descobrir um de seus segredos. Sem dúvida tratava-se de algo relacionado à Grizel. Aquela figura furtiva e encapuzada revelara-se, enfim, a traidora vil. Sentia-se aliviada ao constatar não haver errado em suas suposições, mas doía-lhe a alma testemunhar a angústia de Balfour ante a traição imerecida.
— Sinto muito — falou baixinho, tomando as mãos ásperas entre as suas.
— Por quê? Você estava certa.
— Sim, adivinhei o segredo de Grizel. Entristece-me você ter experimentado o gosto amargo da traição, pois não fez nada para merecê-la.
Olhando-a fixamente, Balfour beijou-a na palma de uma das mãos.
— Seu pesar me comove e reconforta, mas não é isto que busco agora. — Notando os olhos verdes ficarem ainda maiores, apressou-se a explicar: — Sei que não é muito lisonjeiro, mas preciso desanuviar a mente e creio que amando-a conseguirei pensar com clareza.
Rindo, Maldie puxou-o para a cama.
— Entendo. Primeiro vem à paixão, que nos rouba a capacidade de raciocinar. Então, na languidez depois do êxtase, quando o corpo está saciado, recuperamos os sentidos e os pensamentos se ordenam. — Beijando-o de leve nos lábios, sussurrou: — Apenas não faça desse o único motivo para procurar minha cama, ou começarei a me sentir pouco mais que um objeto.
— Tal coisa nunca acontecerá.
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Entregando-se ao beijo voraz, Maldie pensou que Balfour só dissera aquelas palavras porque não a conhecia de fato. Quando soubesse toda a verdade, jamais voltaria à sua cama. Sentiria-se traído e a poria para fora de Donncoill e de sua vida. O medo de que isso logo poderia acontecer acendeu ainda mais seu desejo.
Mal os dois terminaram de se despir, Maldie empurrou Balfour contra o colchão e se posicionou sobre o corpo musculoso. Devagar, pôs-se a acariciar o peito largo e a cobri-lo de beijos úmidos. Temeroso de que a carícia enlouquecedora fosse interrompida, ele permaneceu imóvel, incapaz de articular um único som.
Estremecendo violentamente, Balfour lutou para conter-se. Certo de que explodiria de prazer, puxou-a pelos braços e, amou-a numa única investida. Agarrando-se um ao outro como náufragos em meio à tempestade, os dois atingiram o clímax, as bocas coladas impedindo-os de gritar no auge da paixão carnal.
Exaustos, roubados de toda a energia, deixaram-se ficar abraçados, saboreando a paz do silêncio. Quando, enfim, Balfour conseguiu raciocinar com clareza, seus primeiros pensamentos não giraram em tomo de Grizel, Beaton ou traições. Maldie acabara de amá-lo de uma maneira que poucas mulheres conheciam, de uma forma que nunca lhe sugerira antes. Lembrar-se de que ela era virgem quando haviam se deitado juntos pela primeira vez de pouco servia para sufocar a crescente inquietude. Afinal, aquele tipo de carícia não tirava a virgindade de uma mulher.
— Como você sabia o que fazer? — indagou, detestando-se por se sentir impelido a fazer tal pergunta.
Imperturbável, Maldie suspirou fundo, percebendo a culpa estampada no rosto viril. Talvez devesse se sentir insultada pelos pensamentos pouco cavalheirescos que, certamente, passavam agora pela cabeça de lorde Murray. Mas não se sentia ofendida. Acabara de amá-lo de um modo ousado, praticado apenas por mulheres experientes. Claro que Balfour ficara intrigado, porque a considerava inocente. Só se sentiria afrontada se ele não acreditasse em suas explicações, porque lhe diria a mais pura verdade.
— Não consegui desanuviar sua mente, como você desejava? — questionou-o, suave.
— Bem, sim... mas... — Confuso, ele a viu sorrir ante seu embaraço.
— Minha mãe me contou que os homens gostam de carícias. Ela estava errada?
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Por um instante Balfour nada retrucou, chocado, irritado com a mãe de Maldie. E amargurado por vislumbrar detalhes de um capítulo trágico da vida da mulher que agora apertava entre os braços.
— Não, sua mãe não estava errada, mas cometeu um erro ao lhe falar dessas coisas. Por acaso ela estava tentando... — Lorde Murray calou-se, inseguro sobre como elaborar a pergunta sem dar a impressão de estar insultando a mãe de Maldie.
— Tentando me transformar numa prostituta? — ela completou, sorrindo tristemente. — Às vezes penso que sim. Eu poderia ter ganho muito dinheiro durante alguns anos, até que minha beleza e juventude se dissipassem. Às vezes acho que minha mãe não conhecia outros assuntos sobre os quais conversar, exceto homens e como satisfazê-los para ganhar bastante dinheiro. — Maldie aconchegou-se ao peito forte. — Mas falemos sobre o que o deixou tão furioso.
— Receio admitir haver perdido a chance de chamá-la de tola. — Embora se soubesse ainda cheio de raiva, Balfour não tinha dúvida de que conseguiria controlar-se agora. — Conforme lhe disse, a figura esfarrapada era mesmo Grizel indo encontrar-se com três enviados de Beaton. Infelizmente os malditos recusaram-se a ser capturados vivos. Essa pequena vitória teria sido um pouco mais doce se eu tivesse tido chance de arrancar alguns segredos a respeito de meu inimigo.
— Grizel ainda está viva?
— Sim, e não contará nada. Se souber qualquer segredo sobre Beaton, o levará para o túmulo apenas para me afrontar. A infame não tentou sequer se salvar durante o confronto. Permaneceu impassível enquanto atirava a verdade nua e crua nas nossas caras.
— Se prefere morrer enforcada a implorar perdão, o ódio dela por vocês é ainda mais forte do que eu havia imaginado.
— Oh, sim, muito forte. Tão forte que a levou a cometer assassinato.
— Tem certeza?
— Sim. Grizel confessou o crime. Você se lembra de quando lhe falei sobre como ela fazia uso constante de sanguessugas para tratar vários tipos de doenças em Donncoill?
Maldie estremeceu, horrorizada ante o pensamento que acabara de lhe ocorrer.
— Você disse suspeitar que essa prática havia apressado a morte de seu pai.
— Mais do que apressou. Grizel se vangloriou de ter usado a posição de herborista para assassinar meu pai lentamente, diante de nossos olhos. Aquela criatura
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vil o sangrou até a última gota. Ansiei matá-la, mas James me impediu. — Balfour sorriu melancólico. — Desembainhei minha espada contra uma mulher velha e amarga.
— Não há por que se envergonhar. Grizel assassinou seu pai de forma pérfida e impiedosa. — Maldie beijou-o de leve no rosto, querendo ser capaz de ajudá-lo a superar o sofrimento. — E você não a matou. Nem James poderia tê-lo impedido, se estivesse mesmo decidido a executá-la. Não se recrimine pelo que quase chegou a fazer. Pense nas atitudes que deve tomar agora.
— Preciso contar a Nigel e então explicar a situação aos parentes de Grizel. Mas preferiria ficar aqui. — Ele a abraçou surpreso como a simples proximidade de seus corpos lhe infundia calma.
— Se você esperar demais para falar com Nigel e com a família de Grizel, eles ouvirão de terceiros. Notícias graves assim não são mantidas em segredo por muito tempo. Provavelmente os rumores já se espalharam pelo castelo. Nigel tem de ouvir a verdade da sua boca e não descobri-la por intermédio de boatos.
— Eu sei. — Praguejando baixinho, Balfour levantou-se e começou a vestir-se. — Rezo para conseguir controlar minha raiva, ou apenas inflamarei o ódio de meu irmão.
Enrolando-se no lençol, Maldie sentou-se na beirada da cama.
— Devo esperá-lo aqui, milorde? — brincou feliz ao vê-lo rir. Pelo menos por alguns instantes fora capaz de banir a imensa tristeza dos olhos escuros.
Lorde Murray beijou-a e caminhou para a porta.
— É um oferecimento muito tentador, moça, e quisera aceitá-lo. Creio que Nigel necessitará de seus cuidados depois que eu lhe contar essa história macabra. Ele ficará tão fora de si quanto fiquei ao descobrir a verdade.
— Claro. O ódio poderá deixá-lo muito agitado e enfraquecê-lo. Quando terminar de conversar com seu irmão, bata em minha porta e irei atendê-lo.
Sozinha no quarto, Maldie recostou-se na cama, os pensamentos se atropelando. Mais uma obra de Beaton. Ele usara a fúria de uma velha ressentida para ferir Balfour e sequestrar um garoto. O assassinato do pai de Balfour talvez não houvesse sido levado a cabo por ordem de Beaton, porém o canalha, com certeza, se regozijara e até premiara a assassina. Beaton merecia pagar por seus crimes. A única pergunta era quem iria destruí-lo primeiro. Ela, ou Balfour?
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Capítulo V
Embora o vinho de nada servisse para acalmá-lo, Balfour tornou a encher o cálice até a borda. Tenso, olhou ao redor. O grande salão estava quase vazio, apesar de ser hora do almoço. Só esperava que a ausência de sua gente fosse devida a uma falta de apetite generalizada, e não porque acabara de julgar e enforcar um membro do clã.
Abatido, sorveu o vinho lentamente, os pensamentos fixos nos acontecimentos recentes. Grizel não demonstrara o menor arrependimento durante o breve julgamento e o amaldiçoara, e a sua família, até o último momento, quando o laço da corda quebrara-lhe o pescoço. Balfour continuava sem saber o que o afligira mais, o ódio inabalável daquela mulher, ou o fato de haver levado a cabo seu primeiro enforcamento. A morte de Grizel não lhe causara nenhuma satisfação. Tampouco orgulhava-se de ter sido obrigado à condená-la à pena máxima.
— Anime-se, rapaz — disse James, sentando-se ao seu lado. — Você tomou as atitudes necessárias. A maldita confessou os crimes e não mostrou nenhum arrependimento. Você poderia até perdoá-la pela traição, mas nunca pelo assassinato do antigo senhor de Donncoill.
— Eu sei. Grizel não concedeu ao meu pai uma morte rápida, ou honrosa. Portanto, foi justo que morresse da mesma maneira ignóbil. Mas, enforcamentos não me agradam. Custou-me cumprir esse dever. Na verdade, estou furioso por aquela bruxa haver me forçado a fazê-lo.
— Talvez tenha sido o derradeiro ato de vingança de Grizel.
— Sim, talvez. — Balfour sorriu, cansado. — Hoje vivemos um dia difícil, mas com algumas compensações. Identificamos nossa traidora, a julgamos e enforcamos.
— Sim. O instinto da jovem Kirkcaldy revelou-se mais apurado que o nosso.
— Creio que levarei muito tempo até me livrar da culpa pela morte de meu pai.
— Culpa? Por que você se sentiria culpado?
— Porque permaneci à parte, assistindo aquela mulher assassiná-lo. Acabei me transformando num cúmplice do crime.
— Tolice — James retrucou firme. — Grizel era a herborista do clã. Seu próprio pai a escolheu para a função.
— Mas eu me sentia inquieto sobre a forma como ele estava sendo tratado. Achava que tantas sangrias o enfraqueciam, em vez de fortalecê-lo. Ainda assim, não
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interferi. Deveria ter me ocorrido que uma amante repudiada não serviria para ajudá-lo a recuperar a saúde.
— Seu pai tinha plena consciência de toda a situação e desejou se entregar aos cuidados de Grizel. Sei que minhas palavras não aliviarão sua culpa, mas acredite-me quando digo que você não é responsável pela morte do velho lorde. Nenhum de nós o é, Não havia razão para suspeitar de uma antiga moradora de Donncoill.
Apesar de concordar com o argumento do amigo, Balfour sabia que não se eximiria facilmente da responsabilidade. Era duro aceitar que poderia ter salvado o pai e nada fizera. E Eric não estaria sofrendo nas mãos de Beaton, se tivesse prestado mais atenção nas pessoas ao seu redor. Grizel os traíra durante anos. Angustiava-o pensar que nunca notara sinais de deslealdade. Se houvesse sido um pouco mais alerta... Impossível mudar o passado e corrigir seus erros. Restava-lhe não tornar a cometê-los.
— Bem, pelo menos agora temos prova de que Maldie não é nossa inimiga — falou, servindo-se de pão e queijo.
— Será? — devolveu James num murmúrio, espalhando uma generosa camada de mel sobre uma fatia de pão.
— Sim. Foi ela quem nos revelou a identidade do traidor.
— De fato.
— Grizel estava trabalhando para Beaton. Se Maldie fizesse o mesmo, não nos entregaria um dos espiões.
— Por que não? — James encarou Balfour fixamente. — Não existe maneira melhor de induzir o inimigo a considerá-lo um aliado.
— Não, não sou capaz de acreditar nisso.
— Você não quer nem pensar nessa possibilidade e, creia-me, entendo-o. Mas, acabamos de constatar o que pode acontecer se não prestarmos muita atenção a todos que nos cercam. Grizel, nascida e criada entre os Murray, assassinou o lorde de seu próprio clã, além de passar informações vitais ao nosso pior inimigo.
— E Maldie sequer pertence ao nosso clã.
— Sim. Não sabemos quem ela é realmente. Embora se apresente como Kirkcaldy, não possuímos provas de que tenha parentesco com aquela família. A jovem tampouco nos revelou o nome do pai.
Praguejando por entre os dentes, Balfour empurrou o prato para longe, o apetite perdido. Preferiria não dar ouvidos a James, mas a sombra da suspeita pairava no ar. A idéia de Maldie vir a traí-lo cortava-lhe a alma. Se estivesse arriscando apenas sua vida,
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não se empenharia em descobrir a verdade. Seguiria em frente na mais completa ignorância. Contudo, se a permitisse apanhá-lo numa cilada, muitos de seu clã sucumbiriam ao seu lado.
— Só estou lhe pedindo para ter cuidado — James insistiu sério. — Sim, Maldie é uma moça bonita, delicada, adorável. Grizel, com seu temperamento irascível e personalidade detestável, conseguiu nos enganar. Quanto mais fácil seria para uma bela herborista nos conduzir à nossa própria ruína?
— Você, no entanto, não encontrou provas para acusá-la.
— Sim, eu sei. Maldie pouco fala a respeito de si. Surgiu de repente, do meio do nada, e entrou em nossas vidas. É o suficiente para inspirar cautela.
— Ela conhece muito sobre Beaton e Dubhlinn, admito. E, há um detalhe interessante. Se Maldie planeja nos trair, por que nos forneceria informações sobre nosso inimigo?
— Talvez para nos enganar. Não é possível nos certificarmos da veracidade do que ela diz. Não temos tido notícias de nosso homem em Dubhlinn há algum tempo e sequer sabemos se ele continua vivo. Será que as informações de Maldie Kirkcaldy nos ajudarão a salvar Eric e derrotar Beaton? E se estivermos sendo atraídos para uma cilada armada por Beaton?
— Por que Maldie salvaria a vida de Nigel?
— Para colocá-lo em débito e conquistar sua confiança?
— Por que ela dormiria comigo?
— Você não precisa que eu lhe explique sobre como uma mulher pode usar os atributos femininos para deixar um homem cego e estúpido.
— Maldie era virgem — Balfour falou baixinho, não querendo que ninguém mais no salão o escutasse. — Vi o sangue no lençol quando a deflorei.
— Existem meios de uma mulher se fingir inocente.
Balfour levantou-se abruptamente, encerrando a discussão. Continuava abalado pela descoberta dos crimes de Grizel e por havê-la condenado à forca. A última coisa de que necessitava agora era ser convencido de que Maldie também o trairia.
— Chega James. Você está certo ao tentar abrir meus olhos. Afinal, minha cegueira permitiu que Grizel nos apunhalasse pelas costas. Só que, no momento, não me encontro em condições de levar o assunto adiante. Mais tarde retomaremos a questão. — Lorde Murray caminhou uns poucos metros e virou-se para o mestre de armas. — Dou-lhe permissão para interferir se você notar que comecei a fazer papel de idiota.
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Muitos poderiam perder suas vidas se eu fosse obrigado a aprender mais uma dura lição sobre deslealdade.
Enquanto se dirigia aos aposentos do irmão, Balfour se esforçou, sem sucesso, para apagar as palavras de James da mente. A amarga traição de Grizel o deixara inseguro quanto à própria capacidade de avaliar as pessoas. Só porque o instinto lhe dizia que Maldie não era espiã de Beaton, isto não significava que estivesse certo. Passara anos e anos sem desconfiar de Grizel.
Ao entrar no quarto, procurou retribuir o sorriso de boas-vindas da bela herborista.
— Farei companhia a Nigel agora. Vá comer alguma coisa.
Vendo-a sair, Balfour inspirou fundo, o coração acelerado. Precisava ponderar os avisos de James um pouco mais antes de ficar sozinho com Maldie, pois receava deixar transparecer suas suspeitas. Se estivesse mesmo lidando com uma espiã, preferiria arrancar-lhe alguma informação útil antes de desmascará-la.
— Aquela mulher está morta? — indagou Nigel.
— Sim. Grizel foi para a forca tão mal-humorada e desprezível quanto viveu.
— Quisera ter tido forças para assistir ao enforcamento.
— Não, você nada ganharia vendo-a morrer. Quanto a mim, não sinto ter vingado a morte de nosso pai porque meu sentimento de culpa ultrapassa a satisfação de haver identificado o assassino. Apesar de tudo, Grizel não passava de uma velha amarga, de uma amante repudiada. Embora tenha nos causado muito mal, enforcá-la não muda o passado.
— É verdade. Pelo menos morta, a maldita não pode mais nos ferir, ou ajudar Beaton. — Nigel fez uma pausa, os olhos fixos no irmão. —Você está com essa expressão preocupada apenas porque se considera culpado, ou existe outro motivo?
— Eu poderia ter impedido o que houve com nosso pai.
— Como você parece determinado a carregar o fardo da culpa, não creio que conseguirei convencê-lo do contrário. A propósito, continuo esperando uma resposta para minha pergunta.
Aparentando cansaço, Balfour passou as mãos pelos cabelos escuros.
— Parece que, a partir de agora, qualquer pessoa tornou-se suspeita de traição.
— Qualquer pessoa significa Maldie?
— Você confia nela?
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— Sim, muito. Em hipótese nenhuma a julgaria traidora. Você me conhece bem e deve imaginar como me sinto, agora que vocês se tornaram amantes.
— Ela lhe contou?
— Não. Nem uma palavra. Não sou tolo a ponto de não entender por que a jovem herborista deixou de dormir aqui. Você age depressa, irmão.
— Não compreendo essa sua relutância em suspeitar de Maldie — Balfour o pressionou, ignorando o comentário.
— E melhor não entrarmos em questões pessoais.
O tom de voz frio e ríspido surpreendeu-o. Sim, melhor ter cuidado com o rumo da conversa. Evidentemente Nigel estava com ciúme e não queria ouvir sobre seu envolvimento amoroso com Maldie. Quanto a ele, preferia não saber a verdadeira natureza dos sentimentos do irmão pela única mulher que o rejeitara.
— James acredita que Maldie deve ser vigiada? — Nigel perguntou.
— Sim. Porque é uma estranha.
— Não para você. — Um gesto de mão silenciou Balfour. — E óbvio que James suspeita de algo. Encarregue-o de espioná-la, pois não me prestarei a tal papel. Já estou achando difícil aceitar que não me basta fazer um sinal para ter toda e qualquer mulher que desejo aos meus pés. Assim, gostaria de pelo menos me considerar um sujeito imparcial, incapaz de deixar o ciúme contaminar meu raciocínio. Devo minha vida àquela moça e não vou retribuir com desconfianças.
— Nem eu.
— Ambos sabemos que não. Mas você é o chefe deste clã e muitas vidas dependem de suas atitudes. — Nigel calou-se, reconsiderando a decisão de momentos atrás. — Está claro que você quer conversar sobre o assunto. Bem, recuso-me a permitir que uma jovem de olhos verdes se interponha entre nós. Falaremos do que for necessário. Só não me conte como tem desfrutado da intimidade de nossa bela hóspede. Concentre-se no que precisa dizer e serei o defensor de Maldie. Depois de tudo o que fez por mim, é justo que eu argumente a seu favor.
— James afirma que ela salvou sua vida para conquistar nossa confiança.
— Nunca pensei que James tivesse um coração tão duro. E sim, é possível que ele tenha razão. O motivo pelo qual Maldie salvou minha vida não importa. Continuo em débito.
— Ela nunca fala de si — comentou Balfour, enchendo dois copos de cidra. — Apenas pequenos detalhes sobre os anos ao lado da mãe.
Hannah Howell 68 Destinos ao Vento
— Porque teve uma vida triste. Talvez queira esquecer o passado.
— Verdade. Mas é estranho que saiba tanto sobre Dubhlinn.
— Maldie passou algum tempo no castelo e é observadora.
— Você é um bom defensor.
Durante vários minutos os dois mantiveram o plano. Balfour enumerando coisas que poderiam parecer suspeitas e Nigel explicando por que as considerava inócuas. Naturalmente Balfour evitou qualquer menção ao fato de tê-la tomado para amante.
Por fim, inquieto, levantou-se.
— Basta. Estamos andando em círculos. Tudo o que Maldie diz, ou faz, pode ser interpretado de maneira inocente, ou não. Também não quero julgá-la mal, mas preciso enfrentar a, realidade. Tenho de colocar de lado o que sinto o que suponho ser verdade, para agir de forma imparcial.
— A maldição de ser o chefe do clã — Nigel murmurou compassivo. — Só tenho um pedido a lhe fazer.
Vendo o irmão hesitar, Balfour o pressionou.
— Não posso atender seu pedido, se não souber qual é.
— Se for provado que Maldie é informante de Beaton, o que você fará com ela?
Imaginá-la culpada, imaginar-se forçado a castigá-la o angustiava tanto, que Balfour amaldiçoou a própria covardia.
— Não sei. Não a enforcarei se é isto que o aflige. Devemos sua vida a Maldie e provavelmente a de muitos outros feridos, que voltaram conosco de Dubhlinn naquele dia. O que farei com ela, ainda não sei.
— Na verdade eu nem deveria ter me preocupado em perguntar-lhe, porque você nunca será capaz de machucá-la. Não creio que alguém aqui faria mal a Maldie, nem mesmo James.
— Não, nem mesmo James. Se for provado que Maldie está ajudando Beaton, tudo o que farei é mantê-la prisioneira até que essa guerra acabe.
— Espero que você não encontre prova nenhuma.
— Eu também. Ou terei muito trabalho tentando convencê-lo a acreditar em mim.
A risada de Nigel o acompanhou corredor afora. Ah, como odiava pensar que lhe caberia vigiar Maldie, observá-la, pesar e medir cada uma de suas palavras. Preferia trocar de lugar com o irmão e exercer o papel de defensor. Preferia até deixar tudo nas mãos capazes de James, como fizera no início. Infelizmente não podia.
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Sendo lorde de Donncoill nunca ignoraria suas responsabilidades, nunca fugiria ao dever.
Pelo menos existiam alguns motivos para não abandonar a cautela. Em consideração aos sentimentos de Nigel, não revelara o que o preocupava de fato: a extrema habilidade de Maldie como amante. Seu irmão talvez fosse à pessoa com mais experiência no assunto em todo o castelo e teria condições de ajudá-lo a lidar com a questão. Maldie, passional e ardente, parecia não possuir as inibições típicas de uma virgem. O mais perturbador fora o modo como ela o amara horas atrás. As explicações haviam sido perfeitamente coerentes e queria acreditar no que ouvira. Entretanto, desconfianças o inquietavam. Era quase mais fácil crer que Maldie fora mandada a Donncoill para seduzi-lo, do que pensar que uma mãe seria capaz de ensinar à filha detalhes íntimos de como agradar a um homem.
Ao entrar nos aposentos que passara a dividir com a jovem herborista na última semana, Balfour se esforçou para retribuir o sorriso de boas-vindas, perguntando-se se suas dúvidas não eram fruto das dúvidas que alimentava sobre si mesmo, sobre sua capacidade de atrair uma bela mulher e mantê-la interessada. Jamais tivera alguém como Maldie partilhando sua cama, alguém que além de linda e impetuosa, permanecia indiferente às investidas do sedutor Nigel.
— Você parece bastante preocupado — ela falou baixinho, estendendo a mão e puxando-o para perto de si.
— Enforcamentos nunca me agradaram. Condenei uma pessoa à forca e assisti ao cumprimento da sentença.
Enlaçando-o pelo pescoço, Maldie o fez deitar-se na cama e beijou-o no rosto.
— Não havia outra alternativa. Como lorde de Donncoill, é seu dever observar a lei. O que aconteceria se libertasse uma traidora e assassina? O que sua gente pensaria? Que você não tem estômago para aplicar punições severas e que cada qual é livre para fazer o que bem entender, sem temer as consequências. Creia-me, não lhe restava escolha. Você não puniu Grizel apenas pelos crimes horríveis, mas para deixar claro que a lei deve ser respeitada.
— Sim, é verdade. Eu não poderia permitir que um criminoso escapasse ao castigo, não por causa de seu sexo, ou idade.
— Talvez o que o incomode tanto seja haver condenado uma mulher idosa à morte.
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— Talvez. Acho que passarei a prestar mais atenção às mulheres que me cercam. É óbvio que podem ser tão perigosas quanto qualquer homem.
Ocupada em livrá-lo da túnica, Maldie sentiu-se tomada por súbita inquietude. Sabia que Balfour não estava se referindo a ela, que seu sentimento de culpa a levava a pensar assim. Afinal, ele acabara de lidar com Grizel, com as mentiras e a traição de que fora vítima, com o assassinato do pai. Não devia temer ser descoberta, porque ninguém conhecia sua identidade real. Nem sequer Beaton.
Por um instante considerou a idéia de explicar tudo a Balfour. A necessidade de medir cada palavra, o medo constante de ser desmascarada antes que estivesse pronta para contar a verdade a estavam enlouquecendo. Então a voz da razão falou mais alto. Precisava cumprir a promessa feita a uma moribunda, ou não tinha nenhuma honra. Quando Balfour soubesse a verdade, provavelmente perderia a chance de levar sua vingança até o fim.
— A dor causada pelo que você descobriu hoje e pelo que foi forçado a fazer passará. E se os acontecimentos contribuíram para torná-lo mais cauteloso, o saldo foi positivo.
— É verdade. — Beijando-a atrás da orelha, Balfour murmurou: — Há muito trabalho que eu deveria estar fazendo agora.
— Ah, você negligencia seus deveres.
— Creio merecer um ou dois momentos de prazer.
— Apenas um ou dois momentos?
Rindo, ele a beijou vorazmente. Maldie correspondeu com igual ardor, perguntando-se se esse desejo se dissiparia um dia. Gostaria que sim, porque se fosse obrigada a partir de Donncoill, gostaria de não passar o resto da vida ansiando por um homem inatingível.
Logo as mãos experientes percorriam cada centímetro de seu corpo, arrastando-a num turbilhão de sensações vertiginosas. Segurando-a firme pelos quadris, Balfour a beijou na parte interna das coxas e então, bem devagar, deslizou a língua em direção ao ponto mais íntimo de sua feminilidade. O choque a fez querer se afastar, escapar da carícia ousada, porém ele impediu-a de mover-se, insistindo na pressão alucinante. Enlouquecida de desejo, Maldie entregou-se ao prazer mais intenso que jamais conhecera. Sabendo-se à beira do clímax, tentou puxá-lo para junto de si. Ignorando-a, Balfour continuou a beijá-la, até lançá-la num prazer devastador. Ainda não refeita do delirante êxtase, Maldie foi amada numa única investida e, para seu próprio espanto,
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descobriu-se novamente galgando os degraus da paixão. Chegava a ser assustadora a facilidade com que Balfour a excitava. Juntos, os dois atingiram o clímax, os gritos roucos fundindo-se num só. Esgotados, abraçaram-se, bendizendo o silêncio e a quietude do quarto.
A medida em que sua mente desanuviava, o embaraço de Maldie ganhava contornos nítidos. Apesar da sua inexperiência sexual, possuía algum conhecimento teórico e já havia ouvido falar daquela forma audaciosa de amar. A carícia lhe proporcionara um prazer tão extremado que agora perguntava-se se não teria herdado os pendores da mãe, se não teria alma de prostituta. Porque, sem dúvida, quando a paixão a dominava, perdia todo o senso de modéstia.
— Não fique preocupada, moça. — Terno, Balfour beijou-a na ponta do nariz. — Essa carícia não é uma coisa de prostituta.
Insegura sobre como reagir à maneira natural como ele parecia adivinhar seus pensamentos, Maldie franziu o cenho.
— Nem sempre é fácil saber o que é, ou não, coisa de prostituta.
— Verdade. — Lorde Murray levantou-se e começou a se vestir, sorrindo ao vê-la cobrir-se com o lençol. — Existem aqueles que consideram qualquer demonstração de desejo físico, além de uma cópula rápida e impessoal, como coisa de prostituta, enquanto outros acreditam que, entre quatro paredes, qualquer tipo de carícia para dar e receber prazer é aceitável. Quanto a mim, acredito num meio-termo. Está claro agora?
— Oh, sim, muito claro.
— O que partilhamos é uma paixão rara — ele falou, sério —, e confesso estar mais do que ávido para ousar. Mas, você precisa me avisar quando faço algo que não lhe agrada. Eu jamais a submeteria a práticas que lhe causem aversão.
Corando, Maldie abaixou o olhar, incapaz de fitá-lo.
— Sim, vou avisá-lo. Apenas lembre-se do que era minha mãe e seja paciente com minhas inseguranças—pediu num fio de voz. — Às vezes receio que por gostar tanto do que fazemos juntos eu tenha, correndo em minhas veias, sangue de prostituta.
— Prostitutas geralmente não apreciam nada, exceto o dinheiro que o freguês lhes paga. Sentir paixão não a transforma em meretriz. É como lidamos com nossas emoções, e a maneira como as usamos, que define quem somos.
As palavras dele a confortaram, porém havia algo indefinível no tom da voz profunda. Procurando se convencer de que estava imaginando coisas, porque sentia-se envergonhada, mudou de assunto.
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— Vá cuidar de seus deveres agora, antes que o povo de Donncoill pense que o trancafiei em meu quarto.
— Pois sinto-me mesmo tentado a ficar aqui indefinidamente. Confesso não estar animado para encarar as pessoas. Há uma quietude perturbadora no castelo, desde o enforcamento.
— Claro que sim. Poucos apreciam espetáculos tão lúgubres. Acredite-me, todos estão abatidos porque um morador de Donncoill cometeu um crime horrendo, traindo o próprio clã.
Percebendo a sabedoria do argumento, Balfour assentiu. Ao sair do quarto, sentia-se um pouco mais confiante ante a perspectiva de enfrentar sua gente. Só desejava que também fosse possível recuperar a confiança que, desde o primeiro momento, depositara em Maldie.
Só de imaginá-la capaz de traí-lo, experimentava uma dor terrível e isto o irritava. Como um adolescente ingênuo, sucumbira ao fascínio da bela herborista. Bastava um sorriso para correr ao seu encontro. Embaraçava-o não ter controle sobre si. Temia que outros o notassem. Contudo, uma paixão tão poderosa, tão doce, justificava qualquer possível embaraço. Era tarde demais para conter-se, para fechar o coração e abrir os olhos. Apesar dos sentimentos que o subjugavam, estava na hora de enfrentar a verdade, por mais dura que fosse. Maldie era uma mulher de muitos segredos. Cabia-lhe, como chefe do clã, reconhecer o perigo e agir. Se ela se revelasse uma espiã de Beaton, Donncoill pagaria um preço alto pela irresponsabilidade de seu senhor.
James parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo e Maldie o amaldiçoou baixinho enquanto corria para os aposentos de Nigel. Nos últimos dois dias, desde a morte de Grizel, pouco vira Balfour, exceto à noite quando dormiam juntos. Mas James não saía de seu caminho.
O mestre de armas dava a impressão de vigiá-la o tempo inteiro. Por mais que tentasse se convencer de que ele não sabia de nada, de que jamais poderia suspeitar da verdadeira natureza de seus segredos, estava com medo. Cada vez que se encontravam, tinha a sensação de ser acusada, silenciosamente, de espiã e traidora. Embora se esforçasse para acreditar que tudo não passava de fruto de sua imaginação desvairada, os temores cresciam.
— Você tem uma expressão preocupada — comentou Nigel, sentando-se na cama.
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— Não, é apenas cansaço. — Maldie obrigou-se a sorrir ao passar um braço ao redor da cintura do cavaleiro para ajudá-lo a se levantar. — Há muito a fazer no castelo agora que Grizel se foi. Apesar de faltar-lhe competência como herborista, ela atendia aos doentes, permitindo-me cuidar de você. Agora todos me procuram.
— Não há ninguém capaz de ajudá-la?
— Ainda não. Existe uma mulher que vem demonstrando interesse pelo assunto. Com certeza poderá se tornar a próxima herborista de Donncoill, com algum treinamento.
Nigel estremeceu a rigidez da perna causando-lhe dor ao caminhar.
— Não são necessários anos para desenvolver habilidades na arte da cura?
— Sim. Mas, num período relativamente curto, pode-se aprender o básico para tratar pequenos problemas. Grizel o fazia, embora não gostasse, nem quisesse desempenhar a função. Essa mulher possui o talento e a bondade que faltavam a Grizel. Vocês terão que achar alguém com mais tempo livre do que eu para acabar de treiná-la. Pois, nunca paramos de aprender. Há sempre algo novo, a saber, sobre este ofício.
— Quando você planeja nos deixar?
— Quando você estiver bem — ela retrucou vaga.
— E para onde irá? — Nigel tropeçou e teria caído se as mãos firmes de Maldie não o sustentassem.
— Vou procurar meus parentes.
— Suas respostas pouco esclarecem.
—Não há muito mais a dizer. Partirei quando você estiver plenamente recuperado porque meu trabalho aqui terá chegado ao fim. Então continuarei a procurar meus parentes. — Maldie o reconduziu à cama. — Creio que basta por hora. Você já se exercitou o suficiente.
— Mas só demos algumas voltas pelo quarto — ele protestou, usando a ponta do lençol para secar o suor do rosto pálido.
— Sim, pela quarta vez hoje. Ontem mesmo você só se exercitou três vezes. Suas pernas já começaram a tremer em virtude da exaustão dos músculos. — Maldie serviu-o de um copo de cidra. — Sinal de que talvez seja cedo demais para caminhar frequentemente. Iremos com mais vagar. Não vale a pena aumentar a carga de exercício se você acaba enfraquecido. Estaríamos destruindo o progresso conquistado.
— De acordo — Nigel retrucou sem hesitar, fítando-a com redobrada atenção. — Que tal se você me contasse agora o verdadeiro motivo de sua preocupação?
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— Já lhe contei — Desconfortável Maldie desviou o olhar.
— Não. Você me falou que os moradores de Donncoill a têm mantido ocupada cuidando de suas feridas e dando-lhe poções para suas muitas mazelas. Sei que é verdade, mas esta não é a razão de sua preocupação. É Balfour quem está lhe causando problemas?
Durante breves segundos Maldie permaneceu em silêncio, relutando sobre o que responder.
— Talvez a vaidade tenha me cegado, mas nunca pensei que você gostaria de ouvir sobre mim e Balfour.
— A vaidade não a cegou. Jamais discutiremos os detalhes deste assunto, embora eu creia que no castelo não há ninguém que não imagine como me sinto. No entanto, saber que você e meu irmão não estão felizes talvez me proporcione alguma satisfação. —Abandonando o tom brincalhão, o cavaleiro continuou: — Preocupa-me você estar sozinha aqui. Quase não tem com quem conversar, além de Balfour. Durante muitos meses, você não terá tempo, nem oportunidade, de conquistar novos amigos. Não até trazermos Eric para casa e matarmos Beaton. Todos estamos consumidos pela urgência de derrotar Beaton e resgatar Eric. E você vê-se obrigada a passar várias horas do dia cuidando de mim.
— Não me importo. Curar doentes é, em geral, um processo vagaroso, que exige dedicação e paciência. É meu dever como herborista ajudá-lo.
— Que lisonjeiro! — ele devolveu, divertindo-se ao vê-la corar. — Ouça, se você sentir necessidade de conversar, de contar coisas que preferiria não dizer ao meu irmão, ou de apenas reclamar, estou ao seu dispor. Depois de toda a sua dedicação a mim, o mínimo que posso fazer em retribuição é oferecer-lhe um ombro amigo. Serei aquele que ouvirá suas palavras sem julgá-la. Também não repetirei o que ouvir, exceto com sua licença.
Uma oferta tentadora. Maldie ansiava ter alguém com quem conversar livremente e entristecia-a não poder expor tudo o que se passava em seu íntimo a Balfour. Tampouco se abriria com Nigel.
Havia certas coisas que, pelo menos por enquanto, não poderia contar a ninguém. Se porventura existisse uma pequenina chance de vir a ter um futuro junto de Balfour, este futuro ficaria seriamente ameaçado caso Balfour descobrisse que, em vez de o escolher como confidente, ela dera preferência a Nigel.
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Não colocaria Nigel naquela posição desconfortável, obrigando-o a escutar suas lamúrias, ou suas inseguranças em relação ao senhor de Donncoill.
— Você é muito gentil, sir, porém será melhor para todos se eu recusar seu generoso oferecimento. Se existem coisas que não posso discutir com Balfour, meu amante, então não creio que deva recorrer ao irmão. Se Balfour descobrisse que contei a você aquilo que não lhe confidenciei, receio que ficaria magoado, e com o orgulho ferido. Você acabaria ocupando uma posição incomoda entre nós dois, asseguro-lhe. Talvez você até se visse forçado a esconder meus segredos de seu irmão e chefe do clã. Isto jamais deverá acontecer, em especial agora, quando vocês se preparam para enfrentar um inimigo mortal.
— Detesto vê-la preocupada. Depois de tudo o que tem feito, você merece paz e tranquilidade.
— Demorará muito até eu poder desfrutar de um pouco de paz. Agora descanse. Mandarei Jennie vir lhe fazer companhia.
Conquistar paz de espírito, viver com tranquilidade, um sonho que Maldie ansiava realizar. Precisava escapar dali, pensou, saindo depressa do quarto. Se sucumbisse à simpatia estampada nos olhos compreensivos do cavaleiro, corria o risco de aumentar ainda mais suas dificuldades. Embora não duvidasse de que Nigel realmente desejava ajudá-la, não havia nada que pudesse fazer. E não teria mais um minuto de sossego se o sobrecarregasse com problemas que não lhe pertenciam.
Mal fechara a porta, Maldie notou James numa das extremidades do corredor. Seu primeiro impulso foi retornar ao quarto de Nigel e reclamar daquilo que acreditava ser uma perseguição velada. Pensando melhor, decidiu engolir o orgulho e seguir em frente. Por que jogar Nigel contra o homem a quem ele, e Balfour, consideravam um segundo pai? De fato, James tinha mesmo motivos para olhá-la com desconfiança e vigiá-la de perto. Apesar de entender as razões por trás do comportamento do mestre de armas, irritava-a sentir-se constantemente observada.
Em vez de rumar para a cozinha, como pretendera, Maldie tomou o caminho do pátio interno, o único lugar onde James achava desnecessário espiá-la devido ao grande movimento de pessoas.
Sem pressa, vagou pelo local, apreciando a rotina de Donncoill. Os estábulos bem cuidados sempre lhe chamavam a atenção, assim como a habilidade dos vários artesãos em suas tendas, ocupados com seu ofício. Contudo, mesmo distraindo-se com o que a cercava, seu coração continuava pesado.
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— Por que a expressão apreensiva? — indagou Balfour, surgindo ao seu lado de repente. — Assustei você?
Maldie inspirou fundo, tentando acalmar-se. Um dos motivos pelos quais o aparecimento súbito de Balfour costumava perturbá-la tanto devia-se à sua consciência pesada por não estar sendo absolutamente sincera. Bem no fundo, temia trair-se, dizer ou fazer alguma coisa que denunciasse seus planos e sua verdadeira identidade. Compreendia a necessidade de controlar suas reações, ou acabaria provocando mais suspeitas. Com certeza James estava aconselhando Balfour a não confiar nela em hipótese alguma. Seria melhor evitar dar ao mestre de armas mais razões para julgá-la indigna de crédito.
— Você deveria fazer barulho quando se aproximasse das pessoas, milorde.
— Há situações em que fazer barulho poderia significar minha morte.
— Compreendo, mas não sou sua inimiga.
— Não, claro que não.
Reparando no olhar penetrante da jovem herborista, Balfour se amaldiçoou por não estar sendo capaz de disfarçar as crescentes dúvidas. Às vezes quase chegava a querer que Maldie, com palavras ou atos, acabasse se revelando uma traidora porque assim sentiria-se absolvido da culpa terrível que o consumia. A incerteza o estava martirizando. As suspeitas cortavam-lhe a alma. Angustiava-o imaginá-la a par de suas desconfianças. Se Maldie fosse inocente, estava ferindo-a de um modo cruel. Mas, se trabalhasse para Beaton, seduzira-o com o único objetivo de minar suas forças e subjugá-lo.
Amava-a e isto o aterrorizava. Ansiava confessar seus sentimentos, mas temia que ela se aproveitasse de sua fraqueza. Rezava para que Maldie não estivesse do lado de Beaton, então pedia aos céus para que se confessasse uma espiã. Queria-a longe de Donncoill e ficava apavorado com a possibilidade de vê-la partir. Estava tão dividido pelas emoções conflitantes que receava enlouquecer. O confronto final com Beaton precisava acontecer o quanto antes, ou perderia a sanidade e a capacidade de liderar seus homens.
— Como vão os planos para a batalha? — ela indagou, ao atravessarem os portões do jardim. — Quase não ouço comentários a respeito, embora suponha que estejam adiantados.
— Você tem andado ocupada com Nigel, esforçando-se para ajudá-lo a se recuperar totalmente.
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— Às vezes me pergunto por que você não me questiona mais sobre Dubhlinn. Por acaso já levantou todas as informações necessárias?
Lorde Murray encostou-se numa das paredes da torre inacabada.
— Sim, creio ter conseguido informações importantes por seu intermédio. Porém, existem outras maneiras de descobrir o que queremos sem arrastá-la para o meio do planejamento de uma batalha.
— Não me importo — Tensa Maldie lutou para não demonstrar a mágoa e o medo. — Eu gostaria de ajudá-lo tanto quanto puder.
— Você me ajuda cuidando de Nigel. Não se aflija querida. Temos olhos e ouvidos a nosso serviço.
— Então você obteve notícias do homem infiltrado em Dubhlinn?
— Venha cá. — Balfour tomou-a nos braços. — Quase não temos ficado a sós nos últimos dois dias. Você quer mesmo desperdiçar nosso tempo juntos falando de batalhas e espiões?
Por um instante Maldie imaginou o que aconteceria se respondesse "sim". Afinal, lorde Murray tentava evitar qualquer assunto referente à Beaton, à batalha próxima e ao resgate de Eric. Suas respostas evasivas deixavam claro que não era apenas James que a considerava indigna de confiança.
O bom senso a mandava afastar-se, fugir para bem longe. Seria loucura amar quem a considerava uma inimiga. Cada carícia que trocassem iria feri-la na alma como ferro em brasa. Entretanto, bastou aconchegar-se ao peito forte para o orgulho cair por terra. Compreendia a angústia de Balfour. Tão dividido quanto ela própria, o nobre cavaleiro odiava-se por alimentar suspeitas. Porém, apesar de inseguro, continuava desejando-a. James ainda não fora capaz de contaminá-lo inteiramente com suas idéias de traição. Ela e Balfour não somente se assemelhavam na paixão ardente que nutriam um pelo outro, como também em suas inquietações. Impossível adivinhar se Balfour acabaria cedendo à paixão, ou às dúvidas. Maldie decidiu correr o risco e entregar-se nas mãos do destino. Provavelmente não tardariam a ser separados, ou pelas desconfianças de James, ou pela verdade. Preferia não perder mais um segundo.
—Não teremos muita privacidade aqui — falou baixinho, estremecendo ao ser beijada no pescoço.
— É o lugar perfeito para assistirmos ao pôr-do-sol — sossegou-a Balfour, começando a despi-la.
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— É isto que você está planejando fazer? — Num acesso súbito de modéstia ao ficar nua, murmurou ansiosa:
— Alguém pode nos ver.
— Não. Este é o local favorito dos amantes. Quando nos viram vir para cá, os olhares alheios se desviaram.
— Não me agrada todos saberem o que estamos fazendo aqui.
— Todos sabem que somos amantes. Existem poucos segredos no castelo. Calma, querida. Ninguém virá nos espiar. A privacidade costuma ser respeitada em Donncoill.
Uma coisa difícil de acreditar. Maldie não teve chance de discutir porque, quando Balfour a beijou na boca, tudo o mais foi esquecido. Já não lhe importava que os vissem, ou o que pensassem a seu respeito. A voracidade com que se apossavam do corpo um do outro tinha algo de desesperado, a urgência nascida do medo de se perderem num futuro próximo.
Só quando jaziam abraçados, exaustos depois dos momentos de intensa paixão, é que Maldie se permitiu indagar se o destino não a estaria enganando. Esse desejo insano, insaciável, parecia errado, especialmente porque nenhum dos dois falava de amor, de casamento, ou da construção de uma família.
— Você não deveria se apressar a condenar-se. — Envolvendo-a num olhar terno, Balfour beijou-a de leve na testa.
— Como você adivinhou o que eu estava pensando?
— Sua expressão solene, quase irritada, quando o calor da paixão a abandona, denuncia o que lhe passa pela cabeça.
Inquieta diante da facilidade com que Balfour lia seus pensamentos, Maldie sentou-se e apanhou a túnica, preparando-se para vesti-la. Mas mãos firmes a impediram de completar o gesto. Ela não teve dúvidas sobre o que captara a atenção do nobre. O sinal de nascença no seu ombro direito, em formato de coração, jamais ficara exposto porque sempre haviam feito amor em locais de iluminação escassa. Agora, a marca de Beaton fora revelada. Sua mãe nunca a deixara esquecer de que aquele era o sinal inegável de sua bastardia, o sinal inegável de que fora contaminada pelo sangue maldito de Beaton.
— Você tem um coração desenhado nas costas.
Desvencilhando-se das mãos fortes, ela vestiu a túnica.
— Desculpe-me. Tentei poupá-lo dessa visão horrível.
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— Doce, doce, Maldie. Você tem umas idéias esquisitas. Não é, em absoluto, uma visão desagradável. Pelo contrário. — Percebendo que suas palavras não conseguiam convencê-la, Balfour resolveu se vestir também.
— O modo como você reparou no sinal, seu tom de voz esquisito, me levaram a concluir que a visão o chocou.
— De certa forma, sim. Eu julgava conhecer cada centímetro de seu corpo. É óbvio que fui relapso nas minhas atenções. Precisamos de mais velas no quarto. — Ele riu quando Maldie levantou-se e colocou o vestido às pressas.
— Você está se esforçando para me embaraçar. — De fato, provocava-lhe imenso alívio Balfour não haver reconhecido, pelo menos de imediato, o sinal de nascença que apenas um descendente direto de Beaton podia ostentar. Contudo, não baixaria a guarda, alimentando falsas esperanças.
— Não é difícil fazê-la corar.
— Cuidado que vou lhe aplicar um castigo.
— Estou morrendo de medo. — Ele riu e massageou o braço depois de um beliscão. — Acho que ficarei com uma cicatriz pelo resto de meus dias.
— Você parece determinado a me provocar, não? Abraçados, os dois rumaram para o castelo.
— Sim. A propósito, estou faminto. Você esgota minhas energias, querida. Deixa-me sempre com um apetite de leão.
Maldie tentou, em vão, não enrubescer. O evidente bom humor de lorde Murray a consolava. Mesmo que fosse somente por um breve período, todas as suspeitas e dúvidas do cavaleiro davam a impressão de haver desaparecido.
— É estranho — ele continuou num tom mais sério —, mas tenho a impressão de já ter visto um sinal igual ao seu antes. Mesmo formato e localização.
O susto quase fez Maldie tropeçar. Não, não era possível que Balfour houvesse visto a marca no ombro de Beaton, pensou, procurando desesperadamente se acalmar. Sua mãe lhe dissera que Beaton mantinha a região coberta quando em público, porque acreditava ser aquela mancha na pele uma herança do diabo.
— Nunca ouvi falar de alguém que possuísse um sinal igual ao meu — ela desconversou, odiando-se por não ser capaz de elaborar um argumento mais consistente. — Por acaso você conheceu minha mãe?
— Não, claro que não. Nunca conheci nenhum Kirkcaldy. Entretanto, sinto já ter visto essa marca antes. Mas não se preocupe. Acabarei me lembrando de onde.
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Pois Maldie esperava sinceramente que não.
— Você pode ter confundido susto com reconhecimento — ela insistiu ao entrarem no salão, lutando para dissuadi-lo da idéia.
— E possível. Porém tenho quase certeza absoluta de já ter visto esse sinal no ombro de outra pessoa.
Ao sentar-se à mesa, ao lado de Balfour, uma conclusão apavorante começou a tomar forma. Por mais que tentasse negar o óbvio, por mais que tentasse se agarrar a outras possibilidades, seu coração intuíra a verdade. A única outra pessoa, além de Beaton, em cujo ombro Balfour poderia ter visto o sinal em formato de coração era o jovem Eric.
Acreditava-se que Eric fosse filho bastardo do velho lorde Murray e da esposa adúltera de Beaton. Entretanto, Beaton estava convencido de que poderia fazer Eric passar por seu filho legítimo, explicando que só o abandonara porque fora tomado por um violento acesso de ciúme. E se essa fosse mesmo à verdade? Sua mãe sempre enfatizara que Beaton copulava frequentemente com suas mulheres na ânsia de engravidá-las e gerar um filho homem. Até descobrir que a esposa o traía com lorde Murray, sem dúvida o infame a possuíra vezes sem conta. Eric podia ser, de fato, o legítimo herdeiro de Beaton. E pensar que o canalha quase destruíra aquilo que mais desejara.
Se estivesse certa, e não duvidava de que sim, muitas pessoas acabariam saindo feridas quando aquela história viesse à tona. Em especial Eric. Seria devastador para um menino inocente descobrir não ser um Murray, e sim membro do clã inimigo. O rapazinho ficaria tão horrorizado quanto ela própria ao se saber filho de um infame e sofreria ainda mais, porque se julgara pertencer a uma família honrada e amorosa. Diferentemente dela que nunca tivera ninguém, exceto uma mãe omissa, Eric perderia tudo o que conhecia e amava.
Balfour também ficaria profundamente magoado. Se revelasse suas suspeitas sobre Eric naquele momento, ele exigiria provas. Só poderia provar-lhe algo se confessasse a verdade sobre sua própria origem. E ainda não estava pronta para fazê-lo.
Não, não queria ser a pessoa a informar Balfour sobre a verdadeira ascendência de Eric. Tampouco acreditava que lhe coubesse a iniciativa. A verdade apenas causaria dor a muita gente, exceto a Beaton. Nunca vira o menino, ou o sinal que o marcava como filho do inimigo. Portanto, melhor calar-se até ter oportunidade de confirmar suas suspeitas.
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Enquanto colocava comida no prato, Maldie rezou para não ser forçada a expor o que lhe passava pela cabeça. E também para que Balfour não adivinhasse esse seu segredo.
Capítulo VI
Malcolm está morto — anunciou James, entrando no salão principal. Balfour quase engasgou com o pedaço de pão que estava comendo.
— Morto?
— Sim. O pobre-coitado não poderá nos informar nada sobre Beaton, ou Dubhlinn. Por todos os deuses, ainda que ele houvesse sobrevivido ao espancamento de que foi vítima, não nos contaria nada porque Beaton mandou que lhe cortassem a língua.
— Tem certeza? — Embora soubesse que James nunca repetiria meros boatos, precisava de provas concretas.
— Os malditos dependuraram o corpo de Malcolm numa árvore perto da aldeia. — O mestre de armas sentou-se e serviu-se de vinho, procurando acalmar-se com um longo gole. — Apesar de quase desfigurado devido à tortura, não há dúvidas de que seja Malcolm. E está claro por que o corpo foi deixado onde pudéssemos achá-lo.
— Uma provocação macabra — murmurou Balfour, pensativo.
— Assim como a forma brutal como ele foi morto. Os canalhas não somente queriam mostrar ter identificado nosso espião, como infundir pavor em nossos homens, para dissuadi-los da idéia de se infiltrarem em Dubhlinn outra vez. Quando preparamos o corpo de Malcolm para o enterro, notamos os sinais inequívocos de tortura.
— Alguma notícia de nosso outro homem, o Douglas?
— Não. Creio que continua incógnito, ou o teríamos descoberto balançando ao vento como Malcolm.
— Ao mandar aqueles dois para Dubhlinn, eu sabia da gravidade dos riscos que acabariam correndo, mas nunca me passou pela cabeça que poderiam vir a sofrer mortes tão cruéis, tão selvagens.
— Você não poderia imaginar tal crueldade porque jamais lidaria desse modo com inimigo algum.
— Devo mandar Douglas voltar para casa?
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— Não, sir. Se Beaton não o identificou até agora, você o estaria expondo ao perigo ao tentar estabelecer um contato. Douglas é calmo e corajoso, além de inteligente. Se concluir que corre o risco de acabar como Malcolm, fugirá de Dubhlinn. Douglas tem bom senso suficiente para saber que não seria um ato de covardia, e sim a única oportunidade de nos passar as informações que conseguiu coletar.
— Ótimo. Não quero a morte de outro homem bom me pesando na consciência.
— A morte de Malcolm não foi culpa sua. Ele tinha perfeito conhecimento da situação em que se metera e você o avisou muitas vezes do que aconteceria se fosse apanhado. Nenhum de nós poderia imaginar que o infeliz morreria torturado. Você não pode se responsabilizar por cada morte. Não se culpe pelos erros que não são seus. Você nunca causou a morte de ninguém seja por raiva, arrogância, orgulho, ou simples descuido. Estamos em guerra com Beaton e a vida de Eric está em jogo. Não deveria surpreendê-lo que homens morressem. E continuarão a morrer, até Beaton ser derrotado.
— Devemos parar de chorar em cima do leite derramado e agir — disse Balfour, repetindo uma das máximas preferidas do velho mestre de armas.
James sorriu de leve.
— Sim. Palavras sábias às quais você deveria dar mais atenção. O importante agora é descobrirmos como Beaton identificou nosso homem.
— Talvez Malcolm tenha cometido um erro, se exposto de alguma maneira.
— Talvez. Porém acho difícil acreditar. Malcolm era um rapaz esperto, inteligente o bastante para perceber que errou e fugir antes de ser pego. Ao longo dos anos, sempre tivemos um ou outro espião infiltrado em Dubhlinn, os quais jamais foram desmascarados. Existe uma outra possibilidade que você deve considerar milorde.
— Alguém de Donncoill revelou a verdadeira identidade de Malcolm a Beaton. — Apesar de não estar gostando nada do rumo da conversa, Balfour sabia que precisava examinar toda e qualquer possibilidade para proteger seu clã. — Poderia ter sido Grizel.
— Grizel está morta há duas semanas. E matamos os homens com quem ela ia se encontrar na floresta.
— Talvez ela tenha delatado Malcolm antes disso.
— É possível, mas pouco provável. Beaton não esperaria tanto para torturar um dos nossos. E duvido de que Malcolm sobreviveria a quinze dias de tortura. Acredite-me, Beaton soube quem era Malcolm depois da morte de Grizel.
— Então temos outro traidor em Donncoill?
— Ou um espião de Beaton.
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Balfour sabia de quem James suspeitava. As desconfianças do mestre de armas em relação à Maldie eram tão intensas, que começavam a contaminá-lo. Achava difícil crer que sua jovem amante fosse capaz de mandar um inocente para a morte. A competência de Maldie como herborista já se tornara legendária em Donncoill. Paciência, gentileza, habilidade na cura das doenças eram algumas de suas qualidades decantadas em prosa e verso por todos os habitantes do castelo. Assassinato frio e violento como fora a morte de Malcolm a horrorizaria. Irritava-o pensar que pudesse ter sido enganado por uma mulher a quem continuava a desejar.
— Sei a quem você está se referindo — falou afinal, tenso.
— E você também alimenta essas desconfianças, embora lute para afastá-las de sua mente. Malcolm pode ter cometido alguma tolice que acabou por denunciá-lo, ou então ter sido pego quando tentava fugir. Mas, seria um grave erro ignorarmos a possibilidade de alguém ter avisado Beaton que um dos nossos se infiltrara em Dubhlinn.
— Sei disso — Balfour devolveu ríspido. — Nunca mencionei os nomes de Malcolm, ou Douglas. Disse apenas que tínhamos um homem dentro do castelo inimigo.
— Beaton não precisaria de um nome para descobrir nosso espião. Você contou a Maldie que possuíamos dois homens em Dubhlinn?
— Não. E antes de fazer acusações infundadas, saiba que minha paixão desvairada por aquela mulher não me impede de enxergar a realidade. Parte de mim se recusa a acreditar que eu desejaria uma mulher perversa, capaz de enviar um inocente para uma morte tão horrenda e dolorosa. Maldie é uma herborista. Basta observá-la cuidar dos doentes e feridos para entender quanto difícil seria acreditá-la pactuando com um assassino.
— Estou pronto a concordar que Maldie não levaria um inocente para a morte de livre e espontânea vontade. Beaton, de alguma maneira, pode estar obrigando-a a nos espionar. Porém não importa o motivo por trás de suas atitudes. Precisamos impedi-la de continuar nos prejudicando.
Pensativo, Balfour tamborilou os dedos sobre a mesa de madeira maciça. James tinha razão. Ainda que a probabilidade de Maldie estar enviando informações a Beaton fosse mínima, deveriam colocar um paradeiro nesta situação o quanto antes. Deveriam privá-la de qualquer oportunidade de ver alguma coisa, ouvir alguma coisa, ou enviar
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uma mensagem ao chefe do clã inimigo. Seria obrigado a confiná-la, a mantê-la sob constante vigilância até desvendar a verdade.
Se Maldie fosse culpada, consideraria as restrições à sua liberdade uma pena leve. Se inocente, sentiria-se tão insultada, que talvez nunca o perdoasse. Angustiado, Balfour contemplou suas poucas e terríveis alternativas. Se Maldie fosse culpada e a deixasse livre para agir como quisesse, estaria arriscando a vitória sobre Beaton e a vida de muitos de seu clã.
Se a tratasse como espiã, se a vigiasse e enclausurasse, iria perdê-la.
— Tenho a sensação de que nenhuma de minhas escolhas será acertada.
— Compreendo — concordou James, os olhos cheios de simpatia. — Mas analise a situação desta forma. Qualquer decisão sua o levará a perder Maldie. Se ela for espiã, acabará fugindo, ou você será obrigado a mandar enforcá-la. Porém, muitos dos nossos terão morrido desnecessariamente, lutando uma batalha impossível de ser ganha. Se Maldie for inocente ela o deixará, consumida pela mágoa e raiva. Receio que confiando nela você perderá mais.
— De fato. — Balfour terminou o vinho e levantou-se abruptamente. — É melhor resolver os assuntos desagradáveis sem demora. Vou confrontá-la.
— Talvez ela confesse tudo e até lhe conte o motivo pelo qual viu-se obrigada a trabalhar para Beaton.
— Não creio que a pequena Maldie estará disposta a revelar seus segredos.
Com o coração pesado, Balfour subiu a escadaria, os passos lentos como os de um condenado.
A menos de quarenta e oito horas a tivera nos braços e os dois haviam se amado loucamente. Após o clímax, Maldie caíra num silêncio inexplicável e começara a se perguntar se ela não estaria lhe escondendo algo. Seria a culpa por ter mandado um inocente para a morte? Oh, Deus, quanta agonia!
Ao entrar no quarto, seu olhar faminto pousou sobre Maldie que, sentada junto à lareira, penteava os cabelos úmidos do banho. Jamais conhecera alguém tão bela. Desejava-a e odiava-se por tamanha fraqueza. Se Maldie realmente estivesse passando informações a Beaton, seu sofrimento seria brutal. Duvidava de que conseguiria confiar numa mulher outra vez.
Vendo Balfour encostado à porta, os braços cruzados sobre o peito, uma expressão fria no olhar, Maldie foi dominada por um temor crescente. Era como se não conhecesse o homem parado à sua frente.
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— Alguma coisa errada? — indagou, esforçando-se para controlar o tremor da voz.
— Malcolm, nosso contato em Dubhlinn, foi encontrado, enforcado numa árvore, nos arredores da aldeia.
O choque de Maldie parecia real, porém Balfour não tinha mais coragem de confiar no que via, ouvia, ou sentia.
— Oh, sinto muito. — Levantando-se, ela deu um passo adiante.
— Por quê? Você não esperava que Beaton o matasse? Confusa, Maldie estancou o corpo inteiro rígido.
— Por que eu deveria saber o que Beaton faria com o homem? — Teria Balfour descoberto sua verdadeira identidade? Isto explicaria a raiva estampada no rosto viril.
— Acho um pouco estranho Beaton nunca haver identificado um de nossos espiões nestes últimos treze longos anos e então, de repente, descobre o pobre Malcolm. — A súbita palidez de Maldie o fez querer voltar atrás e confortá-la.
— Você acha que eu estou ajudando Beaton? Grizel não poderia ter contado a ele?
— Grizel foi enforcada há duas semanas e os malditos com quem ia se encontrar na floresta foram mortos quando os cercamos. Não sobrou ninguém para passar a informação a Beaton. Se Grizel houvesse delatado Malcolm, ele teria sido enforcado vários dias atrás. Não! Outra pessoa contou a Beaton sobre Malcolm.
— E você crê que essa outra pessoa seja eu — Maldie falou num fio de voz, as lágrimas contidas quase a sufocando. Jamais fora tão magoada.
— Você é capaz de me fazer acreditar no contrário? As palavras de Balfour a golpearam fundo. Desde sua chegada a Donncoill, estivera esperando este momento, quando sua verdadeira identidade acabaria revelada. Afinal, como poderiam confiar nela, quando a soubessem filha bastarda de Beaton? Balfour a estava acusando de traição sem conhecer sua ascendência.
Pelo visto a traição de Grizel não fora suficiente para fazê-lo entender que, às vezes, gente de seu próprio clã poderia traí-lo. Não contara a lorde Murray, e aos outros, tudo o que desejavam saber a seu respeito, mas isto não era motivo para que a julgassem capaz de mandar um inocente para a morte.
— Minha palavra não basta? — questionou-o, a mágoa transformando-se rapidamente em raiva. Não se submeteria a essa afronta.
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— Não posso permitir que sim. — Suspirando cansado, Balfour balançou a cabeça. — Você guarda muitos segredos e, mesmo assim, espera de todos em Donncoill uma confiança cega. Nós não sabemos quem você é de onde veio, ou o que estava fazendo na estrada. E quer nos convencer de que é nossa amiga.
— Tenho sido mais do que uma amiga para você. — Notando-o enrubescer, Maldie experimentou algum alívio. Pelo menos Balfour ainda alimentava dúvidas sobre sua culpa.
— Você não percebe que até mesmo nosso envolvimento pode fazê-la parecer suspeita?
— Paixão não é crime.
— Por favor, apenas me diga alguma coisa, qualquer coisa, sobre você. Alguma coisa que me permita não duvidar de sua inocência.
— Por que eu deveria?
— E por que não?
— Quem eu sou não é da sua conta, assim como não importa de onde eu venho, ou para onde vou. Você quer provas de que não sou uma espiã? Pois onde estão as provas de que o sou?
A teimosia de Maldie enfureceu-o. Não estava lhe pedindo o impossível, o inatingível. Desejava apenas alguma pequena informação sobre ela, o tipo de informação que qualquer pessoa oferece sem hesitar. Em Donncoill, sabia-se apenas que ela era uma herborista talentosa, a mãe morrera e o pai a abandonara sem reconhecê-la como filha.
— Você não consegue entender por que estou agindo assim? Estamos em guerra. Meu irmão foi sequestrado por nosso pior inimigo. Não posso simplesmente confiar nas pessoas porque elas se dizem inocentes. Preciso de mais, ou serei obrigado a tratá-la como uma possível inimiga.
— Então sugiro que pare de me acusar de crimes que não cometi e comece a procurar o verdadeiro traidor.
— Como quiser. Você ficará confinada aos seus aposentos e só sairá daqui para cuidar de Nigel.
— Tem certeza de que quer uma espiã de Beaton cuidando de seu querido irmão?
— Sim. Você teve inúmeras oportunidades de causar mal a Nigel, e não o fez. E meu irmão talvez ainda esteja enfraquecido demais para empunhar uma espada, mas
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com certeza é capaz de se defender de uma mulher pequenina e delicada. Talvez algum tempo sozinha a ajude a perceber que esta não é a hora de se agarrar ao orgulho. Com certeza algumas simples respostas não são um preço alto a pagar pela liberdade.
Balfour retirou-se e trancou a porta pelo lado de fora. O confronto o deixara triste, irritado e confuso. No início, Maldie mostrara-se magoada ao extremo. Depois, ficara furiosa em razão da ofensa da qual se julgava vítima. Comportamento típico dos inocentes injustamente acusados. No entanto, ela nada dissera em defesa própria, apenas negara a culpa.
— Está feito? — perguntou James.
— Sim. — Lorde Murray cumprimentou o soldado destacado para guardar a porta de Maldie e tomou o rumo do salão, acompanhado do mestre de armas.
— Imagino que ela não tenha confessado e implorado misericórdia.
— Oh, não. Maldie não agiria assim nem se fosse culpada.
— Você continua duvidando de que seja culpada?
— Não sei o que pensar. Ela reagiu à acusação como alguém inocente, mas talvez estivesse apenas representando um papel. Também não ofereceu nenhuma explicação, não tentou se defender. Somente afirmou ser inocente. Pedi-lhe alguns esclarecimentos, qualquer coisa que confirmasse sua inocência. Pois Maldie me mandou procurar as provas sozinho. Você está achando isso engraçado? — indagou, percebendo o sorriso do mestre de armas.
— Receio que sim. Na verdade, isto me leva a pensar que Maldie pode ser mesmo inocente. Ou então muito mais inteligente do que todos nós juntos.
— Acabei de acusar minha amante de um crime horrendo, o de mandar um homem para a morte, e agora você me fala que ela pode ser inocente?
— Sempre pensei que ela poderia ser inocente porque nunca encontramos provas de sua culpa. Você jamais teria tomado uma iniciativa se eu lhe confessasse meus pensamentos. Não sou tão velho a ponto de não me deixar abalar por um belo par de olhos verdes, nem tão ingênuo a ponto de permitir que a beleza feminina me cegue. Um de nós precisava endurecer o coração e analisar todas as possibilidades.
Praguejando, Balfour se espreguiçou numa tentativa vã de se livrar da tensão.
— Maldie nunca me perdoará.
— Se ela não gostar de você o suficiente para entender que um chefe de clã não pode fugir aos seus deveres, então você não teria conseguido prendê-la ao seu lado por
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muito tempo. É estranho ela não ter lhe contado nada sobre si. Receio imaginar a natureza dos segredos que aquela moça está querendo esconder.
— Sim. Maldie guarda muitos segredos e não podemos mais deixá-la perambular livremente na esperança de não sermos prejudicados. Sei que tomei a decisão certa. Porém, fazer a coisa certa não diminui minha angústia.
Durante intermináveis minutos Maldie manteve o olhar fixo na porta trancada, incapaz de mover-se. Zonza, atirou-se na cama e fitou o teto. Tantas emoções a abalavam que mal conseguia respirar, as lágrimas contidas sufocando-a. Maldizendo Balfour, fechou os olhos e cedeu ao pranto, o corpo inteiro sacudido por terríveis soluços.
Ao que lhe pareceu uma eternidade depois, secou as lágrimas. Estava exausta de tanto chorar, mas, pelo menos, voltara a raciocinar com clareza, embora desejasse apenas esquecer tudo o que acabara de acontecer.
Ter sido acusada de espionagem não fora o que mais a magoara. Estivera esperando por isso. Balfour a culpara mesmo desconhecendo sua verdadeira origem. Embora lorde Murray não possuísse provas de que ela fosse algo mais do que se dizia uma simples órfã em busca dos parentes, ele a acreditara capaz de contribuir para a morte de um inocente. Que Balfour pudesse cogitar tal possibilidade fora um golpe duro.
De certa forma trágica, a situação chegava a ser engraçada. Se não estivesse tão ferida, poderia até rir da ironia de toda a história. Estava em Donncoill porque queria matar Beaton, porque queria ajudar Balfour a vencer a guerra. Entretanto, acabara prisioneira, acusada de ajudar o pior inimigo dos Murray! Errara de algum modo, tornara-se alvo de suspeitas, mas não sabia como. Balfour falara sobre os segredos que insistia em guardar. Será que todos os que cruzavam os portões de Donncoill tinham que declarar sua linhagem?
Agitada, Maldie levantou-se e serviu-se de vinho. Balfour não podia compreender por que ela hesitava em desvendar seu passado. Assim como ela não podia compreender por que o simples fato de guardar segredos a transformara em espiã de Beaton. Balfour e ela tinham visões díspares deste assunto. Afinal, ele se orgulhava da família, da herança paterna. Como entender que alguém preferia esquecer até que possuía uma família?
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Restava-lhe agora descobrir um modo de sair da encrenca em que se metera. Ainda precisava cumprir a promessa feita à mãe e não o conseguiria se permanecesse confinada em Donncoill. A porta do quarto fora trancada e, com certeza, um homem montava guarda do lado de fora.
Naturalmente existia a possibilidade de fornecer algumas respostas a Balfour sem, é claro, revelar o nome de seu pai. Mas se lorde Murray enviasse um mensageiro ao seu antigo lar para confirmar as informações, a verdade completa viria à tona. Sua mãe nunca fora reticente sobre o homem que a desgraçara. Maldie também não tinha dúvidas de que muitas pessoas da aldeia contariam mentiras a seu respeito com o único objetivo de fazê-la parecer desagradável, porque nunca se comportara como a mãe. Alguns criticavam sua atitude, acusando-a de se julgar superior.
Reconhecia que um orgulho tolo a impedia de abrir-se inteiramente e Balfour se irritava por não obter explicações. Não temia por sua vida, pois lorde Murray não era o tipo capaz de condenar alguém sem provas. Como fizera em relação à Grizel, ele esperaria até ter provas concretas antes de sentenciá-la. Como não existiam provas de sua culpa, estava segura.
Portanto, enxergava uma única solução para o problema. Fugir de Donncoill, libertar Eric e provar que nunca ajudara Beaton. Essa questão com Beaton tinha que ser solucionada. Mas, ao provar sua inocência, acabaria revelando toda a verdade sobre sua ascendência, uma verdade que afastaria Balfour para sempre. Por mais que lhe custasse, correria o risco. Se ele escolhesse odiá-la por ser filha de quem era, que assim fosse.
Porém, não ficaria de braços cruzados, permitindo que a acusassem de espiã, traidora e assassina.
Maldie riu amarga. Seu amante, o homem a quem amava com desespero, a julgava vil o bastante para auxiliar um canalha a assassinar um inocente com requintes de crueldade. Apesar da dor, conseguia entender por que ele fora forçado a confrontá-la.
Devia estar louca para justificar o comportamento de Balfour. Louca de amor e sofrimento.
Existia uma única solução para seu dilema. Fugir para Dubhlinn e resgatar Eric.
Antes de concretizar o plano, teria de superar as dificuldades imediatas. Prisioneira em seu quarto, só lhe fora dada permissão para cuidar de Nigel. Se escapasse de Donncoill, metade do clã iria em seu encalço. Em Dubhlinn, precisaria agir com cuidado, pois com certeza todos estariam atentos à chegada de estranhos. Por último, teria de libertar o menino e levá-lo, são e salvo, de volta a Donncoill.
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— O que poderia ser mais simples? — perguntou-se em voz alta, deitando-se outra vez.
Na verdade tratava-se de uma empreitada impossível e, se possuísse um pingo de bom senso, nem chegaria a cogitar a possibilidade de colocar a idéia em prática. Mas, empenhar-se no planejamento minucioso dessa aventura era muito melhor do que ficar sozinha em seu quarto, debulhando-se em lágrimas.
— O que você está tramando, jovem Kirkcaldy? — indagou Nigel, o corpo inteiro dolorido após o exercício diário.
Afastando-se da janela estreita, Maldie virou-se para fitá-lo. Nos últimos três dias, Nigel fora sua única companhia, exceção feita ao guarda que continuava a vigiar sua porta. Até então, nenhum dos dois falara sobre as coisas das quais ela estava sendo acusada, ou sobre o fato de que fora posta em cárcere privado. Simplesmente concentravam-se na execução dos exercícios físicos.
— Por que eu deveria estar tramando algo? — devolveu, servindo-o de um copo de cidra.
— Por que meu tolo irmão a transformou em prisioneira?
— Pensei que estivéssemos ignorando esses pequenos detalhes.
— Quando você não disse nada logo depois de Balfour ter feito tamanha tolice, concluí que preferia não tocar no assunto. Pois acho difícil ignorar tamanha ofensa.
Ela sorriu ante o ultraje do cavaleiro. Era bom ter alguém que acreditasse na sua inocência, mesmo que Nigel agisse movido pela gratidão. Afinal, salvara-lhe a vida. Talvez fosse capaz de convencê-lo a ajudá-la a fugir. Não, não lhe pediria auxílio. Cabia-lhe resolver seu problema sozinha.
— Pergunto-me se Balfour vai demorar muito para se dar conta de haver cometido um erro — Maldie falou muito calma.
— Você não me parece irritada. Será que não percebe o insulto de que foi vítima?
— Claramente. Confesso ser difícil não me deixar cegar pela raiva. Quando não estou querendo esganar seu irmão, compreendo que ele não tinha muita escolha.
— Sempre existe uma escolha.
— Talvez. Mas, às vezes, todas as escolhas são odiosas. Alguém contou a Beaton quem era Malcolm e o pobre homem acabou torturado e morto. Nunca antes um espião dos Murray foi identificado em Dubhlinn. Ou Beaton ficou muito inteligente, o
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que duvido, ou alguém denunciou Malcolm. Grizel está morta, portanto não pode levar a culpa. Quando Balfour analisa o que mudou na rotina de Donncoill o que ele vê? Minha chegada. É natural que as suspeitas recaiam sobre mim.
— Não! — Nigel a contradisse, categórico.
— Não julgue seu irmão com tanta rigidez. Como lorde de Donncoill, é responsável pela segurança de todos. O dever para com seu povo o obriga a tomar decisões duras e desagradáveis. Seja justo com Balfour, porque ele não acredita completamente nas acusações que me fez. Aliás, tive ampla oportunidade de me defender.
— E não se defendeu? Por que não?
— Porque fiquei furiosa. O orgulho ferido me subiu à cabeça. Decidi que minha palavra deveria bastar. Balfour me fez várias perguntas, pediu-me para lhe dar algumas informações e assim provar minha inocência. Respondi que se ele queria tanto levantar informações a meu respeito, que as fosse procurar por conta própria.
Nigel gargalhou com prazer. Então, muito sério, avisou-a:
— Esse orgulho ainda pode mandá-la para a forca.
— Não — Maldie devolveu, sem hesitar. — Balfour nunca sentenciaria alguém à morte sem provas concretas do crime.
— Tem razão. Meu irmão é um homem justo e misericordioso. Pena que seja tolo também. Isto só lhe deixa uma única alternativa. — Nigel fitou-a atentamente. — Você precisa escapar de Donncoill.
Impossível o cavaleiro haver adivinhado seus planos, Maldie pensou, esforçando-se para controlar as emoções. Afinal, todos no castelo estavam envolvidos nos preparativos para libertar Eric. Ninguém a julgaria capaz de se lançar nessa empreitada sozinha, porque a simples idéia soaria absurda.
— Claro. Fugir com certeza provaria minha inocência — respondeu irônica.
— Você não teria que provar sua inocência, apenas se manter a salvo.
— Fugir como um ladrão na calada da noite não me ajudará em nada. Ficarei bem, sir, não se preocupe. Admito estar profundamente magoada com tudo isso, mas sei que a verdade virá à tona. É só ter paciência e esperar.
— Se eu puder ajudá-la de alguma forma...
— Nem diga tal coisa. Sua confiança na minha inocência me basta. É melhor você não se envolver nessa história, pois tomar qualquer atitude significaria desobedecer ao chefe do clã, trair seu irmão. — Jennie abriu a porta, sinalizando que a
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visita terminara. — E hora de voltar aos meus aposentos. Descanse, agora. Você está mais forte a cada dia que passa, mas ainda não é hora de exagerar. O repouso continua imprescindível.
— Você tem acertado todos os prognósticos sobre minha recuperação. Creia-me, não vou fechar meus ouvidos aos seus conselhos.
Devagar, Maldie retornou ao seu quarto, notando que Jennie desviara o olhar à sua passagem. Todos sabiam por que Balfour a mandara prender. Doía-lhe pensar que acabara perdendo o respeito e a confiança dos moradores do castelo, após ter se esforçado tanto para conquistá-los. O golpe parecia ainda mais duro porque começara a considerar Donncoill o lar que jamais tivera.
Ouvindo o guarda trancar a porta pelo lado de fora, Maldie estremeceu. Respirando fundo, aproximou-se da janela pequenina e inspirou o ar fresco, lutando contra a sensação de claustrofobia. Como fizera nos últimos três dias, desde que fora confinada, agarrou-se ao plano que vinha elaborando para libertar Eric.
Ocupando a mente com outras coisas, evitava deter-se sobre o próprio sofrimento e mágoa. Imaginara um modo de se infiltrar em Dubhlinn, de descobrir onde Eric estava preso e de tirá-lo de lá às escondidas.
Um último detalhe faltava resolver: como escapar de Donncoill?
Existiam várias maneiras de escapulir, mas nenhuma oportunidade se apresentara. Ninguém precisara de seus cuidados, ninguém viera visitá-la, e os guardas designados para vigiá-la nunca se distraíam.
De repente, uma ideia. Algo tão simples que se surpreendia por não haver lhe ocorrido antes.
Tudo de que necessitava era uma desculpa para chamar uma das servas. Quando dissesse estar padecendo de alguma mazela feminina, o guarda sairia correndo em busca da criada. A única parte difícil seria agredir a pobre serva.
Apenas se a deixasse inconsciente, teria tempo de fugir de Donncoill.
Uma batida na porta e Balfour entrou. Vendo-o, Maldie foi dominada pelos sentimentos que estivera, tão desesperadamente, tentando sufocar. Raiva, ressentimento, amargura.
— Se você não veio implorar meu perdão, por favor, retire-se — falou áspera, sentando-se empertigada na beirada da cama.
Num gesto cansado, lorde Murray passou os dedos pelos cabelos revoltos. Não tinha certeza por que tornara a procurá-la. Duvidava de que a situação houvesse
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mudado, mas sentira-se impelido a dar a Maldie uma última chance de se defender, e a si mesmo uma última chance de libertá-la. Supusera que depois de três dias confinada, ela se encontraria mais inclinada a cooperar. Pelo visto, enganara-se.
Sentira falta de Maldie, e não apenas na cama. Porém receava que a saudade não fora recíproca.
— Vim lhe dar outra chance de me contar a verdade.
— Já lhe contei a verdade. — Estava tão furiosa, que não se importava mais de mentir.
— Talvez parte da verdade. Quanto mais penso no assunto, mais compreendo que, embora sejamos amantes, você continua uma estranha para mim. Pouco sei a seu respeito.
— Nunca conheci pessoas tão preocupadas em devassar a intimidade dos outros quanto os Murray. Sou o que você vê. Que mais importa?
— Quando se está sendo acusada de pactuar com o inimigo e levar um inocente à morte, é necessário uma defesa mais ampla, com informações mais minuciosas. Você não percebe o tamanho do perigo que a ronda, moça?
— Então você pretende me condenar à forca?
Notando-o empalidecer, Maldie exultou por dentro. Lorde Murray não lhe dedicava a mais completa indiferença, como chegara a temer. As acusações de que fora vítima e a ausência dele a tinham feito remoer as mais terríveis dúvidas. Logo partiria de Donncoill e seus caminhos não voltariam a se cruzar, mas era reconfortante saber que Balfour ainda capturava o interesse por ela.
— Não, claro que não. Afinal, você não matou ninguém com as próprias mãos, como Grizel. Só não entendo sua recusa em não tentar provar sua inocência.
— Porque são desconfianças insultantes e infundadas. Tentar provar minha inocência seria justificar suas acusações, reconhecer algum fundamento em tais absurdos. Não me submeterei a esse ultraje. — Cruzando os braços sobre o peito, Maldie o fitou friamente, desafiando-o a persistir naquela linha de raciocínio.
— Você é uma mulher muito teimosa — Balfour falou devagar, balançando a cabeça. — Talvez haja lógica em sua maneira de pensar, mas seria bom considerar o quanto perigosos o orgulho cego e a obstinação podem ser. Rezo para que a situação não chegue a este ponto, porém em questões cruciais, acaba-se pagando um preço alto pelo silêncio. — Batendo a porta com força, o cavaleiro retirou-se.
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Atordoada, Maldie desabou na cama. As últimas palavras dele haviam soado como uma ameaça, entretanto não sentira medo. Balfour jamais a machucaria. E, em caso de extrema necessidade, ainda lhe restaria o apoio de Nigel.
A breve visita, contudo, servira para lhe mostrar uma coisa. Chegara à hora de fugir de Donncoill. Simplesmente não suportaria outra cena como aquela, quando o homem a quem amava exigia provas de sua inocência. Embora compreendesse a posição delicada em que Balfour se encontrava, e os motivos que o levavam a agir como agia, a dor tornara-se grande demais, o sofrimento insuportável.
Lorde Murray não se enganara ao acusá-la de orgulhosa e obstinada.
Sim, era teimosa, reconhecia-o. E não iria engolir seu orgulho apenas para satisfazê-lo.
Já não tinha certeza se conseguiria manter-se fiel à determinação de não expor seus segredos até cumprir a promessa feita à mãe moribunda. Bastava vê-lo para desejar se atirar em seus braços e abrir o coração, sem medir as consequências. Se não partisse logo de Donncoill, sucumbiria às pressões e faria tudo para reconquistar a confiança de Balfour.
Disposta a pôr seu plano em prática, Maldie aguardou uma hora antes de começar a encenação. E não precisou gemer mais de três vezes para o guarda abrir a porta. Esforçando-se para não sorrir ante a expressão preocupada do rapaz, ela cobriu a barriga com as mãos e tornou a gemer baixinho.
— Alguma coisa errada, senhora?
— Necessito da ajuda de uma mulher.
— Você está doente?
— E uma indisposição feminina e preciso do auxílio de uma mulher — devolveu Maldie, impaciente, contorcendo-se de dor. — Vá chamar uma das criadas.
Conforme imaginara, bastara pronunciar as palavras "indisposição feminina", para o guarda sair correndo, esquecido de fazer quaisquer outras perguntas. Dali a poucos minutos, ao ouvir passos no corredor, Maldie tornou a pressionar a barriga e choramingar.
— O que a aflige senhora? — Jennie a interrogou aflita, assim que ficaram sozinhas.
Mesmo não tendo intenção de realmente ferir a outra, Maldie sentiu o coração se apertar pela forma como seria obrigada a agir. Jennie não merecia isso.
Hannah Howell 95 Destinos ao Vento
— O que me aflige é estar presa como se fosse uma maluca — ela murmurou, desferindo um soco certeiro no queixo da serva.
Surpresa viu a jovem desabar, inconsciente. Não esperara que seria tão fácil, antecipara alguma luta. Depois de se certificar de que Jennie apenas desmaiara, colocou-a na cama, sob o lençol. Então passou para a segunda fase do plano.
Embora estivesse um pouco quente, Maldie cobriu-se da cabeça aos pés com uma capa. Se Grizel fora capaz de entrar e sair de Donncoill sem que lhe prestassem muita atenção, suas chances de conseguir o mesmo não eram desprezíveis. Tensa, bateu na porta.
— Tenho que ir à aldeia buscar algumas ervas — murmurou cabisbaixa. — Também vou precisar de algumas tiras de pano para estancar o sang...
O guarda praticamente a empurrou para fora do quarto e tornou a trancar a porta, sem lhe dar chance de completar a frase.
— Então vá logo, moça. Não preciso saber dos detalhes. O trajeto até os portões do castelo pareceu durar uma eternidade. A cada passo, Maldie temia ser reconhecida, ou pior, deparar-se com Balfour.
Atravessando o pátio interno, por pouco não se lançou em desabalada carreira ao avistar Balfour e James conversando perto dos estábulos. E só não cedeu ao impulso porque sabia que seu comportamento atrairia olhares.
Apenas quando já se achava a vários metros além das muralhas de Donncoill é que pôde respirar com tranquilidade. Seu corpo inteiro estava banhado de suor e não porque usava uma pesada capa de lã escura num dia de sol. Tampouco se espantava por já sentir-se exausta. Puro nervosismo. Apertando a capa contra si, Maldie pôs-se a andar mais depressa. Enquanto não deixasse a aldeia para trás não teria sossego, continuaria se preocupando com a possibilidade de alguém descobri-la.
No instante em que entrou na floresta, Maldie livrou-se da capa.
Aproximando-se do riacho que cortava uma pequena clareira, molhou a echarpe na água tépida e limpou o suor do rosto. A tarde já ia pelo meio e, com certeza, não alcançaria Dubhlinn antes do pôr-do-sol. Teria de passar a noite ao relento. Isto não a assustava tanto quanto a possibilidade de Balfour estar caçando-a. Não conseguiria dormir um instante sequer. Ou passaria as horas atenta aos menores ruídos, ou fugiria ao escutá-los.
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— Assim que eu estiver dentro das paredes de Dubhlinn, ficarei a salvo de Balfour — murmurou amarga. — Só terei que me proteger de Beaton e seus comparsas. Eu devia estar doida quando imaginei que esse plano daria certo.
Praguejando baixinho, deitou-se sob a copa de uma árvore, mal sentindo a maciez da grama sob o corpo por causa da agitação interior. Descansaria um pouco e tentaria ordenar os pensamentos.
O mais sensato seria fugir para bem longe de Balfour e Donncoill, para bem longe de Dubhlinn e Beaton. Porém, apesar de escutar a voz da razão, preferiu ignorá-la.
A todo custo provaria sua inocência. Não sabia ao certo por que tornara-se imprescindível parecer inocente aos olhos de Balfour. Ou por orgulho, ou porque o amava demais. Já não importava a natureza de suas emoções. Decidira-se não partir em definitivo até solucionar a questão. Ou libertaria Eric e o devolveria aos Murray, provando assim sua inocência, ou seria apanhada e morta pelos homens de Beaton, o que faria Balfour se arrepender de tê-la acusado falsamente.
Havia também outro detalhe que a impelia a levar adiante o arriscado plano. Desconfiava de que Eric fosse seu meio-irmão. Se o menino e ela possuíam o mesmo sangue, tinha o dever moral de tentar salvá-lo. Se fugisse agora, se deixasse para trás todos os desafios, nunca saberia a verdade e se arrependeria pelo resto de seus dias.
Convencida de que não voltaria atrás na decisão tomada, Maldie levantou-se e deu início à longa caminhada que a conduziria a Dubhlinn. Os portões do castelo já estariam fechados quando lá chegasse, o que lhe deixava duas escolhas. Poderia dormir no meio do mato, rezando para que não chovesse, ou não esfriasse demais. Ou então buscar abrigo no pequenino chalé do casal idoso que a havia acolhido tão gentilmente tempos atrás, na esperança de não ser repelida. Melhor tentar a sorte com o casal, resolveu, odiando-se por envolver pessoas boas e inocentes num caso que não lhes dizia respeito.
Desde que pusera os pés em Donncoill sua vida virara de cabeça para baixo, passando de simples a extremamente complicada. Diante do túmulo da mãe, assumira um único propósito: alcançar Dubhlinn e matar William Beaton. De súbito, vira-se acusada de apoiar quem jurara assassinar, despertara o desejo do doente cuja saúde restaurara, apaixonara-se pelo homem de quem se tornara amante e descobrira possuir um irmão. Se contasse essa história mirabolante a alguém, seria chamada de mentirosa ou acusada de dar-asas a uma imaginação fértil.
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Enquanto caminhava por entre as árvores, seus pensamentos voltaram-se para o pobre Eric.
Ninguém em Donncoill jamais dissera algo negativo sobre o menino. Agora começava a se perguntar se esse amor e admiração resistiriam, caso o soubessem filho de Beaton. Tratava-se de um daqueles segredos que, para o bem de todos, deveria ser enterrado e esquecido. Infelizmente, ela seria a responsável indireta pela revelação do segredo. Balfour vira o sinal de nascença no seu ombro e logo descobriria que Beaton era seu pai. Não seria difícil para ele chegar à verdade sobre a origem do garoto ao qual chamara de irmão durante anos a fio. Beaton possuía a habilidade maligna de destruir a vida das pessoas, Maldie concluiu amarga. Faria uma promessa a si mesma. Se Eric acabasse sozinho, abandonado tanto pelos Beaton quanto pelos Murray, iria tomá-lo sob sua proteção. Seria o mínimo que poderia fazer depois de, inadvertidamente, ter lhe arruinado a vida.
Pela primeira vez Maldie se deu conta de haver perdido o ímpeto cego de matar Beaton. Com certeza continuava odiando-o, pois, desde a infância, esse ódio fora fomentado por sua mãe. Também não duvidava de que bastaria estar frente a frente com o infame para todo o rancor vir à tona. No entanto, outras coisas tinham passado a ocupar sua vida e seu coração.
Mesmo agora, quando marchava para o covil do maldito, quase não pensava em vingança. Balfour, e um menino chamado Eric, ocupavam o centro de suas atenções. Só não entendia por que preferia pensar em Balfour, apesar da dor que ele lhe causara, a pensar na vingança tão longamente planejada.
— Bem, talvez o destino sorria para mim — Maldie murmurou, tropeçando num tronco podre. — Talvez eu não apenas consiga libertar Eric e provar minha inocência, como livrar esse mundo da perfídia de William Beaton. Tudo o que preciso fazer é chegar inteira a Dubhlinn.
Capítulo VII
Onde está ela? — Balfour gritou, maldizendo-se ao ver a criada começar a tremer, branca como o lençol que a cobria.
Não podia crer que Maldie escapulira bem debaixo de seus narizes, mas, aparentemente, fora o que acontecera. Porque não resistira ao impulso de tornar a vê-la, resolvera levar-lhe o jantar. Quando o guarda lhe contara que a herborista caíra doente,
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preocupara-se. Enquanto abria a porta do quarto, o rapaz também reclamara da serva, que não voltara da aldeia com as ervas que se prontificara a buscar. Então, a preocupação de Balfour transformara-se em alarme. Ficara furioso, mas não de todo surpreso, ao descobrir Jennie, ainda zonza, tentando levantar-se. Gritara insultos para o guarda, chamara James aos berros e agora esbravejava com a pobre jovem aterrorizada. Seu descontrole o estava conduzindo a lugar nenhum. Irritado consigo mesmo, fez sinal para James aproximar-se e assumir o interrogatório.
— Estou a ponto de matar a pobre menina de medo. Veja o que você consegue descobrir.
— Sim. Você precisa se acalmar, milorde — concordou o mestre de armas, examinando o hematoma no queixo de Jennie.
— O que aconteceu? — Nigel perguntou, aparecendo sob a soleira da porta.
— Além dessa sua tolice de arrastar-se por aí sozinho?
— Resmungando algo ininteligível, Balfour apressou-se a acomodar o irmão numa cadeira diante da lareira. — Maldie fugiu — esclareceu seco.
— Ah, então a bela conseguiu escapar-lhe. — Impossível não perceber uma certa satisfação no tom de Nigel.
— Você sabia o que ela estava planejando fazer?
— Não, apenas suspeitava. Mas, diferentemente de você, não costumo agir baseando-me apenas em suspeitas.
— O que aconteceu agora confirma minhas desconfianças.
— Será mesmo?
— Maldie fugiu. Atitude típica de quem é culpada.
—Discordo. Talvez ela tenha desejado somente se afastar de você. — Notando a súbita palidez do irmão, Nigel sorriu.
— Você a acusou de espionagem e assassinato sem provas e ainda esperava que a pobrezinha permanecesse aqui, à espera de seu próximo ataque de loucura? Não, Maldie fez o que qualquer outra pessoa teria feito, fugiu na primeira oportunidade, para o mais longe possível. Afinal, depois de prendê-la, quem poderia garantir que você não a mandaria enforcar?
— Eu nunca mandaria matá-la. Nem mesmo se existissem provas de que fosse culpada — Balfour afirmou, categórico. — Ela deveria saber.
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— Considerando o modo como você tem agido nos últimos dias, creio que Maldie já não acreditava conhecê-lo bem. Jennie finalmente recuperou a fala? — Nigel indagou, quando James, dali a instantes, reunia-se aos dois irmãos.
— Sim. Parece que Maldie, fingindo padecer de algum distúrbio feminino, pediu para o sentinela buscar ajuda. Ao entrar no quarto, Jennie foi agredida. A partir daí, não se lembra de mais nada.
— E quanto a Duncan, o tolo que encarreguei de vigiar a porta? — Olhando ao redor, Balfour constatou que Duncan sumira logo após conversar com o mestre de armas.
— Duncan afirma ter deixado Jennie entrar no quarto e depois sair. O infeliz estava tão apavorado com a ideia de escutar detalhes sobre o tal distúrbio feminino, que mal prestou atenção à passagem da serva. Quando o pressionei atrás de maiores detalhes, recordou-se de que Jennie, ao sair, estava coberta da cabeça aos pés com uma capa de lã, vestimenta que não usava ao entrar no quarto. Maldie provou, mais uma vez, ser esperta e inteligente. Antes que Duncan desconfiasse de algo, disse estar indo apanhar as coisas necessárias àquele período em que as mulheres perdem sangue. Na sua ânsia de evitar o assunto, ele a empurrou corredor afora.
Balfour os olhou friamente quando James e Nigel puseram-se a rir. Ambos davam a impressão de não se importar com as possíveis consequências da fuga de Maldie. Se ela fosse culpada de tudo o que a acusara, e rezava para que não, sem dúvida rumara direto para Dubhlinn, onde colocaria Beaton a par das informações coletadas. Se inocente, estaria agora vagando pela floresta, sozinha e desamparada. Portanto, não havia motivos para rir.
— Agrada-me vê-los se divertindo tanto com a esperteza de Maldie. Mas já pensaram no que poderá acontecer daqui para a frente?
— Ou vamos procurá-la, ou não — retrucou James.
— Se ela for espiã de Beaton, está a caminho de Dubhlinn neste exato momento, levando todos os nossos segredos.
— Maldie não é nenhuma espiã — Nigel devolveu áspero.
— Ela apareceu de repente, saída de lugar nenhum — argumentou Balfour. — Jamais nos forneceu explicações e mostrou-se sempre interessada em nossa rixa com Beaton. Aliás, interessada demais.
— Sim — James apressou-se a concordar. — Maldie Kirkcaldy deixou muitas perguntas sem respostas.
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— Talvez as respostas não fossem da nossa conta — argumentou Nigel. — Ela é filha bastarda de uma mãe prostituta. Não é o tipo de vida sobre o qual as pessoas gostam de falar.
— Compreendo perfeitamente. — Cansado, Balfour massageou o pescoço rígido. — Nunca pedi detalhes sórdidos. Queria apenas umas poucas informações que meus homens pudessem averiguar e constatar. Alguma coisa que provasse ser ela quem se dizia ser.
— E se Maldie fosse mesmo quem se dizia ser, filha ilegítima de uma prostituta, o que as pessoas da aldeia onde ela morou diriam a seu respeito? Você acha que lhe fariam elogios? Não, a filha de uma prostituta jamais seria poupada das línguas venenosas e invejosas, em especial por ter se recusado a seguir o ofício da mãe. Aquela gente encheria os ouvidos dos nossos homens com maledicências e a história logo se espalharia por Donncoill. Talvez Maldie preferisse que não soubéssemos de toda a verdade torpe, que não ouvíssemos as mentiras que nos contariam.
— Essa possibilidade já havia me passado pela cabeça — Balfour admitiu —, porém precisava de provas sobre a identidade de Maldie. Você realmente acredita que eu queria trancá-la num quarto? Ou que desejava desmascará-la, expondo-a como uma aliada de Beaton? Embora odiasse a ideia, era meu dever tomar as precauções necessárias para proteger o clã. Na última vez que enfrentamos Beaton, perdemos homens bons devido a uma armadilha do canalha. Eu não poderia ignorar os riscos.
— Você não enxerga a realidade com clareza porque Maldie salvou-lhe a vida e você se sente em débito — James falou gentilmente, dirigindo-se a Nigel.
— Um débito que todos deveríamos partilhar. Não foi somente minha vida que Maldie salvou, mas a de muita gente em Donncoill. Ela cura as pessoas. Frequentemente trabalhava até tarde da noite para tratar dos doentes a fim de aliviar suas dores. Como é possível imaginar que uma mulher capaz de tamanha compaixão seja aliada de Beaton e queira nos destruir?
— Não adianta continuarmos essa discussão — Balfour decretou. — Nunca chegaríamos a um acordo. Inocente ou não, Maldie está lá fora, sozinha e sem o que comer.
— Tem certeza de que ela não levou nada consigo?
— Sim, porque não se arriscaria a perder tempo, perambulando pelo castelo em busca de provisões.
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— Então, se Maldie já está tão longe daqui, por que se dar ao trabalho de procurá-la?
— Porque até eu obter provas concretas de que ela não é informante de Beaton, não posso deixá-la vagando livremente por aí, sabendo tanto a nosso respeito. Se Maldie colocar Beaton a par de nossos planos, não apenas perderemos a guerra para libertar Eric, como correremos o risco de perder nossas terras também. Preciso impedi-la de contar nossos segredos àquele crápula.
— Não podemos sair à procura dela agora — ponderou James, enquanto Nigel se fechava num silêncio acusador. — Devemos esperar amanhecer o dia, antes de iniciarmos a busca.
— Apenas prometam-me que não a machucarão — Nigel pediu, fitando os outros dois friamente.
— Eu jamais machucaria Maldie — afirmou Balfour, enfático. — Ou permitiria que um de meus homens a ferissem.
— Então procurem-na e tragam-na de volta para cá. Mas saibam que vou rir muito de vocês quando ela se provar inocente.
No alto da muralha, Balfour olhava o céu, aguardando, impaciente, o nascer do sol. Não chegara a deitar-se e pouco comera as emoções confusas demais para permitirem-lhe algum descanso. Duas coisas o afligiam: a possibilidade de Beaton, a par de informações vitais, vir a derrotá-los, e o medo do que poderia acontecer a Maldie, vagando sozinha pela noite, sem comida, água ou proteção.
Porém, o que mais o angustiava era imaginar como seria caso a encontrasse e trouxesse de volta a Donncoill. Haveria entre os dois um abismo intransponível. Se Maldie fosse inocente, acabara de mostrar-lhe que não a considerava digna de confiança, o que mataria quaisquer sentimentos que ela talvez lhe dedicasse. Pisoteará seu orgulho ao tratá-la como vil traidora, deixando implícito que a considerava pouco mais que uma prostituta, capaz de usar o próprio corpo para arrancar informações e passá-las ao inimigo. Se culpada, nunca mais poderia conservá-la perto de si, pois acabaria novamente traído.
— Você vai esgotar seu cérebro se continuar tentando encontrar explicações para o inexplicável — falou James, com um enorme bocejo. — Você não dormiu nada, dormiu?
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— Não. Andei de um lado para o outro do meu quarto e então vim para cá, observar o céu.
— Você deveria ter descansado porque teremos um longo dia pela frente.
— Sim. A terra é vasta e Maldie uma mulher esperta. Não será tão fácil localizá-la.
— Com certeza. Também precisamos levar em consideração que talvez sejamos obrigados a apressar a batalha.
— Por que deveríamos?
— Por quê? Está claro que você não passou a noite imaginando meios de ajudar seu clã, ou salvar seu irmão. — Percebendo a expressão culpada de Balfour, o mestre de armas o segurou pelo braço, compreensivo. — Não tome meu comentário como uma crítica. Entendo como uma bela mulher consome os pensamentos de um homem.
— De fato. Duvido que eu seja capaz de me lembrar de tudo o que me passou pela cabeça nestas últimas horas, ou se os pensamentos fariam sentido. Estou confuso. Maldie fugiu porque é inocente, ou porque está furiosa? Correu ao encontro de Beaton, ou em busca daqueles parentes sobre os quais nunca nos revelou? Ela é o pior tipo de prostituta, a quem devo descartar, ou eu serei descartado porque a insultei tão gravemente que não mereço perdão? Tantas perguntas e não há como respondê-las. Porém, o crucial neste momento, é descobrir se Maldie é mesmo informante de Beaton.
— Sem dúvida essa é a questão principal. Impossível saber a verdade, mas não podemos simplesmente ficar de braços cruzados. Sairemos à procura de Maldie e, no caminho, marcharemos para Dubhlinn.
— Nigel ainda não está pronto para enfrentar uma batalha.
— Ele pode muito bem cavalgar ao seu lado e atuar como conselheiro. Concordo que seu irmão deveria permanecer em Donncoill, mas, ele só ficaria para trás se o amarrássemos na cama. Pense rapaz. Se Maldie for mesmo aliada de Beaton, logo o inimigo estará ciente de todos os nossos planos. Resta-nos marchar para Dubhlinn às primeiras horas da manhã. Eu gostaria até de partir antes de o sol nascer, embora saiba que não conseguiríamos nos aprontar em tão pouco tempo.
James tinha razão, Balfour concluiu. Se não agissem rapidamente, ficariam numa posição vulnerável porque Beaton, por meio de Maldie, saberia de seus planos. Então, uma ideia começou a tomar forma em sua mente cansada.
— Não, não marcharemos para Dubhlinn imediatamente. Boquiaberto, James levou alguns segundos para se recuperar do choque.
Hannah Howell 103 Destinos ao Vento
— Sei que você não quer que a bela jovem seja culpada de traição, mas pelo menos considere a possibilidade. Se esperarmos, Beaton terá tempo de sobra para investir contra nós. De posse de informações importantes, poderá nos esmagar.
— O infame quase nos esmagou na última vez em que nos lançamos contra aquelas malditas muralhas. Com certeza ele fechará os portões do castelo e terá seus homens a postos, prontos para nos receber. Tentar transpor as muralhas será nossa sentença de morte.
—Bem, talvez...—concedeu o mestre de armas, coçando a barba grisalha.
— Traçaremos outro plano. Posso estar exausto, porém minha mente continua funcionando razoavelmente e creio ter uma ideia inteligente. Maldie me disse uma coisa que...
— Você não pode confiar em tudo o que ela falou.
— Sim, eu sei. Esse detalhe escapou durante uma conversa, quando Maldie me contava algo engraçado que lhe aconteceu num dia de feira em Dubhlinn. Daqui a três dias, haverá outra feira.
— E como a tal feira nos favoreceria?
— Se aguardarmos três dias deixaremos Beaton inquieto, pois a lógica o levaria a pensai' que o atacaríamos imediatamente para compensar o estrago feito pela traição de Maldie. Quando não aparecermos em seus portões, o canalha começará a duvidar da veracidade das informações passadas por sua espiã. Afinal, ele nunca teve fé na inteligência das mulheres. Um dia de feira sempre atrai muitas pessoas estranhas à aldeia.
Durante vários segundos James permaneceu em silêncio, analisando os possíveis desdobramentos.
— Poderíamos infiltrar muitos dos nossos em Dubhlinn — murmurou, pensativo —, sem que Beaton suspeitasse de nada.
— Então você acha que vale a pena investirmos nessa ideia?
— Oh, sim. Talvez seja até melhor alterarmos o plano original. Agora vamos atrás daquela linda moça. Seria mais vantajoso se a impedíssemos de alcançar Dubhlinn, se Beaton não fosse alertado e estivesse à nossa espera.
— Vocês a encontraram? — Nigel indagou apreensivo, sentando-se na cama.
— Nós a vimos. — Após servir-se de um cálice de vinho, Balfour tomou um demorado gole.
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— Como assim, vocês a "viram"?
— Nós a vimos rumando direto para Dubhlinn.
— Não. Não acreditarei nisso.
— Você acha que eu quero acreditar? — Angustiado, Balfour sorveu o resto da bebida numa tentativa vã de controlar as emoções.
— Se não acreditasse, não a teria trancafiado.
— Não sei se é porque você preferiu não me dar ouvidos, ou porque não quis enxergar o óbvio, mas, como chefe do clã, fiz o que devia ser feito. De algum modo, Beaton estava descobrindo nossos segredos, mesmo após a morte de Grizel. Portanto, existia um outro informante. Tudo apontava para Maldie, e eu não podia arriscar a segurança de nosso povo confiando nela cegamente, por mais que desejasse. Rezei para estar errado. Não me alegra constatar que minhas suspeitas tinham fundamento.
— Não, Maldie não se aliaria a Beaton — Nigel insistiu irredutível.
— Ela tomou o rumo de Dubhlinn. Três dos nossos homens a viram correndo naquela direção. Não há dúvidas de que saiu daqui direto para o castelo de nosso pior inimigo. Que outro significado tal atitude poderia ter?
— Não sei. Sei apenas que Maldie nunca se envolveria com um crápula feito Beaton. É bondosa demais para se deixar corromper pela maldade.
— Assim eu pensava.
— Talvez haja uma explicação. Sim, parece que ela está ajudando Beaton, porém, não sabemos até onde, ou porquê. Enquanto eu não estiver a par de todos os detalhes, me recusarei a acreditar que essa mulher, tão hábil na arte da cura, tão generosa e compassiva, não passe de uma prostituta traidora.
As palavras do irmão atingiram Balfour como um soco na boca do estômago, porque também as tinha dito a si mesmo. Três horas atrás, seus homens haviam retornado a Donncoill com notícias sobre o paradeiro de Maldie. Custara a assimilar a informação e precisara de muito tempo sozinho para acalmar-se e ser capaz de dar a notícia a Nigel. Jamais imaginara estar tão determinado a negar-se a aceitar um fato comprovado. E, ainda pior, queria, desesperadamente, acreditar que o irmão estava certo.
— Estou ansioso para partilhar dessa sua certeza, porém não acho que seria sensato. Já é duro demais pensar que fui feito de idiota. Recuso-me a me apegar a qualquer esperança e parecer um tolo ainda maior.
— Ela gostava de você, Balfour. Não tenho dúvidas sobre isto.
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— Não. — Tenso, o cavaleiro pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
A dor que sentira quando seus homens lhe contaram sobre o paradeiro de Maldie continuava corroendo-lhe a alma. E sabia que, se o permitisse, o sofrimento causado pela traição o destruiria. Não queria falar no assunto, não queria discutir qualquer possibilidade, mesmo remota, de que ela ainda pudesse se provar inocente. Gostaria de nunca mais pensar em Maldie, apesar da suspeita de que tal coisa seria impossível. Parte de si a odiava, odiava-a por ela o ter feito de idiota, por tê-lo traído, e, principalmente, por tê-lo feito amá-la. Continuava amando-a com todas as suas forças, mas queria poder apagar esse sentimento, destruí-lo, esquecê-lo.
— Prefiro discutir a batalha — falou, tenso.
— Você ainda pretende atacar Dubhlinn? Não creio que seria sensato. Embora eu não acredite que Maldie tenha nos traído, devemos considerar a possibilidade de que Beaton esteja, neste momento, sabendo de seus planos. Se você marchar para o castelo inimigo, acabará estraçalhado porque estarão todos prontos, à nossa espera.
— Beaton estaria pronto para o que eu havia planejado antes, não para o que tenho em mente agora.
— Há um plano novo?
— Sim, e mesmo James crê que as chances de sucesso são grandes.
— Resta-me mais algum tempo para reunir minhas forças e cavalgar ao seu lado?
— Três dias. — Balfour sorriu, melancólico. — Iremos ao mercado, Nigel.
O entusiasmo do irmão, ao ser colocado a par dos detalhes, animou Balfour que ficou um pouco mais confiante na vitória quando ele retornou ao salão. Sua única preocupação era Maldie, agora em Dubhlinn. Pedia a Deus que não a encontrasse no dia da batalha. Seria melhor para ambos se ela fugisse e nunca mais a tornasse a vê-lo.
— Nigel não quis acreditar no que você lhe contou— disse James, enquanto Balfour sentava-se à mesa.
— E isto o surpreende?
— Não tanto quanto deveria — devolveu o mestre de armas, balançando a cabeça. — Pensei que seu irmão iria enxergar a realidade dos fatos. Contudo parece que ele ainda não o perdoou pelo modo como você tratou a jovem herborista.
— Oh, Nigel mostrou-se mais compreensivo e até entendeu a necessidade de sermos cautelosos agora, de não confiarmos somente no instinto. Mas ele insiste que
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deve haver uma razão para Maldie ter agido como agiu, um motivo que o permitirá perdoá-la.
— Você também alimenta essa esperança?
— Não sei. Talvez. No momento estou apenas tentando não pensar nela, porque pensar significa admitir quanto patético fui e fico furioso comigo mesmo.
— Então direi uma única coisa sobre Maldie. Procure se acalmar, não permita que a fúria o domine antes de partirmos para a batalha. Existe a possibilidade de você vê-la ao alcançarmos Dubhlinn e não seria sensato deixar-se cegar pela raiva. Não somente você se distrairia da batalha, como poderia fazer algo do qual se arrependeria depois.
— Você também vai me dizer que, talvez, exista um bom motivo para ela ter agido como agiu?
— E provável que sim. Não sabemos, exatamente, por que Maldie fez o que fez. Peço-lhe para não julgá-la precipitadamente. Se você se permitir pensar que pode haver uma explicação para a atitude de Maldie, se considerar a possibilidade de vir a perdoá-la, então não será consumido pela fúria quando a avistar em Dubhlinn.
— Ah, entendo. Você teme que eu saia correndo atrás dela e meus homens fiquem sem liderança. Que não sossegarei enquanto não a agredir, numa tentativa fútil de restaurar minha masculinidade e orgulho ferido.
— Sim, talvez. — James sorriu, divertindo se com o tom irônico do outro.
— Pois não tema. Embora eu seja um tolo, mesmo agora não seria capaz de feri-la, de tocar num só fio de seus cabelos. Espero apenas que Maldie tenha bom senso suficiente para sumir de Dubhlinn no instante em que a batalha começar.
— E falando em batalha, qual a opinião de Nigel sobre o novo plano?
— Ele ficou tão entusiasmado que acabei mais confiante no sucesso.
— Não excessivamente confiante, suponho.
— Não. Sinto que, pela primeira vez em treze longos e sangrentos anos, temos chances reais de pôr fim numa rixa antiga.
— Então pelo menos uma coisa boa resultará dessa encrenca. Além do fato de trazermos Eric de volta para casa, é claro.
Sozinho em seu quarto, sentado diante da lareira apagada, Balfour se permitiu pensar em Maldie.
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E uma tristeza profunda o invadiu. Sentia-se como se ela tivesse morrido. Na verdade, a mulher que a imaginara ser jamais existira. Tudo fora uma mentira. Acabara envergonhado devido à sua natureza confiante. Aquela que julgara o grande amor de sua vida revelara-se apenas uma prostituta habilidosa, a serviço de Beaton.
Maldie praguejou baixinho quando os espinhos do arbusto atrás do qual se refugiara a espetaram. O sol já ia alto e ainda não havia chegado à aldeia. Durante horas vagara pela mata, escondendo-se dos homens de Balfour que varriam os arredores, com certeza, procurando-a. Doía-lhe a alma pensar que lorde Murray realmente a considerava informante de Beaton. Também estava furiosa porque, se não fossem as suspeitas infundadas, não teria sido obrigada a rastejar até Dubhlinn.
Além das árvores, erguiam-se as torres do castelo. Nenhum de seus perseguidores transporia os limites da mata, temendo ser vistos pelos membros do clã inimigo. Portanto, só precisaria vencer alguns metros e estaria a salvo.
Naturalmente seu plano apresentava alguns pequenos problemas. Por mais que corresse, nunca ultrapassaria a velocidade de um cavalo. E um arqueiro habilidoso não encontraria a menor dificuldade para alvejá-la, embora não acreditasse que Balfour tivesse dado ordens para matá-la. Entretanto, nos últimos dias, ele tomara muitas atitudes das quais tampouco o julgara capaz. Para completar, seria vista correndo rumo a Dubhlinn, prova final de sua traição. Depressa, Maldie afastou a tristeza e buscou conforto na ideia de que não tardaria a expor ao mundo sua inocência.
Armando-se de coragem, lançou-se numa correria desabalada para além da linha das árvores, esforçando-se para ignorar os gritos de seus perseguidores. Então, um silêncio repentino. Ofegante, aguardou a flecha que dilaceraria suas costas, mas nada. Já próxima ao castelo, virou-se para fitar aqueles enviados para capturá-la. Por um longo momento, os três homens apenas a observaram. Depois, retomaram o caminho de Donncoill.
Esgotada, Maldie perguntou-se como teria forças para concluir o que mal começara. Faltava localizar Eric e arrancá-lo das ganas de Beaton, sem que ambos fossem descobertos.
— Minha criança, o que aconteceu com você?
Com um sorriso exausto, Maldie aceitou o convite da velha senhora para entrar no minúsculo chalé. Sua aparência enlameada e esfarrapada sem dúvida chocara
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Eleanor, mas não havia sinal de reprovação nos olhos cinzentos, somente preocupação. Em vão, Maldie tentou sufocar a amargura. Sentia-se uma traidora por estar a ponto de transformar a rotina da amiga num caos, ao contribuir para a morte do chefe de seu clã.
Após banhar-se e trocar de roupa, sentou-se à mesa para uma ligeira refeição, enquanto a velha senhora a punha a par das últimas fofocas de Dubhlinn.
— Você está louca de vontade de me fazer perguntas, não é? — indagou, notando como Eleanor não parava quieta na cadeira.
— Sim. Mas, sei o quanto você preza sua privacidade
— Sinto muito por haver partido sem uma única palavra de agradecimento.
— Que outra alternativa lhe restava, com todos aqueles homens a assediando?
— Você notou?
— Meus olhos podem estar cansados, mas ainda enxergam muito bem. Rezei para que você encontrasse um lugar onde ficasse a salvo, porque aqui as coisas só pioraram. Começo a achar que lorde Beaton realmente enlouqueceu e que a doença que lhe deforma o corpo também corrói a mente.
— Eu sequer sabia que ele estava doente.
— E um segredo bem guardado. Milorde teme todos que o cercam, e com razão. São muitos os que ambicionam essas terras.
— O que ele fez agora?
— Roubou uma criança do clã rival. Se tal ato já não fosse vergonhoso o suficiente, trata-se da mesma criança que o infame abandonou à morte, anos atrás. Os Murray tentaram resgatar o menino, mas, infelizmente, não conseguiram. — Lágrimas grossas deslizaram pelo rosto enrugado. — Perdi meu amado Robert naquele triste dia.
— Oh, querida, lamento muito. Seu marido era um bom homem. Quem o matou? Alguém a serviço dos Murray?
— Não. Um dos mercenários de Beaton o assassinou por engano. Meu pobre Robert, idoso e aleijado, nem mesmo possuía uma espada para se defender e, ainda assim, foi morto como um cão. Amaldiçôo Beaton e todos os seus. Não creio que um dos Murray fosse capaz de matar meu marido a sangue frio.
— Não, nunca — Maldie declarou, tão enfática que acabou despertando as suspeitas da aldeã.
— Menina, você não pertence ao clã dos Murray, não é?
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— Essa é uma pergunta que posso responder com toda a sinceridade. Não, não pertenço ao clã dos Murray. Sou uma Kirkcaldy, embora bastarda. Não tenha medo, você não está acolhendo uma inimiga.
— Pois eu não me importaria, apesar de recear pela vida dos meus. Lorde Beaton identificou um espião dos Murray e o torturou até a morte. Desde então, já enforcou mais dois outros "suspeitos", mesmo sem provas de que trabalhavam para os Murray. Você não voltou para cá numa boa hora — continuou Eleanor, abatida. — Uma nuvem negra paira sobre nós e não temos esperança de salvação. Lorde Beaton merece apenas nosso ódio. Como vamos respeitar um homem capaz de abandonar um recém-nascido à morte e, anos depois, sequestrá-lo com a intenção de transformá-lo em legítimo herdeiro? A pobre criança não viverá um dia depois da morte de Beaton.
— O que ele fez ao menino? — perguntou Maldie, tentando não deixar transparecer a ansiedade.
— Sorcha, que trabalha na cozinha, disse que o rapazinho não se sentiu intimidado e riu quando lorde Beaton o chamou de filho, respondendo preferir ser filho do diabo a tê-lo como pai. Quando Beaton fez um comentário insultuoso sobre o velho lorde Murray, o garoto o agrediu. Em retaliação à ousadia, acabou espancado e atirado na masmorra, onde deverá permanecer até recobrar o "bom senso".
Apreensiva, Maldie franziu o cenho. Preocupava-a qual seria a reação de Eric, caso ficasse comprovada a verdadeira identidade de seu pai.
— O menino está bem?
— Sim. Com certeza lorde Beaton não o quer aleijado, ou morto, somente domado e manso. A propósito, por que você está tão interessada no garoto?
Dando de ombros, Maldie ocupou-se cortando uma fatia fina do queijo duro.
— E impossível não experimentar alguma simpatia pelo menino.
— Posso ser velha, mocinha, mas meus sentidos ainda estão afiados. E meu olfato aguçado o bastante para sentir o cheiro de uma mentira a metros de distância. — Eleanor ergueu a mão quando Maldie começou a falar. — Apenas me responda uma pergunta. Devo arrumar um esconderijo para mim?
— Sim. — Maldie sorriu melancólica. — E digo-lhe mais, avise aqueles em que você confia que se preparem para fugir em breve. Ao menor sinal de problema.
— Os Murray vão tentar resgatar a criança outra vez.
— Pensei que essas coisas não a interessavam.
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— De fato, não. Mas, sendo a velha curiosa que sou, quero ouvir tudo a respeito, apesar de saber que, às vezes, é mais seguro não saber nada.
— Vou lhe fazer apenas uma pergunta e não precisa respondê-la se achar que, de alguma maneira, acabará se expondo ao perigo. Onde fica a masmorra? Enquanto estive no castelo, não fui capaz de localizá-la.
— Há uma espécie de porta secreta numa das paredes do salão principal, debaixo de um escudo enorme. — Eleanor segurou as mãos de Maldie e apertou-as com força. — Cuidado, querida. Tenha muito, muito cuidado. Você é uma moça corajosa, mais corajosa do que qualquer mulher que jamais conheci antes. E conheci inúmeras em minha longa vida. Mas apenas coragem não pode aparar o golpe de uma espada. Mova-se com discrição, mantenha sua linda cabecinha abaixada e não olhe nenhum homem nos olhos.
Dali à uma hora, enquanto se encaminhava para os portões de Dubhlinn, Maldie repetia mentalmente o conselho de Eleanor. Fora um conselho sensato, porém não conseguiria segui-lo. Simplesmente ia contra sua natureza. A boa senhora pedira-lhe para se anular, algo que nunca fizera antes.
Não olhar um homem nos olhos? Pois não hesitaria em cuspir no rosto de um, se esse o merecesse. Manter a cabeça abaixada? Após um breve acesso de vergonha ainda na infância, ao descobrir o ofício da mãe, retraíra-sè, mas logo erguera a cabeça e se recusara a abaixá-la para quem quer que fosse. Na verdade sempre tivera problema para ficar de boca fechada, quando achava que algo precisava ser dito. Eleanor agira com a melhor das intenções ao lhe dar aqueles conselhos, no entanto, só seria capaz de acatar a parte de "mover-se com discrição".
— Por onde você andou minha lindeza?
Ao escutar a voz familiar Maldie estremeceu de repugnância. As mãos sujas e rudes do homem a seguraram no braço, obrigando-a a fitá-lo. Jamais fora o tipo de julgar os outros pela aparência, mas sabia, por triste experiência, que esse sujeito era desprezível por dentro e por fora. Ele havia sido um dos motivos pelos quais abandonara Dubhlinn antes do que pretendera.
— Sou uma herborista. Vou onde me chamam e às vezes a recuperação do doente é demorada.
— Eu me perguntava se você tinha fugido de mim.
— Não fujo de ninguém.
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— Ah, uma moça valente. Gosto de um pouco de fogo nas minhas mulheres.
Maldie quis se desvencilhar, mas e os dedos grossos aumentaram a pressão em seu braço, impedindo-a de mover-se.
— Não tenho tempo de lhe dar atenção agora, senhor. Vim a Dubhlinn para ver se alguém precisa de meus serviços.
— Eu preciso. A mulher de nariz adunco, que interferira na conversa, tentou empurrar o homem para o lado, mas ele permaneceu irredutível. Impaciente, ela lhe deu um empurrão, fazendo-o gritar de dor e largar à presa. Antes de afastar-se, contudo, o brutamontes lhe lançou um olhar venenoso.
— Não creio que seja sensato irritar essa criatura — Maldie murmurou, preocupada com o que poderia vir a acontecer àquela senhora alta e magra.
— George não fará nada comigo a menos que me apanhe sozinha num canto escuro, o que, com certeza, não deixarei acontecer. Ele tem medo do meu marido. — A camponesa estendeu a mão ossuda. — Sou Mary, Sra. Kirkcaldy.
— Por que você está precisando de mim? — indagou Maldie, apertando a mão que lhe fora oferecida.
— Meu filho está doente.
Enquanto caminhavam para a cozinha, Maldie interrogou Mary sobre os sintomas que o garoto apresentava. Provavelmente apenas um resfriado, concluiu satisfeita por não ser nada sério. Tratar da criança lhe proporcionaria uma ótima desculpa para entrar e sair do castelo. Quanto antes localizasse a passagem secreta que conduzia à masmorra, mais depressa libertaria Eric.
O menininho, deitado sobre um colchão numa pequena alcova nos fundos da enorme cozinha, estava agitado. Sabendo que o sono era o melhor remédio para sua indisposição, Maldie apenas o fez tomar um chá de ervas. Em questão de minutos, livre da dor de estômago, o garoto adormeceu. Diante da gratidão de Mary, Maldie jurou a si mesma dar um jeito de mandá-la, e ao filho, para o chalé de Eleanor, onde ambos ficariam a salvo quando os Murray invadissem o castelo.
No fim da tarde, sem que tivesse tido chance de explorar o salão principal, retornou à aldeia, os pensamentos fixos na missão que abraçara. Suas dificuldades seriam imensas e a chance de ser bem-sucedida, mínima. Mas não se curvaria à sensação de fracasso. Não ainda. Não sem tentar tudo ao seu alcance. Preferia morrer a voltar atrás. Não abandonaria Eric à própria sorte, em especial porque já o considerava um irmão. Se Balfour realmente a tinha como informante de Beaton, sem dúvida teria
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alterado os planos de batalha imediatamente após sua fuga, convencido de que fora traído.
Portanto não sabia mais quando, e como, lorde Murray pretendia atacar o castelo. Eleanor afirmara que Beaton não queria Eric morto, ou gravemente ferido. A aldeã também dissera que o senhor de Dubhlinn estava doido. Não teria coragem de deixar o menino nas mãos de um insano.
— Mocinha, eu estava começando a me preocupar com você! — Eleanor exclamou, abrindo a porta do chalé.
— Precisei tratar de um garotinho no castelo e me atrasei. Felizmente não é nada sério, só um resfriado.
— Você tem o dom de curar as pessoas, menina. É um presente de Deus.
— E veja o presente que a mãe agradecida de Thomas me deu.
Maldie sorriu ante o prazer de Eleanor com a simples visão do queijo e da carne de porco salgada.
— Você descobriu alguma coisa a respeito do jovem Murray?
— Continua preso na masmorra, recusando-se a aceitar Beaton como pai.
— Muita gente acha que a doença de lorde Beaton é um castigo de Deus — falou a velha aldeã. — Estranha-me você não ter sido chamada para examiná-lo, principalmente porque depois de experimentar todos os unguentos possíveis, a pele dele dá a impressão de continuar apodrecendo. Com certeza a notícia de que há uma herborista no castelo deve ter se espalhado e acho impossível milorde ainda não tê-la convocado.
— Não, meus serviços nunca foram requisitados pelo senhor de Dubhlinn. Ou ninguém lembrou-se de contar a Beaton sobre mim, ou ele, ao me avistar, decidiu que não sou o que afirmo ser. Esse tipo de problema tem acontecido muito comigo ultimamente — Maldie murmurou, pensando em Balfour.
— Na verdade você parece mesmo uma menina, querida. Pequenina e delicada. E natural às pessoas, às vezes, questionarem a habilidade de alguém tão nova. Afinal, são necessários anos de estudo para se tornar uma herborista competente.
— Sim, eu sei. E ainda tenho muito a aprender. — Maldie levantou-se devagar e se espreguiçou. — Acho que vou me deitar agora. A jornada até aqui foi dura. Sinto-me esgotada.
Para seu espanto, Eleanor levantou-se também e a abraçou com força, o corpo franzino trêmulo de medo.
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— Alguma coisa errada? Por que você está tão assustada?
— Você sempre pareceu adivinhar o que eu sentia mocinha. Como se conseguisse enxergar no fundo do meu coração.
— De fato, sou intuitiva. Não é necessária muita perspicácia para notar o quanto apavorada você está. Qual a razão de tanto medo? Talvez eu possa ajudá-la.
— Tenho medo daquilo que você está a ponto de fazer.
— Não estou entendendo — Maldie retrucou, tensa. Desde o primeiro instante, procurara ser cautelosa, medindo cada passo e cada palavra para não deixar transparecer suas intenções. Ainda assim, Eleanor suspeitara de algo. E se outros também desconfiassem dos verdadeiros motivos que a tinham trazido ao castelo?
— Você não é obrigada a me revelar nada, querida — a aldeã a tranquilizou —, tampouco deve se sentir aflita. Sei que sua presença em Dubhlinn está relacionada ao pobre garoto Murray. Faça o que for necessário para salvá-lo e saiba que nunca a denunciarei. Tudo o que lhe peço é para que tenha muito cuidado.
— Sou sempre cuidadosa — ela retrucou gentilmente.
— Repito minha querida, tenha muito cuidado. E uma situação perigosa. Sofri muito este ano com a perda de meu amado Robert. Por favor, eu não suportaria perdê-la também. Você é como uma filha para mim.
Comovida, Maldie abraçou a velha senhora. Aquecia-lhe a alma saber-se amada por alguém com quem pouco convivera. Criara laços afetivos com Eleanor que jamais partilhara com sua própria mãe. Porque, diferentemente da bela Margaret Kirkcaldy, essa camponesa simples possuía um coração destituído de egoísmo, um coração que, meses atrás, fora capaz de acolher uma moça solitária, faminta e esfarrapada.
Sim, Margaret Kirkcaldy nunca se importara com ninguém, nem mesmo com a própria filha.
Embora fosse uma verdade difícil de aceitar, Maldie obrigou-se a encará-la. Sua mãe não a amara. Uma única coisa a interessara: ser coberta de atenções, elogios e presentes pelos vários amantes.
Sempre houvera em Margaret um ranço de amargura, a semente, sem dúvida, plantada por Beaton. Com a passagem dos anos, quando sua saúde e beleza começaram a se dissipar, os amantes atenciosos foram se transformando em homens rudes, com algumas moedas para gastar num coito rápido e impessoal. Então, a amargura dominara Margaret completamente.
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Agora Maldie começava a se perguntar se não fora instruída a matar Beaton não para vingar a honra da mãe, e sim pela vaidade ferida.
Afastando os pensamentos inquietantes, Maldie beijou Eleanor no rosto e deitou-se. Sua mãe podia ter errado muito depois de rejeitada, porém o principal responsável por sua queda e desgraça continuava sendo lorde Beaton. Se o infame não a tivesse seduzido e afastado da família, Margaret teria, com certeza, se casado com um nobre honrado e gerado filhos legítimos, em vez de ser obrigada a vender o corpo para garantir a sobrevivência.
Parte de si desejava confessar toda a verdade a Eleanor. Precisava de alguém com quem desabafar com quem discutir suas crescentes dúvidas sobre a razão de sua mãe a ter enviado naquela missão de vingança. Também gostaria de falar sobre Eric. Entretanto, embora soubesse que a camponesa iria ouvi-la com simpatia, preferiu guardar silêncio. Se algo saísse errado, se fosse capturada tentando salvar Eric e cumprir a promessa feita à mãe, queria que Eleanor pudesse jurar, com toda a honestidade, desconhecer o que se passava.
Apesar da fadiga extrema, Maldie custou a dormir, convencida de que nada mais seria o mesmo depois daquela noite. Estava determinada a agir no dia seguinte. Só não sabia se sairia vitoriosa, ou se sorveria o fel da derrota.
Capítulo VIII
Dentro da cozinha imensa, o calor beirava o insuportável, o ar, impregnado do cheiro de comida e corpos sem banho, sufocava. Delicadamente, Maldie limpou o suor da testa do garotinho. Esperara achá-lo muito melhor. O pequeno Thomas não corria riscos sérios, contudo, demoraria a se recuperar naquelas condições. Eleanor mostrara-se ansiosa para receber Mary e o menino. Seria a solução perfeita para seu dilema. Manteria mãe e filho em segurança com a desculpa, agora verdadeira, de que seria melhor para a saúde da criança passar algum tempo fora do castelo.
— Ele não vai morrer, vai? — Mary indagou num murmúrio, os olhos marejados. — Thomas é o único filho que me resta. Deus chamou os outros três para o céu. Rezo para que não chame Thomas também.
— Sossegue, o menino não vai morrer. Lamento se minha expressão preocupada a assustou. Você apenas precisa tirá-lo daqui, levá-lo para longe desse calor infernal e desse cheiro enjoativo.
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— Mas para onde posso levá-lo? Passo os dias e as noites inteiras na cozinha.
— Tenho uma amiga na aldeia, viúva recente, chamada Eleanor.
— Sei quem é embora quase não nos falemos.
— Eleanor hospedará vocês até Thomas se recuperar totalmente. É um chalé aconchegante e muito limpo, cercado por um jardim. Seu filho poderá brincar ao ar livre quando não estiver chovendo.
— Seria ótimo e muito gentil da parte de Eleanor nos acolher. Você tem mesmo certeza de que seremos bem-vindos?
— Certeza absoluta. Leve Thomas para lá o mais rápido possível e prometo-lhe que o menino não tardará a ficar bom.
Maldie sorriu quando Mary, imediatamente, tomou a criança no colo e afastou-se, murmurando palavras veementes de agradecimento. A saúde do único filho, sem dúvida, vinha em primeiro lugar, acima de qualquer uma de suas obrigações. Emocionava-a testemunhar tamanha demonstração de amor maternal e, bem no fundo, sentia um pouco de inveja. Mas não adiantava se lamentar pelo que nunca tivera. Devia aprender a controlar a mágoa.
Ao sair da cozinha, Maldie avistou George do lado de fora do salão principal. Nervosa, tentou se esconder numa pequena alcova, sob a escada. Desde sua chegada ao castelo, aquele homem asqueroso a estivera espreitando. Depois de duas longas horas tentando escapar dos avanços indesejáveis, temia perder a cabeça e tomar uma atitude que viesse a se arrepender depois.
— Por que você está se ocultando nas sombras, moça? Praguejando baixo, ela virou-se para encarar o desconhecido alto e simpático que, subitamente, surgira à sua direita.
— Estou me escondendo daquele nojento ensebado. — Ela apontou para George.
— Ah, sim, entendo sua aversão. A propósito, meu nome é Douglas.
— Maldie — Um breve aperto de mãos. — Eu deveria continuar com essa troca de amabilidades e dizer que é um prazer conhecê-lo, mas hoje seria uma mentira. Cheguei a Dubhlinn há menos de quarenta e oito horas e já estou farta dos homens, com seus elogios mentirosos e sorrisos falsos.
— Eu não a elogiei — Douglas retrucou de bom humor. Desarmada, ela acabou rindo.
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— Ah, umas poucas palavras certeiras e lá vai um golpe impiedoso em minha tola vaidade. — Voltando à atenção para George, reclamou: — Será que o patife não tem nenhuma obrigação a cumprir?
— Sim, gritar e desembainhar a espada sempre que nosso lorde se sente ameaçado.
— Ah, o grande senhor de Dubhlinn. Ainda não o vi desde que pus os pés no castelo.
— Milorde não mostra o rosto com frequência. E melhor assim, acho.
— Então ele está mesmo muito doente? Tenho escutado rumores a respeito. Talvez eu possa ajudá-lo. Sou herborista.
— E uma herborista muito competente, segundo ouvi dizer. Porém lorde Beaton não tem cura, moça. Sabemos que não se trata de lepra, mas, a pele dele é pavorosa. Às vezes há uma pequena melhora, contudo as ulcerações sempre reaparecem ainda piores. É como se o infeliz estivesse apodrecendo por dentro. Duvido que vá viver muito. O estranho é que, no início, ninguém pensava que fosse durar tanto.
— Há quanto tempo milorde está doente?
— Três anos.
— Então, talvez, seja apenas uma doença de pele, não algo mais sério. Se ele padecesse de um mal fatal, já estaria morto.
Por um instante Maldie perguntou-se se a súbita sensação de alívio provinha de algum sentimento absurdo que pudesse nutrir por Beaton. Não, decidiu firme. Embora a ideia de matá-lo começasse a desgostá-la, não o via como uma figura paterna, ou como alguém que merecesse respeito. O alívio devia-se, sim, à certeza de que poderia tentar cumprir a promessa feita à mãe. Não estaria matando um moribundo, ou uma criatura frágil demais para se defender.
— Por que a saúde de lorde Beaton a interessa?
— Sou herborista. Você é guerreiro, não? Armas e batalhas não são assuntos que o interessam sempre? Portanto, é natural eu querer saber de coisas ligadas ao meu ofício.
— E verdade. Mas acautele-se, moça. Este não é um bom momento para se fazer muitas perguntas em Dubhlinn. — Douglas apontou para a porta. — Veja seu admirador indesejável já se foi.
Hannah Howell 117 Destinos ao Vento
Quando Maldie deu por si, Douglas também sumira, tão silenciosamente quanto surgira. Apesar de tê-lo considerado um tanto misterioso, não o achaca ameaçador e julgara seu conselho sensato. Outras pessoas poderiam interpretar mal sua curiosidade.
Ao entrar no grande salão, Maldie estancou. Não havia ninguém ali. Com o coração aos pulos, decidiu agir, já ensaiando uma explicação convincente caso fosse surpreendida tentando alcançar a masmorra.
Entretanto, ao empurrar a porá que imaginava conduzir à passagem secreta, alguém saiu de uma alcova escura, surpreendendo-a.
— Ah, a jovem herborista da aldeia _ grunhiu uma voz áspera. — Não creio ter mandado chamá-la para cuidar de meus prisioneiros.
Muito devagar, Maldie virou-se Um homem alto e magro caminhava na sua direção, seguido, de outro ainda mais alto e magro. Não foi difícil concluir que lorde Beaton era aquele que lhe dirigira a palavra.
A descrição feita por sua mãe do nobre que a seduzira provara-se inútil, constatou Maldie. O Beaton atual parecia não guardar nenhuma semelhança com o de vinte anos atrás. A pele retesada e cheia de pústulas tornava-o ainda mais feio e velho, os olhos azuis, havendo perdido o brilho, quase desapareciam sob as pálpebras incidas e avermelhadas. Os cabelos, antes volumosos e castanhos, não passavam agora de esparsos tufos brancos e sujos.
Apenas o corpo de Beaton conservava a força e elegância que sua mãe mencionara. A doença que destruía sua pele ainda não atingira os músculos, o que lhe permitia mover-se com agilidade. Entretanto, talvez Eleanor acertara quando dissera que Beaton parecia estar apodrecendo, sua natureza maligna se manifestando externamente para que todos vissem o que ele era de fato.
— Ouvi falar que o rapazinho lá embaixo precisou ser castigado — ela retrucou, esforçando-se para manter a voz calma, livre do ódio que a fazia ferver por dentro. — Como machucados são comuns nesses casos, pensei em ir lhe oferecer um bálsamo para as feridas.
— Quanta bondade. — Beaton inclinou-se para examiná-la de perto. — Quem é você, moça?
— Maldie Kirkcaldy. — O hálito fétido provocou-lhe ânsias.
— Qual o motivo de sua presença em Dubhlinn?
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— Sou herborista, milorde. Assim como os menestréis, viajo no exercício de minha profissão. Eles acalmam nossos ouvidos e aliviam as dores de nossas almas com suas músicas, enquanto eu alivio as dores físicas com meus unguentos.
— Nunca gostei dos choramingos dos menestréis. Kirkcaldy? Creio já ter ouvido este nome antes. De onde você é?
Maldie cerrou os punhos, lutando para não sucumbir à cólera. O crápula sequer reconhecia o nome do clã da donzela que seduzira e abandonara. Margaret jamais o esquecera, porém Beaton mostrava não ter guardado nenhuma lembrança daquela que lhe dera uma filha.
— Pertenço ao clã Kirkcaldy, de Dundee. — Notando a súbita tensão no rosto do cavaleiro que acompanhava Beaton, Maldie percebeu que a revelação de sua origem provocara repercussão. Recordava-se de sua mãe mencionar um homem alto e magro, que seguia Beaton como uma sombra. Não tinha dúvidas de que era este mesmo, à sua frente, que agora a analisava com redobrada atenção.
Pelo visto não teria muita chance de descobrir o paradeiro de Eric ainda naquele dia, decidiu. Devia apenas concentrar-se em sair do salão viva e, se possível, sem levantar suspeitas sobre suas verdadeiras intenções. Portanto, tornava-se vital não ceder à fúria que poderia levá-la a cometer uma tolice e acabar morta.
— Já estive em Dundee, não, Calum? — Beaton indagou ao cavaleiro, sem tirar os olhos de Maldie. — Anos atrás?
— Sim. Há vinte anos, talvez um pouco mais. Permaneceu na região durante um certo período, milorde.
— Ah. — Beaton sorriu, expondo os dentes podres. — Então você é uma das minhas bastardas?
Não havia razão para negar, em especial porque Calum deixava claro tê-la reconhecido.
— Sim. Sou filha de Margaret Kirkcaldy, uma donzela nobre que você seduziu e abandonou.
— Margaret? Conheci muitas mulheres com esse nome pelo mundo. Quanto mais a observo, moça, mais me lembro de um ou outro detalhe, pois você se parece com sua mãe. Confesso que não são lembranças muita nítidas, porque ainda não conheci uma mulher que mereça algo além de um bom coito e de um adeus apressado.
Maldie precisou lançar mão de todo seu autocontrole para não esbofeteá-lo. Considerando o estado da pele, em carne viva, mesmo um tapa leve lhe causaria terrível
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agonia. Nunca se sentira assim, tão cheia de ira, tão inclinada à violência cega. Porém, um resto de bom senso insistia não valer a pena sucumbir ao ódio. Na presente circunstância, somente ela sairia perdendo num possível confronto com Beaton. Sua mãe quisera o infame morto, e agora descobria-se desejando fazê-lo padecer as dores do inferno, antes de enviá-lo para o além.
— Assim fala um homem que apenas tem o pensamento voltado para os prazeres carnais. Sinal de que lhe falta sabedoria.
Calum ergueu a mão para agredi-la, porém Beaton o impediu de completar o gesto com um simples olhar.
— Você veio até aqui atrás de dinheiro? Quer encher sua bolsa com meu dinheiro só porque temos o mesmo sangue?
— Eu não tocaria no seu dinheiro mesmo se estivesse caída na sarjeta, morrendo de fome. E você não tem dinheiro suficiente em seus cofres para absolvê-lo de todos os seus crimes.
— Engano seu. Pode-se resolver muitos problemas, e vencer a maioria das dificuldades, com dinheiro.
— Não desta vez.
— Não? Sua mãe estava louca para pôr as mãos na minha fortuna, aliás, como qualquer prostituta.
— Minha mãe não era uma prostituta quando você a afastou da família e a destruiu. Você mentiu para ela, enganou-a com promessas que nunca pretendia cumprir e então a abandonou coberta de vergonha e sem um centavo, quando ela não lhe deu o filho que desejava.
Vendo-o balançar a cabeça, os tufos de cabelos imundos cobrindo parcialmente a testa pustulenta, Maldie experimentou um estranho prazer diante da figura sinistra. Não apenas acreditava ser a decomposição física de Beaton o resultado da justiça divina, como tamanha podridão, interior e exterior, a ajudava a manter a distância emocional necessária para considerá-lo não como o pai biológico, e sim um velho de alma negra e corpo infecto. Exceto em espírito, este não era o homem que sua mãe descrevera com tanta frequência, o homem que Margaret Kirkcaldy amara e a quem se entregara.
— Receio ter uma verdade dura para lhe contar, moça — disse Beaton.
— Cuidado — Maldie o advertiu friamente, certa de estar a ponto de explodir. Se o canalha continuasse ofendendo sua mãe, executaria sua vingança a qualquer preço,
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sem se importar em pagar com a própria vida. — Você não tem o direito de menosprezar minha mãe. Não o permitirei desrespeitar a memória dela.
— Você não me permitirá? — Beaton gargalhou. — Você ousa me ameaçar? Meu coração está apertado de medo.
— Você não tem coração. Apenas um homem sem alma trataria minha mãe tão impiedosamente quanto você a tratou.
— Tratei sua mãe como ela merecia. Margaret Kirkcaldy tinha sangue quente e pouco juízo. Não posso ser culpado por suas tolices. Se ela lhe disse não saber que eu era casado, se jurou desconhecer a diferença entre palavras ditas no auge da paixão e a verdade, então a tola lhe mentiu. Nunca lhe ofereci casamento e, mesmo assim, ela abandonou a família para me seguir. Oh, Margaret podia ainda ser virgem quando dormimos juntos pela primeira vez, mas já possuía o instinto de prostituta. Entregou-se a mim sem hesitar em troca de uns poucos presentes e elogios. E adorou ser desvirginada. Raramente me deitei com uma mulher tão ardente, tão sequiosa. — Beaton calou-se por um instante, os olhos fixos em Maldie. — Posso apostar que sua mãe não lamentou minha partida por muito tempo e que logo se envolveu com outros homens. Acredite no que quiser, moça, engula todas as mentiras de sua mãe se isso a faz feliz, mas não venha me culpar por todos os seus problemas. Se tive alguma culpa, foi somente a de mostrar a Margaret o que ela era de fato. Uma prostituta insaciável.
Antes que Beaton terminasse de falar, Maldie já estava com a adaga em posição de ataque, esquecida de que era apenas uma jovem pequenina enfrentando dois cavaleiros armados com espadas. Não importavam mais as consequências. Beaton não continuaria impune, após os insultos à memória de sua mãe. O maldito tentara se eximir de qualquer culpa, responsabilizando apenas Margaret pelas desgraças que lhe aconteceram. Bem no íntimo, Maldie reconhecia estar furiosa porque Beaton pusera em palavras algo que sempre suspeitara e tivera medo de encarar por causa do sentimento de culpa.
Ao se lançar sobre o inimigo, Calum a interceptou, postando-se à frente de seu senhor como um escudo. Beaton, porém, não se mostrou nem um pouco preocupado. Pelo contrário, parecia se divertir com a situação.
— Você tem o meu temperamento, moça — comentou ele, sorridente. — É quase uma pena que não tenha nascido homem.
— Ah, sim, sou mais um fracasso na sua busca desenfreada por um herdeiro. E você sempre culpou suas mulheres por não lhe darem um filho varão, não é? Por que
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nunca lhe passou pela cabeça que, talvez, a culpa seja sua? Talvez sua semente seja fraca demais para produzir um menino.
Conforme esperara, o comentário enfureceu Beaton que, como a maioria dos homens, acreditava ser sinal de fraqueza gerar uma menina.
Certa de que o infame iria agredi-la, Maldie preparou-se para recebê-lo. Evadindo-se dos punhos largos, conseguiu, num movimento rápido, feri-lo no braço e arrancar sangue. Imediatamente Calum a segurou pelos pulsos, imobilizando-a.
— Você acabou de cometer um terrível erro, moça. Um erro fatal — Beaton rosnou, as feições distorcidas de ódio.
— Meu único erro foi não enterrar a adaga em seu coração negro.
— Você mataria o próprio pai?
Não havia choque ou horror no tom de voz deliberadamente cruel, apenas simples curiosidade e alguma admiração. Beaton, sem dúvida, não via nada errado com a ideia de alguém matar o próprio pai.
— Sim. Prometi à minha mãe, em seu leito de morte, fazer com que você não mais escapasse da justiça.
O rosto disforme de Beaton foi iluminado pela sombra de um sorriso.
— Como eu disse, é uma pena você não passar de uma moça.
— Será que sua mente distorcida não consegue pensar em nada além de herdeiros?
— Um homem precisa de um filho.
Maldie sentiu-se invadida por uma profunda sensação de fracasso. Beaton jamais compreenderia a perversidade de seu comportamento, jamais perceberia o quanto profundamente magoava as mulheres que usava e as crianças que rejeitava somente por serem do sexo feminino. E se não estivesse tão doente, com certeza continuaria perseguindo qualquer rabo-de-saia, no afã de gerar um herdeiro macho.
— Então, desesperado por não produzir um herdeiro, apesar de deitar-se com metade das mulheres da Escócia, você acabou roubando um descendente dos Murray. — Ela riu amarga. — Você acha mesmo que o mundo acreditará que o menino é seu filho?
— Sim. O garoto é filho de minha esposa. Ah, agora entendo por que você estava tentando se aproximar do garoto. Você trabalha para os Murray, não? Trair-me fazia parte de seu plano inicial?
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— Quem é você para me chamar de traidora, se em sua vida toda não fez outra coisa senão trair aqueles que o cercam? E se não estivesse tão doente, ainda estaria traindo uma mulher após outra, sem nenhum remorso.
— Você dá muito valor ao que não passa de meros prazeres carnais. O que posso vir a fazer ou não, num futuro próximo, não mais lhe dirá respeito.
— E mesmo? — Maldie indagou um calafrio percorrendo-a de alto a baixo. — Você vai se tornar monge?
— Não. Vou me tornar seu carrasco. Ao entardecer do dia da feira, você será enforcada.
— Você receia que as distrações promovidas pelos menestréis não sejam suficientes para entreter seu clã?
— Veremos se você continuará dando trela a essa língua ferina quando a corda for passada ao redor de seu pescoço alvo. E, considerando sua ansiedade em se encontrar com meu filho Eric, decidi atendê-la. Calum, leve minha pequena assassina bastarda para a masmorra e coloque-a na cela de Eric.
Sem esboçar reação, Maldie deixou-se conduzir pelo corredor estreito e escuro, rezando para que Balfour atacasse Dubhlinn em breve. O dia da feira lhe parecia perfeito para Beaton ser derrotado.
Praguejando por entre os dentes, Douglas escapou do salão principal sem que o vissem. Maldie despertara sua curiosidade e agora sabia por quê. A jovem viera matar Beaton. Quase não acreditara nos próprios olhos quando a vira atacá-lo. Infelizmente não fora capaz de ouvir o diálogo travado entre os dois. A moça tanto podia ter motivos pessoais para querer destruir Beaton, como também estar trabalhando para terceiros, como o senhor de Donncoill, por exemplo.
Não, Douglas decidiu. Balfour jamais enviaria uma mulher numa missão tão perigosa, jamais encarregaria outra pessoa de assassina seu pior inimigo. O instinto dizia-lhe que Balfour precisava ser colocado a par desses últimos acontecimentos.
Ao escapulir de Dubhlinn, Douglas estava convencido de haver mesmo chegado o momento de voltar para casa. Depois que Malcolm fora descoberto e enforcado, a situação no castelo tornara-se tensa e imprevisível. Enquanto tomava o caminho de Donncoill ele pensava que não sossegaria enquanto não imaginasse um meio de libertar a jovem que, valentemente, tentava matar Beaton.
Hannah Howell 123 Destinos ao Vento
— Douglas? — Balfour, que acabara de chegar de uma cavalgada, desmontou imediatamente ao ouvir a informação transmitida por Jantes. — O que Douglas está fazendo aqui? Beaton o desmascarou?
— Ainda não tive chance de conversar com o rapaz — explicou o mestre de armas, acompanhando o chefe na direção do castelo. — Juro Por Deus, o pobre-coitado parece ter vindo correndo de Dubhlinn, tamanha sua exaustão. Mandei-o seguir pára o salão principal e tomar uma bebida, enquanto eu vinha buscá-lo, sir.
— Só espero que, mediante as informações trazidas por Douglas, não sejamos obrigados a cancelar os planos para amanhã.
— Concordo. Nossos planos são bons e têm chance de sucesso. Seria decepcionante adiá-los.
Andando de um lado para o outro, coberto de lama da cabeça aos pés, Douglas mostrava haver enfrentado uma árdua jornada.
— Sente-se — Balfour o instruiu. — Basta fitá-lo para perceber a extensão de seu cansaço.
— Estou mesmo tão cansado, milorde, que receio me sentar e adormecer antes de lhe contar tudo o que preciso.
— Você acha que Beaton desconfiou de sua verdadeira identidade? — perguntou James.
— Creio que não. O maldito agiu depressa ao descobrir quem era Malcolm. Imagino que, se suspeitasse de mim, eu já estaria morto a essa hora.
— Então o que o trouxe a Donncoill com tal urgência? — Balfour insistiu.
— Talvez Beaton não esteja à beira da morte, como é a crença geral — Douglas tornou a servir-se de um copo de cidra, embora continuasse recusando a sentar-se.
— Mas todos afirmam que ele está definhando. Há tempos ouvimos rumores sobre sua morte iminente.
— Oh, sim, eu sei. Tive uma conversa bastante esclarecedora com uma herborista em Dubhlinn. Compreendi que se a doença de Beaton fosse fatal, ele não continuaria vivo após três anos. De acordo com as explicações da moça, trata-se apenas de uma mazela da pele, com períodos alternados de melhora e piora.
— Você falou pessoalmente com a herborista? — indagou Balfour, rígido de tensão.
— Sim, uma jovem muito bonita.
— De cabelos negros e olhos verdes?
Hannah Howell 124 Destinos ao Vento
— Milorde a descreve como se a tivesse visto.
— E a vi. É Maldie Kirkcaldy.
— Lembro-me de ouvi-la dizer somente seu primeiro nome. Ela também me contou estar hospedada na casa de uma viúva idosa, nesta segunda visita a Dubhlinn. É curioso você tê-la conhecido, milorde.
— Maldie Kirkcaldy esteve em Donncoill durante alguns dias e então correu de volta para seu senhor, Beaton.
— O que o leva a pensar que a jovem herborista trabalha para Beaton, sir?
— Ela surgiu do nada e ficou conosco tempo suficiente para descobrir nossos segredos e os relatar a Beaton.
— Você acha que Maldie Kirkcaldy regressou a Dubhlinn para nos trair?
— Sim. Que mais eu poderia pensar?
— Embora milorde tenha chegado à conclusão óbvia, enganou-se. A moça não é aliada de Beaton.
— Como você pode estar tão certo disso? — Balfour lutou para não se encher de esperanças, sabendo que, no seu desespero, agarraria-se a qualquer explicação capaz de eximir Maldie de culpa.
— Oh, tenho certeza absoluta, sir. A linda moça não foi a Dubhlinn para ajudar o velho Beaton e sim para matá-lo.
O assombro de Balfour era tamanho, que, por um instante, o ar lhe fugiu dos pulmões. E o espanto de James não ficava atrás.
— Ela lhe contou o motivo que a levou a Dubhlinn? — perguntou Balfour por fim, ainda não refeito do choque.
— Mais do que isso. Eu a vi tentando cravar uma adaga no coração do canalha com meus próprios olhos.
— Por quê?
— Receio não poder dizer-lhe. Assisti à cena a distância, escondido numa alcova. Sei apenas que após áspera troca de palavras e insultos, algo sobre traições cruéis, a jovem gritou que Beaton não escaparia da justiça e do bem-merecido castigo. No início achei que a herborista estava a serviço de algum inimigo de Beaton, agora acho que é uma questão de vingança pessoal.
— Ela está morta? — Balfour temia escutar a resposta.
— Ainda não.
Hannah Howell 125 Destinos ao Vento
— Maldie Kirkcaldy tentou matar o senhor de Dubhlinn. Por que não foi executada no ato por Beaton, ou um de seus homens?
— A moça será enforcada no dia da feira. Eu tinha esperanças de que pudéssemos fazer alguma coisa para ajudá-la.
— E faremos — declarou Balfour, obrigando-se a conter o impulso de partir para Dubhlinn imediatamente. — Atacaremos o castelo inimigo amanhã. Agora vá tomar um banho e descansar, rapaz.
— Não há muito tempo antes de nossa partida.
— Mas há tempo suficiente para você se alimentar e dormir um pouco.
Quando Douglas retirou-se do salão, Balfour serviu-se de um cálice de vinho forte e sorveu-o até a última gota. Bastava imaginar Maldie subindo os degraus do cadafalso para sentir-se à beira do pânico.
— Esqueci de perguntar a Douglas onde prenderam Maldie — ele murmurou agitado.
— Você se esqueceu de perguntar muitas coisas, porém não se preocupe. Ainda há tempo de levantar todas as informações necessárias. Você agiu certo ao mandar Douglas descansar. O pobre rapaz está tão esgotado, que provavelmente não se lembraria de detalhes importantes sobre Dubhlinn. Ele precisa estar alerta para cavalgar conosco amanhã.
Balfour massageou o pescoço rígido, atordoado com os acontecimentos recentes.
— Receio haver perdido a capacidade de raciocinar no instante em que Douglas nos contou que Beaton pretende enforcar Maldie. Num momento eu a culpava de nos ter traído; no outro, fui informado de que ela será enforcada por tentar matar Beaton. Por que Maldie tentaria matar aquele homem?
— Somente ela o sabe. As razões poderiam ser muitas e não adianta querermos adivinhar o que a levou a tomar essa atitude extremada.
— Temo que eu seja o motivo.
— Não. Você não lhe pediu para ir a Dubhlinn cravar uma faca no coração do canalha.
— É verdade. Mas a acusei de estar me traindo, de trabalhar para Beaton contra nós. Talvez Maldie tenha pensado que essa fosse a única maneira de salvar sua honra, de provar sua inocência.
— Aquela jovem não é nenhuma tola, milorde. Existem muitas maneiras menos arriscadas de provar-se inocente.
Hannah Howell 126 Destinos ao Vento
— Maldie é inteligente, porém humana. A inteligência nem sempre nos impede de agir de modo insensato. Às vezes nos lançamos numa aventura insana sem medir as consequências e sem perceber a extensão dos riscos.
— Talvez. Apenas Maldie pode nos dar as explicações que buscamos. Restam-nos apenas suposições até conversarmos com ela.
— Portanto, é melhor sairmos vitoriosos amanhã. Temos que libertar Eric e livrar Maldie do laço da forca. Peço a Deus para ambos estarem na masmorra de Dubhlinn porque, quando a batalha começar, aquele será o lugar mais seguro do castelo.
Tateando, Maldie perambulou pelo cubículo escuro até seu pé esbarrar num catre. Devagar, sentou-se. Depois de alguns segundos, quando seus olhos se acostumaram à densa penumbra, avistou um vulto.
— Como você está Eric? Os malditos o machucaram muito?
— Como você sabe quem sou? — devolveu o menino, num misto de medo, raiva e curiosidade.
— Acabei de chegar de Donncoill.
— Meus irmãos enviaram uma moça para me ajudar? — Cauteloso Eric sentou-se ao lado de Maldie, no catre imundo. — Não, eles nunca o fariam. Talvez você seja parte de um truque elaborado por Beaton. O canalha planeja usá-la para me convencer a abandonar meu clã.
— Não, não é isso. Beaton apenas achou que eu gostaria de conhecê-lo, antes de ser enforcada amanhã. — Imaginar o amanhã a aterrorizava, porém não cederia ao medo. Aquele rapazinho precisava de alguém que lhe transmitisse calma e força agora, não de uma companheira de cela histérica.
Durante vários segundos, Maldie o estudou. Eric era, de fato, bonito. Os cabelos claros emolduravam um rosto ainda de traços infantis, mas onde já se adivinhavam as linhas da beleza máscula. Os olhos, também claros, em nada lembravam os dos Murray. Na verdade, Eric não se parecia com nenhum dos irmãos, tampouco com Beaton. Portanto, deveria ter herdado as características físicas da mãe. Se constatasse a existência do sinal em seu ombro, não teria dúvidas sobre a identidade do pai do garoto. Só não sabia se deveria informar-lhe da triste realidade.
— Por que irão enforcá-la?
— Porque tentei matar Beaton.
— Por quê?
Hannah Howell 127 Destinos ao Vento
— Prometi à minha mãe moribunda. Ela me fez jurar encontrar Beaton e matá-lo para vingá-la. O crápula a seduziu e depois a abandonou sem um centavo, com uma criança recém-nascida para sustentar.
— Você é filha de Beaton?
— Sim, mais uma de suas inúmeras filhas rejeitadas. Ah, vejo que o choquei — Maldie murmurou, percebendo o assombro do menino. — Sei que a idéia de matar o próprio pai soa mesmo chocante, mas, eu nunca havia visto aquele homem até hoje e, naturalmente, não lhe dedico nenhuma afeição. Beaton é um completo estranho para mim, embora uma vozinha interior insista em dizer que foi sua semente que me gerou.
— Sim, é pavoroso imaginar uma filha tentando matar o próprio pai, mas não foi o que mais me chocou. O que me horrorizou foi sua mãe ter lhe pedido para cometer tal pecado.
— Beaton desonrou minha mãe, uma donzela nobre e casta. Cresci escutando as histórias de como ele a atirou na lama.
— Entendo, mas cabia a ela vingar-se do crime do qual se julgava vítima. Sua mãe jamais deveria tê-la feito jurar matar seu próprio pai. Desculpe-me se minha opinião não lhe agrada, porém é assim que penso. Para mergulhar a alma da filha num pecado mortal, sua mãe, com certeza, havia se transformado numa mulher muito amarga.
— Realmente — Maldie concordou, entristecida porque as palavras do garoto expressavam a verdade nua e crua. — Desde minha infância, ela não parava de falar que cabia a mim limpar seu nome, lavar sua honra.
— Ela a criou para matar Beaton?
A pergunta a atingiu como um raio. Eric não estava sendo desrespeitoso. Apenas exprimia-se com a sinceridade típica de quem possui um caráter puro e correio.
O menino tinha razão. Com uma simples pergunta, ele expusera o que sempre tentara não enxergar. Agora, encarcerada na masmorra de Dubhlinn, aguardando a hora de sua execução, já não tinha forças para ignorar a verdade. Desde o dia de seu nascimento, sua mãe a criara para empunhar a espada da justiça e desempenhar o papel de vingadora, papel que Margaret Kirkcaldy, covardemente, preferira não interpretar. Sua mãe jamais considerara as consequências de sua atitude egoísta, jamais pensara nos perigos aos quais a única filha seria submetida. Não, não continuaria se iludindo, procurando justificativas para o que sabia estar errado. Consumida pelo ódio por Beaton, sua mãe não se incomodara com o que pudesse vir a lhe acontecer, desde que
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Beaton fosse punido. Se a filha falhasse e morresse, ou se consumasse a vingança e carregasse na alma, por toda a eternidade, a mancha de ter matado o próprio pai, não importaria a mínima para aquela mulher.
— Sim — Maldie admitiu tão angustiada que sequer conseguia chorar. — Ela me criou para matar Beaton.
— Sinto muito. — Eric tocou-a de leve no ombro, oferecendo-lhe consolo. — Eu não queria falar de coisas que a ferissem.
— Você não me feriu, rapaz. Minha mãe sim. Estou cansada demais, e perto demais da morte, para continuar mentindo a mim mesma. No fundo do coração, eu sempre soube a verdade. Apenas decidi ignorá-la. Talvez eu tenha levado adiante a missão de matar Beaton porque não me conformava de ter sido deixada sozinha com minha mãe. Talvez eu quisesse culpá-lo por ela ser quem era. E, também, ele é um homem que merece morrer — Maldie completou baixinho.
— Você lutou com todas as suas forças, não? — O menino sorriu, apontando para os rasgos do vestido.
— Infelizmente não o bastante.
Maldie percebeu o momento exato em que o sinal em seu ombro, visível sob o tecido rasgado, tornou-se evidente. Eric ficou rígido, o rosto transtornado. Para alguém tão inteligente, as implicações eram óbvias.
— Você também tem um desses, não? — ela indagou compreensiva.
— Sim. Pensei tê-lo herdado de minha mãe. — O tom áspero mostrava que o rapazinho não aceitaria a verdade facilmente. E que pessoa, em sã consciência, desejaria se descobrir filho de um demônio feito Beaton, depois de passar anos acreditando pertencer a uma família amorosa e gentil?
— Sinto muito — disse Maldie, mal contendo as lágrimas.
— Eu preferia ser um Murray — Eric murmurou a voz trêmula e abafada.
— Você pode continuar a ser. Ninguém precisa saber disso. Uma única pessoa viu minha marca e a achou vagamente familiar, embora não se lembre onde viu outra igual. Há uma boa chance de guardarmos segredo. Em especial porque essa pessoa não conhece minha verdadeira identidade.
— E essa pessoa seria meu irmão Nigel?
— Não, Balfour. — Reparando na expressão surpresa do menino, Maldie apressou-se a acrescentar: — Ele é um homem bonito, sabia?
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— Oh, sim, eu sei. Porém Nigel é quem sempre conquistou todas as mulheres. — Eric suspirou fundo e cobriu o rosto com as mãos. — Claro que nenhum dos dois é mais meu irmão.
— Não de sangue. Talvez ainda seja cedo demais para nos divertirmos com as ironias do destino, mas Beaton pensa ter sequestrado o filho bastardo da esposa, e se prepara para forçar o mundo a engolir uma mentira, quando, na verdade, apenas recuperou a única criança legítima que jamais gerou.
— Sim, é cedo demais para nos divertirmos com essa triste ironia. Não quero ser filho de Beaton. Aquele cão raivoso tem como objetivo me transformar na sua imagem e semelhança.
— Você nunca será igual a ele.
— Quem pode afirmá-lo com certeza? Se o maldito me obrigar a assistir à morte de outro homem, como me forçou a assistir à de Malcolm, posso acabar me transformando num monstro.
Horrorizada, Maldie passou um braço ao redor dos ombros do garoto. Soubera que Malcolm fora torturado com requintes de sadismo, e imaginar Eric assistindo à cena cortava-lhe o coração. Somente alguém com a alma deformada imporia tal coisa a uma criança.
— Devo contar a verdade a Balfour e Nigel.
— Como lhe disse, não é imperativo que o faça. — Respeitava a honestidade de Eric, mas perguntava-se se ele compreendia a extensão do sofrimento que causaria a si e aos outros.
— Realmente tenho que lhes contar. Eu não poderia fitá-los nos olhos se escondesse esse segredo. Quisera poder mandar-lhes uma mensagem agora, antes que arrisquem suas vidas tentando me resgatar. Não é justo um Murray, e seus aliados morrerem tentando salvar a mim, um Beaton, das mãos do próprio pai.
— Nada os faria desistir de salvá-lo, mesmo que o ódio entre os dois clãs tenha atravessado décadas.
— Ninguém nunca deveria se arrepender de falar a verdade — insistiu Eric, apesar de perceber alguma dúvida no tom de Maldie.
— Sim, porém às vezes a verdade fere os outros. Sua sinceridade é admirável. Logo você aprenderá que nem todo o mundo quer ouvir a verdade. Algumas pessoas ficam irritadas ao escutá-la, outras, magoadas. Às vezes o melhor é contar partes da
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verdade. Bem, sei que não parece muito consolador no momento, mas se os Murray o rejeitarem, você ainda terá a mim. Somos irmãos.
— Isto ajudaria muito, se você não estivesse à beira da morte. Oh, Deus — Eric exclamou, agarrando as mãos de Maldie. — Desculpe-me, falei sem pensar. Eu nunca deveria ter dito algo tão cruel.
— Não se aflija. Não planejo morrer na forca armada por Beaton.
— Você tem um plano para escapar?
— Eu tinha, até ser trancafiada aqui dentro. Agora precisarei elaborar um novo.
— Não quero soar pretensioso, mas se houvesse uma maneira de escapar da masmorra, eu já a teria descoberto.
— Talvez. Contudo essa não seria a primeira vez que eu conseguiria fugir de um lugar fortemente guardado. Afinal, escapei de Donncoill em circunstâncias semelhantes.
— Eu poderia perguntar por que meu irmão Balfour a trancou num quarto e colocou um guarda vigiando-a?
— Sim, poderia.
— E você poderia não responder, não é? — devolveu Eric, com um breve sorriso. — Apenas me responda então. Quem é você?
— Maldie Kirkcaldy — disse Beaton, aparecendo de repente do outro lado das barras de ferro. — Que cena tocante. O filho bastardo de minha esposa e minha filha bastarda unidos contra mim. Pois será uma amizade curta.
— Você não pode enforcá-la. — Eric postou-se à frente de Maldie, como se quisesse protegê-la com o próprio corpo.
— Posso sim, garoto.
— Ela é apenas uma moça.
— Capaz de manejar uma adaga afiada. A infeliz tentou me matar, garoto. Tentou matar o próprio pai. Até a Igreja aprovaria esse enforcamento.
— Como se você se importasse com a opinião da Igreja — Maldie retrucou, saindo de trás de Eric. — Você deveria ter sido excomungado anos atrás.
— Não se preocupe com minha alma, filha. Fiz penitências e confessei todos os meus pecados.
— Acho que isto não bastará para sua salvação, porque você é o tipo que merece sofrer as torturas do inferno.
— Você as estará experimentando antes de mim. Para quem quase cometeu o pecado mortal de matar o próprio pai, a absolvição, dada por um sacerdote, é a única
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coisa capaz de salvá-la do fogo do inferno. É uma pena não existir um padre em Dubhlinn para ouvi-la.
— Não se esqueça de que o estarei aguardando no inferno. Aguardando-o ansiosamente para fazê-lo pagar por todos os seus crimes.
— Você tem que arrumar um padre para Maldie, Beaton — interveio Eric. — Ela é sangue do seu sangue.
— Sim, e muito parecida comigo, apesar de não querer admiti-lo. Mas, a pequena Maldie ainda precisa de muito treinamento para chegar ao meu nível. Afinal, eu não falhei quando fui atrás de meu pai.
— Ele matou o próprio pai — Eric explicou a Maldie, quando Beaton se retirou.
— Era o que eu imaginava, considerando a maneira tranquila como encarou o meu ataque.
— Deus, como odeio aquele homem. Como abomino a idéia de ser seu filho. O estranho é que continuo me sentindo um Murray, não um Beaton.
— Assim como me sinto uma Kirkcaldy. Não se angustie, rapaz. Agradeça aos céus por não haver sido criado por Beaton. Os Murray o educaram bem e você será um bom chefe para esse clã, após a morte de Beaton.
— Não sei se me tornarei senhor de Dubhlinn. Sou filho legítimo de Beaton, porém todos aqui me consideram apenas o filho bastardo de minha mãe. E agora não sou sequer um Murray. Não tenho família, nem amigos.
— Nunca se esqueça de que você tem a mim. E também a família de sua mãe. Embora muitos não o têm como o filho legítimo de Beaton, ninguém jamais negou que você é o único filho de sua mãe.
— Estou confuso. Sempre fui um Murray e não sei se saberei deixar de ser.
— Você sempre terá algo dos Murray entranhado em sua pele e em sua alma. Por que a preocupação?
— Tenho medo de que não me aceitem mais, quando souberem da minha verdadeira origem. Preciso falar o quanto antes com Balfour e Nigel. Preciso pôr um fim a essa agonia.
— Tenha fé em sua nova irmã, rapaz. Sei de um ou dois truques que nos ajudarão a sair daqui.
— Posso ajudá-la?
— Sim. Reze para que eu consiga elaborar um plano inteligente e para que seus irmãos decidam vir resgatá-lo em breve.
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Capítulo IX
A feira em Dubhlinn atrai uma multidão considerável — comentou Balfour, ajustando a espada sob a capa enquanto caminhava pelas ruas estreitas e movimentadas.
Eles haviam partido de Donncoill antes do amanhecer, a jornada dura não havendo diminuído em nada o entusiasmo pela batalha próxima. Todos estavam ansiosos para fazer Beaton pagar pela humilhação que lhes fora imposta semanas atrás. Nigel, comandando um grande grupo, aguardava no alto da colina pelo sinal de ataque. Outro bando já se misturara aos aldeões e se dirigia aos portões do castelo.
— Sim — Douglas concordou. — A produção dos campos e pastos de Dubhlinn costuma ser farta.
— No entanto as pessoas parecem famintas e infelizes.
— Porque o canalha não partilha o que arrecada com sua gente. — Douglas apontou para uma senhora idosa, acompanhada de uma mulher mais nova e de um menino. — Aquela é a viúva que acolheu Maldie. Não creio que irá lamentar a morte de seu lorde por muito tempo. Afinal, foram soldados de Beaton quem mataram seu marido aleijado.
— Talvez não devêssemos falar sobre a morte iminente de Beaton tão livremente — murmurou James, cauteloso.
— De fato. É melhor seguirmos em frente, até a entrada do castelo. Você pode ver se nossos homens já se aproximaram dos portões?
— Não — James retrucou, sorrindo satisfeito. — O que é bom sinal. Porque se não conseguimos distingui-los no meio da multidão, tampouco nossos inimigos o conseguem.
— Claro. — Balfour riu e balançou a cabeça. — Estou tão nervoso quanto um pajem na sua primeira batalha. — De repente, ele parou o corpo inteiro rígido. Logo adiante, nos limites da aldeia, erguia-se o cadafalso. Se fracassassem em sua investida contra Dubhlinn, Maldie não tardaria a subir aqueles degraus.
Desde o momento em que Douglas lhe falara sobre o destino reservado à herborista, passara a ser torturado por pensamentos terríveis. Seria o culpado por ela haver tentado matar Beaton? Seria o responsável indireto pela tragédia que se abatera sobre a jovem? Nada do que James e Nigel lhe tinham dito aplacara esse medo. Ninguém, até o momento, fora capaz de sugerir uma explicação razoável para a atitude de Maldie, exceto o desejo de provar a própria inocência. Balfour sabia estar fazendo
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tudo ao seu alcance para livrá-la das garras de Beaton. A culpa continuava consumindo-o. Somente o perdão de Maldie lhe daria paz.
— Vamos — James o puxou pelo braço —, a moça não será enforcada se mantivermos a calma e obedecermos ao nosso plano. Ao fim deste dia, a teremos ao nosso lado, sã e salva.
— Como você pode ter tanta certeza? Por acaso desenvolveu o dom da premonição? — Apesar de saber que James não merecia seu sarcasmo, o pavor do fracasso e angústia de perder aquela a quem amava o estavam deixando de péssimo humor.
— Não — devolveu o mestre de armas, muito calmo. — Apenas conheço Maldie. Embora nobre de nascimento, ela é ardilosa como uma camponesa e saberá se manter em segurança.
— Aquela senhora está nos observando — sussurrou Douglas.
— Qual senhora? — interrogou-o Balfour.
— A tal Eleanor, que acolheu Maldie em seu chalé.
— Você acha que Maldie lhe contou alguma coisa?
— Talvez. Para que a pobre aldeã buscasse um lugar onde se esconder durante a batalha.
— Você acredita que a velha camponesa soará o alarme?
— Duvido — afirmou Douglas, enfático. — Afinal, foram os mercenários de Beaton os causadores de sua viuvez. E Beaton nunca fez nada para garantir a segurança e felicidade de seu povo. Portanto, é natural que não mereça lealdade.
— Podemos começar o ataque, milorde — o mestre de armas murmurou quando, finalmente, chegaram aos portões do castelo.
— Nossos homens já estão reunidos?
— Sim Todos aqueles necessários para garantir que os portões não sejam fechados antes que consigamos entrar. Devemos atacar em silêncio, ou rugindo?
— Oh vamos gritar bem alto, James. Quero que Beaton ouça a morte se aproximando.
Arrancando a capa, Balfour desembainhou a espada enquanto lançava para o alto o grito de batalha de seu clã. Ao avistar um número expressivo dos seus já infiltrados no pátio interno ele experimentou, pela primeira vez, o gosto doce da vitória. Porém, se não salvasse Eric e Maldie, nenhuma vitória valeria a pena.
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Maldie observou o sentinela postado do lado de fora da cela disfarçadamente. Apesar do olhar faminto, o infame não ousaria tocá-la. Nenhum homem em Dubhlinn se atreveria a encostar um dedo na filha de Beaton, mesmo estando ela condenada a morrer dali a poucas horas. Àquela altura, Eleanor também já saberia do destino que a aguardava. Só esperava que a boa mulher não cometesse uma tolice, arriscando-se para tentar salvá-la.
Cheia de ternura, Maldie fitou Eric, que cochilava no catre imundo. Os dois haviam conversado durante toda a noite, até que a simples exaustão os obrigara a calarem-se. O menino continuava arrasado, incapaz de se aceitar como um Beaton E também tinha medo de como aqueles que sempre considerava seus irmãos passariam a tratá-lo. Infelizmente não havia nada que pudesse fazer para ajudá-lo a superar a dor e o medo, mas, pelo menos, sentia que o rapazinho a via agora como uma verdadeira irmã.
Eric mostrara possuir todas as qualidades que o povo de Donncoill não se cansava de decantar. Inteligência, generosidade, sabedoria apesar dos poucos anos. Orgulhava-se de tê-lo como irmão e rezava para que Balfour e Nigel também pensassem assim.
Tais preocupações tornavam-se secundárias ante a necessidade urgente de escapar de Dubhlinn. Por não conseguir elaborar um plano novo, decidira usar o mesmo estratagema do qual se valera para fugir de Donncoill. E resolvera não deixar Eric ciente de suas intenções, para que o menino agisse com mais naturalidade.
Inspirando fundo, Maldie colocou as mãos sobre a barriga e começou a gemer alto e se contorcer. No mesmo instante Eric acordou o rosto pálido demonstrando preocupação.
— O que está acontecendo com a moça? — perguntou o guarda, encostando-se nas grades.
— Não sei — o menino retrucou, aflito. — Maldie, você está sentindo alguma dor? O que há de errado?
— Estou no meu período mensal. Preciso da ajuda de uma serva.
Corando furiosamente, Eric virou-se para o sentinela.
— Você tem que trazer uma mulher para ajudá-la.
— Por quê? — devolveu o grandalhão, dando um passo atrás como se Maldie fosse transmissora da peste.
— Porque ela está sentindo muita dor, idiota. Porque pode morrer se não a ajudarmos.
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— Que importância tem? Afinal, a moça estará subindo os degraus do cadafalso em questão de horas.
Maldie praguejou baixinho. Não considerara essa complicação. Em Donncoill, ninguém quisera realmente feri-la e fora fácil obter auxílio. Ali, todos sabiam de seu enforcamento iminente e as necessidades de uma condenada não seriam levadas em consideração.
— Creio que Beaton irá querê-la respirando, quando a enforcar — disse Eric, num tom firme e decidido. — Se você não se mexer para ajudá-la, vai roubar de seu senhor o prazer de vê-la espernear até o fim. Portanto, mexa-se. Traga uma mulher para ajudá-la.
Momentos depois do guarda se afastar, Maldie sentou-se no catre e fitou o menino, que a olhava cheio de aflição.
— Não estou doente — tranquilizou-o depressa, sabendo que não deveria desperdiçar minutos preciosos com explicações demoradas. — Foi assim que escapei de Donncoill. Ele trará uma criada e, ao destrancar a cela, estaremos prontos para atacá-lo.
— Mas seremos dois contra dois. O guarda é grande e forte, enquanto você e eu não somos muito altos.
— Seremos nós dois contra ele. A serva não fará nada. Apenas teremos que impedi-la de escapulir e soar o alarme.
— Entendo.
— Ótimo, porque o sentinela está voltando.
Na verdade, Maldie desejava ter tido tempo suficiente para elaborar um plano mais detalhado. Nenhum dos dois sabia, realmente, como o outro agiria. Seria preciso uma boa dose de sorte para ganharem a liberdade. Inspirando fundo, retomou a encenação das dores excruciantes. Eric era um rapazinho inteligente, o que ficara provado durante as horas passadas juntos. Confiaria nos instintos do menino.
A porta foi aberta e Maldie escutou os passos leves da serva. Então, o grito do guarda. Sem perder um segundo, levantou-se e, aproveitando-se da distração da moça, atingiu-a no queixo com um soco, exatamente como fizera com Jennie. E, exatamente como acontecera com Jennie, a jovem desabou no chão, inconsciente.
Eric agarrara-se às costas do homem como uma criança tenaz, os braços esguios apertados ao redor do pescoço largo, as pernas longas o cingindo pela cintura. O guarda, empenhado em se livrar do incomodo, jogava-se contra as barras de ferro
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violentamente, tentando ferir quem o segurava por trás. A palidez de Eric deixava claro que não resistiria muito mais ao ataque.
Reunindo todas as suas forças, Maldie esmurrou o brutamontes no queixo, enquanto Eric aumentava a pressão no pescoço dilatado. Ofegante, o guarda vacilou e Maldie tornou a atingi-lo no queixo. Desta vez, o soco surtiu o efeito desejado. Ao cair, a cabeça do homem bateu no chão de pedra com um estrondo.
— Você está bem? — ela perguntou ansiosa, correndo para o lado do menino.
— Não tem uma única parte do meu corpo que não esteja doendo, mas vai passar — ele retrucou, massageando os braços terrivelmente arranhados. — Um pouco de água para limpar os ferimentos ajudaria.
— É verdade, porém receio que isso terá que esperar. — Devagar, Maldie flexionou os dedos doloridos da mão direita. Logo estaria cheia de hematomas, mas pelo menos não fraturara nenhum osso. — Foi um adversário difícil de ser abatido.
— Você acha que ele está morto? Ao cair, bateu a cabeça com muita força no chão.
Devagar, Maldie aproximou-se do vulto inerte e checou os sinais vitais. A pulsação continuava forte e ritmada.
— Ele está bem, não se preocupe. Agora venha, é melhor não perdermos mais um minuto.
Movimentando-se com dificuldade, pois cada músculo do corpo protestava, Eric saiu da cela.
— Nós vamos trancar esses dois?
— Claro — respondeu Maldie, fechando a porta da cela e atirando a chave enorme para longe. — Não podemos ter certeza sobre quanto tempo nossos amigos ficarão descansando. Eu só queria que existisse um outro caminho para fugirmos daqui — murmurou, aproximando-se dos degraus de pedra que conduziam ao salão principal.
— Provavelmente existe uma passagem secreta conhecida apenas por Beaton — deduziu Eric, tomando a dianteira. — Alguém com tantos inimigos precisa de uma saída alternativa de fuga. Pena que não tive oportunidade de descobri-la e agora seremos obrigados a nos arriscar seguindo esse caminho.
De súbito, o menino estancou os olhos arregalados.
— Alguma coisa errada? — Maldie subiu os últimos degraus às pressas, o coração a ponto de sair pela boca.
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— Acho que não temos mais que nos preocupar sobre quem poderá estar à nossa espera do outro lado desta porta — murmurou Eric, tenso.
Os sons vindos do salão principal não deixavam dúvida quanto à sua natureza. Embora abafados, o clangor das espadas e os gemidos dos feridos eram facilmente reconhecíveis.
— Está havendo uma batalha no interior do castelo. Você acha que é Balfour?
— É melhor rezarmos para que seja porque, se forem outros inimigos de Beaton, continuaremos correndo perigo. — Cuidadosamente, Maldie empurrou a pesada porta de madeira e espiou no interior do salão. Não havia ninguém ali, apesar dos ruídos se tornarem ainda mais nítidos. Sem dúvida a batalha acontecia num local próximo. Então, ela escutou um brado de guerra e sua alma se encheu de alegria. Pela expressão de Eric, estava claro que ele também reconhecera o grito exuberante dos Murray.
Poucas horas atrás, sugerira ao menino rezar para que ambos conseguissem escapar da cela e para que Balfour escolhesse atacar naquele mesmo dia. Lembrava-se de haver feito a sugestão num tom quase de brincadeira, tão desesperançada se sentia. Deus ouvira suas preces e o destino lhes sorrira com benevolência. Naturalmente ainda não era o momento de se deixar embalar pela certeza do sucesso, de se julgar em segurança, pois permaneciam no interior do castelo. Sem dúvida Balfour possuía chances consideráveis de conquistar a vitória depois de haver transposto as muralhas de Dubhlinn, porém os inimigos os cercavam por todos os lados. Só estariam verdadeiramente a salvo quando alcançassem o acampamento dos Murray.
— É Balfour. Os Murray conseguiram cruzar as muralhas desta vez. A vitória está assegurada. Estamos livres! — Exultou Eric, rindo e abraçando Maldie.
— Creio que eu deveria pedir a você para rezar com mais frequência — ela brincou, retribuindo o sorriso. Então, segurou-o pelo braço, impedindo-o de avançar pelo salão deserto.
— Mas são os Murray lá fora, no pátio interno. Estamos seguros agora.
— Só estaremos seguros se não nos depararmos com alguém desesperado, lutando para salvar a própria pele. Precisamos avançar com prudência porque não sabemos o que, ou quem, se encontra entre nós e a liberdade.
— Todos sempre falavam que você era uma moça inteligente — rosnou uma voz desagradável.
Sentindo o sangue gelar nas veias, Maldie virou-se para encarar George que, de espada em punho, postava-se como um obstáculo entre Eric e a salvação.
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— Parece que eu deveria lhe dar ouvidos com mais frequência — sussurrou o rapazinho. — E evidente que você costuma acertar em seus prognósticos.
— Bem, desta vez eu realmente queria ter me enganado.
— Ah, George — disse Maldie, obrigando-se a sorrir. — Então você veio se render a nós?
— Render-me? — gritou o grosseirão, aproximando-se a passos largos. — Vim matá-la, sua bruxa de cabelos negros. É tudo culpa sua!
— Culpa minha? Como é possível um absurdo desses? Sou uma simples mulher. Não posso comandar um exército.
— Não? Você chegou a Dubhlinn e, pela primeira vez em treze longos anos, os Murray atravessaram nossos portões. Tudo parece muito claro para mim. A culpa é sua!
Maldie rezou para conseguir prender a atenção do mercenário durante algum tempo, permitindo, assim, que Eric se afastasse devagar. Enquanto fosse capaz de conservar o interesse de George, de fazê-lo falar, o menino teria chance de tomar uma atitude, antes que acabassem mortos. Embora não estivesse certa do que um garoto poderia contra alguém do tamanho de George, estava disposta a dar a Eric a oportunidade de agir. E se realmente tivessem sorte, um Murray entraria ali a qualquer instante e os salvaria.
— Ora, vamos, George, não creio que você esteja enxergando as coisas com clareza — Maldie continuou notando que Eric se acercava das armas expostas na parede. — Eu já estive aqui antes e, se você se recorda, os Murray foram vencidos, mandados de volta para Donncoill com o rabo entre as pernas. Se eu estivesse mesmo por trás do ataque de hoje, por que não ajudei os Murray antes?
Por um segundo George pareceu hesitar, mas logo voltou à carga.
— Não. Você está tentando me iludir, me enganar. Você não estava em Dubhlinn quando os Murray foram derrotados. Sei muito bem porque foi na época em que sequestraram o garoto. Você não estava aqui, porque lembro-me de ter passado o dia inteiro procurando-a. Todos a quem perguntei, falaram-me da sua partida. Você havia ido ajudar os Murray.
Um gemido de surpresa escapou dos lábios de Maldie quando George, subitamente, avançou a espada erguida, pronto para desferir o golpe fatal. Desesperada, Maldie correu mesmo sabendo não ser a coisa mais inteligente a fazer. Afinal, sem ter uma arma, logo esgotaria todos os recursos para se defender. Mesas, cadeiras, bancos,
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de tudo ela se valeu na ânsia de colocar um obstáculo entre si e o brutamontes. Eric continuava se esforçando para arrancar uma arma qualquer da parede e Maldie procurava, febrilmente, ganhar tempo.
Subindo numa mesa estreita e alta, observou George parar à sua frente, os olhos esbugalhados de ódio, a respiração arquejante. Embora a mesa oferecesse quase nenhuma estabilidade, não via outra alternativa a não ser equilibrar-se até recuperar o fôlego. Se ficasse atenta aos movimentos do infame, talvez evitasse ser atingida pela ponta da espada. Pelo menos durante alguns minutos.
— Você deveria estar lá fora com os outros, lutando para salvar Dubhlinn, e não aqui dentro, perseguindo uma moça e um menino.
— Não estou interessado no menino. Ele é descendente de Beaton. E se um dos parentes de Beaton não o matar para impedi-lo de herdar Dubhlinn, um dos Murray o fará, tão logo descobrir de quem o garoto realmente é filho. Essa batalha já estava ganha assim que os Murray cruzaram os portões do castelo. Permanecerei aqui apenas para dar cabo de você e então irei à procura de terras mais seguras.
Maldie levou algum tempo para compreender as implicações do que George acabara de dizer.
— Você sabe que Eric é filho legítimo de Beaton?
— Sim. Ele carrega o sinal nas costas.
— Como você poderia saber? Por acaso foi sua parteira, ou ama de leite? — Imediatamente Maldie arrependeu-se do comentário malcriado. Não era sensato insultar quem empunhava uma espada.
— Fui um dos encarregados de abandonar o recém-nascido ao pé da colina, para morrer. Eu conhecia a marca dos Beaton e fiquei curioso para ver se o garoto possuía uma também.
— Porém Beaton desconhecia a verdade.
— Sim, aquele tolo. O infeliz estava tão furioso, que sequer olhou para a criança. Ao descobrir que a esposa vagabunda o traíra com o velho lorde Murray, Beaton ficou cego de ódio e recusou-se a enxergar a verdade. Até recentemente, ninguém aqui ousava tocar no nome do menino, para não ser morto. Apenas a mãe da criança, e talvez a parteira, conheciam a verdade. Porém Beaton tomou as providências necessárias para que nenhuma das duas vivesse muito para espalhá-la.
— De que adiantou você saber a verdade durante todos esses anos, se a guardou para si?
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— Eu estava esperando que aquele canalha do Calum perdesse sua predileção junto de Beaton para, então, usando meus conhecimentos, assumir seu lugar. Agora, já não importa. É inútil. Calum e Beaton não tardarão a morrer e eu colocarei minha espada a serviço de quem pagar mais. Tive uma vida boa em Dubhlinn e você a roubou de mim, vadia!
George brandiu a espada no ar e Maldie, por um triz, não teve os tornozelos cortados. Enquanto o canalha se preparava para desferir novo golpe, ela tomou a única atitude possível: chutou-o no rosto. Pego de surpresa, ele gritou e levou as mãos à boca que sangrava, deixando cair à espada. Aproveitando-se da distração de seu agressor, Maldie tornou a atingi-lo em cheio nas faces, arrancando alguns dentes podres.
Antes de desabar no chão, George olhou para o próprio peito, a expressão horrorizada deixando claro não acreditar no que via. Seguindo o olhar do mercenário, Maldie notou a ponta protuberante de uma lâmina. Atrás do homem, estava Eric, pálido, rígido, segurando o cabo ensanguentado da espada com ambas as mãos.
— Oh, querido — disse Maldie, pulando da mesa e tirando a arma do menino.
— Ele ia matá-la — Eric murmurou trêmulo, limpando o suor da testa com a manga da túnica.
— Com certeza. Ponha isto na cabeça e você não sofrerá por ter assassinado alguém. — Gentilmente, ela começou a conduzi-la na direção da porta, desejosa de escapar do salão antes que qualquer outra pessoa surgisse.
— Não vou sofrer por matar um inimigo. Serei consagrado cavaleiro quando completar vinte e um anos. Acho que todos os cavaleiros matam um inimigo de vez em quando.
Maldie alegrou-se por ouvi-lo falar assim, embora o garoto ainda parecesse abalado. Entretanto, não tinha dúvidas de que Eric superaria o trauma de haver matado um homem antes mesmo de iniciar o treinamento para pajem. Contudo, não houvera escolha. Com certeza George decidira-se matá-la ao perceber que tudo ao seu redor desmoronava. Sem Eric, ela estaria morta agora.
— Beaton assassinou minha mãe — o garoto falou pausadamente.
— De acordo com George, sim. — Prudente Maldie avançava devagar rumo ao pátio interno, atenta à possibilidade de serem interceptados no meio do caminho.
— E foi George quem me largou ao pé da colina.
— Sim, seguindo ordens de Beaton — ela concordou ciente de que Eric apenas enumerava em voz alta os motivos pelos quais o mercenário merecera morrer. Motivos
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que justificariam o fato de ter feito justiça com as próprias mãos. — E George o abandonou mesmo sabendo que você era, realmente, herdeiro legítimo de Beaton.
No pátio, os dois se depararam com uma luta sangrenta. Apesar da óbvia supremacia dos Murray, o combate intenso não permitia que se enxergasse uma rota até os portões. Praguejando, Maldie constatou que o mais seguro seria permanecer onde estavam, até que a luta terminasse.
— Qual o problema? — indagou Eric, olhando ao redor na esperança de vislumbrar um rosto conhecido. — É difícil saber quem é quem no meio dessa confusão, não?
— Sim. E também não é fácil distinguirmos uma saída segura até os portões do castelo.
— Não podemos ficar aqui.
— Eu sei. Estamos cercados por tantos homens armados, que receio acabarmos arrastados para o meio do conflito.
— Então é melhor corrermos para salvar nossas vidas. Antes de poder impedi-lo, Eric pôs-se a correr rumo aos portões, puxando-a pela mão. Segurando firmemente o cabo da espada, Maldie rezou para não ser forçada a usá-la. Era loucura tentar se locomover no meio de uma batalha, mas nenhuma outra alternativa vinha-lhe à mente. Quando Eric parou de repente, Maldie tropeçou e praguejou baixinho. Estavam a poucos metros dos portões, a poucos metros da liberdade. Somente Calum, as roupas manchadas de sangue inimigo, interpunha-se entre ambos e o cobiçado objetivo. Ignorando os protestos do menino, Maldie o colocou atrás de si, disposta a protegê-lo com o próprio corpo.
— Não sou nenhum covarde para me esconder atrás das saias de uma mulher — Eric reclamou, irritado.
— Mas essa mulher aqui tem uma espada e você está desarmado — ela ponderou, sem tirar os olhos de Calum, cujo sorriso malévolo fazia seu sangue gelar nas veias.
— Você mal consegue levantar a espada, moça — disse o guerreiro, friamente. — Será facílimo matá-la e depois cuidar do garoto.
— Se vai ser assim tão fácil, por que você hesita? — Maldie o desafiou, o esforço para manter a espada erguida minando suas energias. Duvidava de que fosse capaz de manejar arma tão pesada com alguma perícia e, considerando a expressão zombeteira do mercenário, ele pensava o mesmo.
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— Devo me jogar sobre sua espada e empalar a mim mesmo?
— Seria o cumprimento da justiça. A propósito, onde está seu lorde? Nunca achei que você fosse capaz de andar e falar sem tê-lo por perto.
— Meu lorde está enfrentando Balfour Murray. Como esta batalha está perdida, e não tenho mais nada a ganhar, não vi motivos para continuar apoiando-o.
— E preferiu escapulir como o rato que é.
— Beaton estava certo. Pena você ser mulher. Se tivesse nascido homem, seria o legítimo herdeiro de seu pai.
— Não tomo suas palavras como um elogio. Agora, se não temos mais nada a dizer um ao outro, por favor terminemos logo essa cena. Meu irmão e eu temos mais o que fazer.
Calum gargalhou.
— Você está assim tão ansiosa para morrer, moça?
— Não. Estou ansiosa para matá-lo.
Quando se preparava para aparar o golpe, uma outra espada se interpôs entre a dela e a de Calum, absorvendo o impacto do ataque destinado a aniquilá-la. Maldie fitou o homem que tomara seu lugar e decidiu que talvez houvesse se enganado enquanto estivera em Donncoill.
Com certeza experimentava um enorme prazer ao rever o mestre de armas.
— Você conhece James melhor do que eu, Eric — falou, acompanhando, nervosa, cada segundo do duelo. — Você acha que ele consegue derrotar Calum?
— Sim, de olhos fechados — o menino respondeu sem hesitar.
— Tanta fé em seu mestre de armas.
— Merecida.
Minutos depois, a disputa chegava ao fim. Os dois homens estavam suados, imundos, e ensanguentados, mas foi Calum quem vacilou primeiro. Num movimento rápido, James, desferiu o golpe fatal.
— Nós esperávamos que vocês tivessem o bom senso de permanecer na masmorra, onde estariam em segurança — comentou James, tirando, muito calmamente, a espada das mãos de Maldie. — E você deveria ter apanhado uma arma menor, moça.
— Faltou-me tempo para escolher.
— É bom tornar a vê-lo, rapaz. — O mestre de armas abraçou Eric. — Venham comigo. Vou levá-los para o local onde os pajens e os feridos estão aguardando o término do combate. E vocês não sairão de lá.
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— Para onde iríamos? — Maldie indagou com um sorriso inocente.
— Você está bem, rapaz? — James perguntou, notando como Eric se retraía quando o tocava nos ombros, ainda que de leve.
— Não é nada de mais. Só um pouco dolorido.
— Beaton o espancou, não?
— Sim, porém os machucados não são apenas resultado da surra. Nossa escapada do cativeiro não foi tão fácil quanto desejávamos.
Em silêncio, Maldie acompanhou a conversa, reparando na modéstia com que Eric descrevia a própria participação ao relatar a fuga. O modo como James a fitava a inquietava. Não sabia se o mestre de armas estava zangado, ou surpreso.
Depois de deixá-los no acampamento, James saiu ao encalço de Nigel. Sentando-se ao lado de Eric, sob a sombra de uma árvore, Maldie perguntou-se como diabos Nigel resolvera se meter numa batalha, quando ainda não se recuperara totalmente da anterior. Os homens eram mesmo criaturas esquisitas, movidos por uma concepção estranha de honra e orgulho. Pelo visto, o mestre de armas o estava mantendo sob constante observação, mas isto não o poupava de todos os perigos.
— Achei muito difícil lidar com as calorosas boas-vindas de James — Eric confessou, desconfortável.
— Por quê?
— Porque tudo é uma mentira. Não sou quem ele pensa que sou.
Sorrindo gentilmente, Maldie o acariciou nos cabelos.
— Você é o mesmo menino de sempre. Nada mudou.
— Talvez por dentro eu continue o mesmo, mas sou um Beaton agora, não um Murray. James deu as boas-vindas a um Murray, a alguém que julga pertencer ao clã. Quase cedi ao impulso de contar-lhe a verdade logo no primeiro momento. James é um homem bom e merece saber toda a verdade.
— Se você pretende lhe contar a verdade, então terá que contá-la a todos. E é melhor fazê-lo quando todos estiverem juntos, para que possam ouvir sua história juntos.
— Oh, sim, para que possam cuspir no meu rosto juntos.
— Não creio que alguém cuspirá em você — ela afirmou, a amargura e o medo do garoto causando-lhe profunda tristeza. — Eles o amaram durante treze anos. Não acho que esse sentimento vá se evaporar de uma hora para a outra.
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— Talvez não. — Eric sorriu um pouco embaraçado diante das próprias inseguranças. — Mas, com o tempo, esse sentimento mudará. É natural que seja assim. Sei que eles cuidaram de mim durante anos, também odiaram e lutaram contra os Beaton durante anos. É difícil explicar. Sinto apenas que as coisas mudarão. Como poderiam permanecer da mesma forma?
— Receio não ter uma resposta para lhe oferecer. Mesmo não conhecendo seu clã tão bem, James, Balfour e Nigel me parecem bons justos e sensatos. Não creio que a verdade sobre sua origem os fará deixar de amá-lo. Desde o dia em que o resgataram da colina, sempre o consideraram um Murray. Mas há uma coisa que você deve evitar. Não permita que o fato de ser filho biológico de Beaton o mude interiormente. Não permita que esse veneno contamine seu coração a ponto de levá-lo a enxergai ódio e desconfiança onde não existem. Sim, sei que é doloroso alimentar esperanças de que tudo dará certo e então descobrir ter se apegado a uma ilusão. Porém, se você se convencer por antecipação de que seus irmãos não vão mais amá-lo, acabará se tornando um homem diferente, alguém que eles não mais reconhecerão.
— Você está dizendo que se eu insistir em imaginar o pior, o pior acabará mesmo acontecendo?
— Algo assim. Agora prepare-se, porque estou vendo seu irmão Nigel mancando apressadamente para encontrá-lo.
Eric riu e aceitou, emocionado, o abraço de Nigel. Logo os dois sentavam-se na grama macia e o rapazinho recomeçava o relato da fuga. Sentindo James observá-la atentamente, Maldie ergueu o olhar e brincou:
— Eu disse que ficaria aqui, que não me afastaria.
— Sim, sem dúvida. — Desconfortável, o mestre de armas pigarreou algumas vezes. — Eu queria pedir desculpas por minhas suspeitas.
— Não há necessidade — ela retrucou sincera. — Você tinha esse direito. Além de não me conhecer bem, cheguei a Donncoill num momento delicado.
— Bem, me precipitei ao julgá-la. Não possuía provas de que você fosse informante de Beaton. Nenhuma prova. Eu não deveria ter permitido que minhas desconfianças me levassem a julgá-la injustamente.
— Você agiu como deveria agir. Não lhe guardo rancor. Depois de um instante de silêncio, James prosseguiu.
— Por acaso você chegou a descobrir como Beaton soube da verdadeira identidade de Malcolm?
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— Não. Conversei pouco tempo com Beaton e ele não estava inclinado a me fazer confidências.
— Acho que sou culpado do que aconteceu — disse Eric.
— Não, rapaz, você jamais trairia um dos seus — Nigel o assegurou sem vacilar.
— Não de propósito. Mas, creio ter deixado transparecer alguma coisa. No dia em que me trancaram na masmorra, Beaton entrou na cela acompanhado de Malcolm. Talvez eu não tenha conseguido disfarçar a surpresa de vê-lo ao lado de nosso pior inimigo.
— Não. Beaton precisaria de algo mais concreto.
— Horas depois, naquele mesmo dia, Malcolm apareceu sozinho para me visitar — continuou Eric. — Pretendia me libertar.
— Foi este erro que lhe custou a vida — afirmou James.
— Sim — Nigel concordou. — Com certeza a masmorra estava bem vigiada, por ordem de Beaton. O fato de Malcolm haver agido tão rapidamente confirmou as possíveis suspeitas desencadeadas por sua reação à presença de um dos nossos. Ao mostrar tanto interesse em você, ele se traiu. E acabou assassinado.
Estremecendo, Eric cruzou os braços sobre o peito, numa tentativa vã de aquecer o frio da alma.
— Foi um assassinato lento e brutal. Nunca mais quero tornar a presenciar tamanha crueldade. Só por isto, Beaton merece morrer cem vezes.
— Você viu Malcolm ser morto? — questionou-o James, tenso.
— Sim. Beaton achou que testemunhar a execução de um traidor serviria para me fortalecer. Malcolm sofreu durante dias, porém não revelou um único segredo dos Murray. Foi um homem corajoso e leal até o fim. Eu não teria suportado tanta agonia, não por dias a fio.
— Nenhum menino deveria ser exposto a exibições de sadismo.
— Suspeito que Beaton tenha testemunhado cenas assim ainda na infância — observou Maldie. — Segundo o que Eric me contou, ele as considera parte do treinamento de um homem. Pessoas como Beaton às vezes já nascem com a alma deformada. Existem aqueles que são transformados aos poucos, o mal existente em sua natureza é alimentado por adultos.
— Então você crê que Beaton é sádico porque o pai também o era? — Ante a anuência de Maldie. Nigel decretou: — Triste, mas isto não vai impedi-lo de morrer como merece.
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— Não, eu não sugeriria poupá-lo. De fato, penso até que Beaton não se importaria de morrer, se não temesse o julgamento divino. E penso que o pai de Beaton tenha sido mais perverso do que jamais poderemos imaginar. Um dos motivos pelos quais Beaton não se arrepende de tê-lo matado.
— Beaton assassinou o próprio pai? — James indagou, horrorizado.
— Sim. Ele mesmo me disse.
— E matou minha mãe — falou Eric, fazendo um resumo do que descobrira enquanto estivera em Dubhlinn.
O menino logo estaria contando aos irmãos, e ao mestre de armas, toda a verdade. Portanto, deveria ser sincera também. A reação de James à menção de que Beaton executara o próprio pai deixara claro que certos aspectos da sua história causariam polemica. Reconhecia ser pecado grave matar os pais, mas nunca se permitira analisar a questão demoradamente. Bem no íntimo, sabia que ninguém pactuava com parricídio, exceto um sujeito de personalidade doentia como Beaton.
Mais de uma vez, Beaton dissera que os considerava bastante semelhantes. Todo o seu ser rejeitava a idéia, porém começava a se perguntar se não exigiria um fundo de verdade. Se houvesse sido mais rápida e Calum mais lento, talvez agora, tivesse as mãos manchadas com o sangue do pai. E o que mais a apavorava era constatar que chegara àquele ponto não movida por vontade própria, e sim instigada, insuflada pela mãe. Uma mãe que amasse a filha jamais teria feito o que Margaret Kirkcaldy lhe fizera. Margaret criara a única filha para que esta se tornasse uma assassina, para que matasse um homem. Não um homem qualquer. O próprio pai.
Margaret não quisera Beaton morto porque ficara com o coração partido ao ver-se abandonada, ou porque fora desonrada. Vaidosa ao extremo, nunca perdoara o homem que ousara desprezá-la e exigira vingança. Covardemente, impingira à filha a execução dessa vingança. Embora doesse enxergar a mãe sob um novo prisma, Maldie percebia que, pela primeira vez, enxergava-a como a pessoa egoísta e fútil que realmente fora.
Margaret nunca amara ninguém, a não ser a si mesma.
Quando Eric chamou-a pelo nome, interrompendo o fluxo de seus pensamentos sombrios, Maldie suspirou aliviada. Toda a dor e a raiva sufocadas estavam vindo à tona, ameaçando destruir seu frágil equilíbrio emocional. E aquela não era a hora de encarar os fantasmas do passado, de tentar aceitar as verdades que aprendera a abafar para sobreviver. Eric era como um bálsamo para seu coração ferido. Alguém que lhe
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oferecera verdadeiro e desinteressado afeto. Pedia a Deus que os laços que os unia perdurassem.
— Você está cansada? — o menino perguntou, preocupado.
— Sim, exausta. Porém tudo estará terminado em breve. — Satisfeita, Maldie constatou que quase não havia mais sinal de luta na aldeia. — Espero que minha querida amiga Eleanor tenha se escondido num lugar seguro.
— A velha camponesa que a acolheu? — James interrogou.
— Sim. Como você sabe disso?
— Douglas nos contou.
— Douglas pertence ao clã dos Murray? — O assombro de Maldie desconhecia limites.
— Sim. Quando você tentou matar Beaton e foi condenada à forca, Douglas voltou a Donncoill, temeroso de ser identificado como informante.
— Com razão — concordou Eric. — Beaton estava mandando enforcar qualquer pessoa que apenas "parecesse" culpada. Os aldeões evitavam entrar no castelo e mantinham sempre a boca fechada, com medo de dizer algo que desagradasse a Beaton.
— Então você viu Eleanor? — Maldie indagou a James.
— Sim. E ela nos reconheceu como membros do clã rival. Mas sossegue a camponesa não nos denunciou e teve tempo de se refugiar num lugar seguro antes do início do combate.
— Ótimo. Eleanor é uma velha amiga muito querida. Apesar de se esforçar para não ceder à ansiedade, Maldie não parava de olhar para os portões do castelo. A ausência de Balfour a estava angustiando. Embora soubesse ser tolice sentir-se assim, porque logo se separariam definitivamente, queria vê-lo uma última vez, queria se certificar de que nada de mal lhe acontecera e que conquistara a tão merecida vitória.
— Vou ver se consigo encontrar lorde Murray — James anunciou, percebendo a aflição que a consumia. — Acho que não existe mais um único inimigo disposto a continuar resistindo.
— Calum falou que Beaton e Balfour estavam duelando — disse Maldie.
— Então o confronto já deve ter acabado.
— Balfour não perderia para Beaton, não é? — Eric perguntou a Nigel, observando o mestre de armas se afastar.
— Não — afirmou Nigel, notando o nervosismo do garoto.
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— Se Calum falou a verdade, então a luta entre Balfour e Beaton está durando muito tempo, ou...
— Não existe "ou" rapaz. Balfour sairá vencedor. Talvez o embate esteja demorando a chegar ao fim porque os dois tinham muita coisa a dizer um ao outro antes de iniciar a disputa. Não é a duração de um duelo que determina quem ganhará, ou perderá. Acredite-me, rapaz, Beaton não tem a menor chance contra nosso irmão.
Vendo James atravessar as muralhas de Dubhlinn, Maldie rezou para que Nigel estivesse certo. Preocupava-se tanto quanto Eric sobre o resultado do combate. Beaton já deveria ter sido derrotado e, no entanto, não havia sinal de Balfour. Mesmo sabendo que depois daquele dia nunca mais voltaria a vê-lo, não queria que fosse porque Beaton o houvesse matado.
Capítulo X
Murray, seu maldito! — urrou uma voz gutural, e Balfour estancou.
Reconhecia aquela voz. A mesma que lhe lançara insultos das muralhas de Dubhlinn quando fracassara em sua primeira tentativa de resgatar Eric.
Virando-se rapidamente, a espada em riste, encarou o inimigo. Surpreendia-o o canalha não tê-lo atacado pelas costas, numa atitude típica dos covardes. Porém Beaton parecia tão fora de si, vendo o mundo desabar ao seu redor, que já não controlava os impulsos.
Incapaz de disfarçar o choque, Balfour contemplou a figura sinistra. Embora conservasse a agilidade física, Beaton dava a impressão de estar se decompondo, o rosto como máscara putrefata. Sua primeira reação foi a de querer se afastar o máximo possível, temendo ser contagiado pela doença que corroia o adversário. Mas, ignorando o asco, manteve-se imóvel. Ninguém em Dubhlinn padecia do mesmo mal e Beaton resistia há três anos. Portanto, não devia ser algo que se contraísse com facilidade. Também confiava no julgamento de Maldie. Segundo o que ela dissera a Douglas, tratava-se apenas de alguma mazela da pele.
— Vim buscar meu irmão — anunciou, observando o outro com atenção. Todos conheciam a reputação de Beaton, a de lutar sem se guiar pelos princípios da honra.
— Você está se referindo ao meu filho?
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— O filho de meu pai. Você pôs o menino de lado como se ele não passasse de um traste. Você não possui nenhum direito sobre Eric, e deixou isto claro anos atrás, ao abandoná-lo à própria sorte.
— Um erro sério que agora pretendo corrigir.
— Ninguém acreditará em sua palavra. — Balfour notou Calum escapulir sorrateiramente, deixando Beaton sozinho. — De qualquer modo, já não importa, porque você logo estará morto.
— A doença que me faz apodrecer aos poucos ainda não me matou.
— De fato. Mas não pretendo deixá-lo vivo, agora que nos encontramos cara a cara. Você cometeu sua última afronta ao meu povo.
Naquele momento, Beaton percebeu que Calum o desertara e as feições deformadas tornaram-se cinzentas. Por um instante Balfour hesitou, perguntando-se se seria digno duelar com um cavaleiro tão obviamente doente. Mas Beaton avançou na sua direção, preparando-se para atacá-lo. Apesar da aparência asquerosa, o lorde de Dubhlinn ainda possuía força e habilidade necessárias para vencê-lo num combate.
— Você não vai me perguntar sobre sua linda prostituta? — Beaton o provocou, começando a rodeá-lo.
— Se está tentando me irritar insultando Maldie, poupe o fôlego, principalmente porque não lhe resta muito tempo para apreciar chacotas. Injuriá-la me dá apenas mais um motivo para matá-lo o quanto antes.
— Talvez, meu presunçoso inimigo, serei eu a matá-lo.
— Num combate homem a homem e sem ninguém para ajudá-lo? Não, creio que não. Há anos você se acostumou a atacar seus rivais pelas costas, traiçoeiramente, e ter os mercenários lutando em seu lugar. Quem não mantém as habilidades afiadas, perde-as depressa.
Não foi difícil para Balfour reparar o quanto certeiramente suas palavras atingiam Beaton. Tornava-se mais fácil liquidar um adversário com pouco, ou nenhum controle sobre as próprias emoções.
— Você pode ter derrotado Dubhlinn, Murray, mas não o deixarei viver para saborear o gosto doce da vitória. Tampouco viverão aqueles dois que você veio salvar.
Embora abalado com a idéia de que Eric e Maldie encontravam-se às portas da morte, Balfour obrigou-se a sufocar a angústia ao enfrentar a primeira investida. A potência do golpe foi suficiente para mostrar-lhe que, apesar de doente, Beaton
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continuava um oponente respeitável. Só esperava que o patife houvesse mentido que Eric e Maldie pudessem ser salvos antes que alguém os executassem.
O duelo prosseguiu silencioso e feroz. Balfour orgulhava-se por estar sendo capaz de dominar as emoções, por limitar-se a pensar em atingir seu objetivo o quanto antes: aniquilar o inimigo.
E não tardou a se convencer de que venceria, a menos que acontecesse uma reviravolta do destino. Beaton ainda possuía certa destreza no manejo da espada, mas suas forças se esvaneciam. Talvez por causa da doença, ou porque, há tempos, transferira para terceiros a responsabilidade de protegê-lo, o senhor de Dubhlinn começou a revelar cansaço, os golpes tornando-se cada vez mais erráticos e esporádicos.
O fim do embate chegou de um modo quase decepcionante em sua simplicidade. Tentando aparar um golpe, Beaton abriu a guarda.
Aproveitando-se da vantagem, Balfour cravou a espada no peito do canalha, concedendo-lhe uma morte rápida e limpa. Vendo-o desabar no chão, Balfour experimentou profunda sensação de alívio. Tudo terminara e poderia salvar as pessoas que amava.
— Bem, agora você é mesmo o cadáver que já parecia ser — ele murmurou, limpando o sangue da espada antes de sair para o pátio.
Os poucos focos de resistência logo seriam debelados. Estando Beaton morto, os mercenários contratados para servi-lo não mais teriam motivos para continuar combatendo e abandonariam Dubhlinn, preferindo salvar as próprias peles do que ser capturados. E os aldeões não lutariam por um lorde que sempre os maltratara que sempre acumulara riquezas sacrificando-os.
Vendo um inimigo ferido, caído na lama, Balfour o interpelou áspero:
— Onde estão os prisioneiros?
— Que prisioneiros? — o outro devolveu num tom desafiador.
— A moça que Beaton pretendia enforcar e o menino sequestrado.
— Deus, será que um homem não pode morrer em paz?
— Não se você não me disser o que desejo saber. — Balfour o sacudiu devagar. — Juro que o seguirei até as portas do inferno para arrancar-lhe uma resposta.
— Na masmorra, maldição!
— Quantos guardas os estão vigiando?
— Apenas um.
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Largando o soldado, que sem dúvida sobreviveria aos ferimentos, Balfour rumou para o interior do castelo, atento a qualquer um que cruzasse seu caminho. No entanto, durante todo o trajeto até a masmorra, não se deparou com ninguém. Aparentemente, o ataque surpresa a Dubhlinn fora mais bem-sucedido do que imaginara. Porém, quem lhe garantia que Maldie e Eric haviam sido poupados?
Ao se aproximar da cela escura e úmida, Balfour descobriu uma serva nervosa e um guarda queixoso. De acordo com o relato de ambos, Eric e Maldie os havia atacado, trancafiado e, depois, fugido.
Sem desperdiçar um único segundo, Balfour saiu correndo dali, ignorando os palavrões proferidos pelo guarda contra a honra de seu irmão e sua amada. No salão principal, parou inseguro sobre o que fazer ou para onde ir. Estivera tão convicto de que encontraria Eric e Maldie que agora, atordoado pelo peso do desaponto, hesitava sobre qual atitude tomar.
Não sabia onde estavam James, Douglas ou Nigel. Tão logo a batalha começara, concentrara-se principalmente em se infiltrar no interior do castelo e chegar à masmorra, onde Douglas dissera que Maldie e Eric estavam sendo mantidos. Maldizia-se por haver se atrasado para resgatá-los, porém apegava-se a um único consolo. Beaton pretendera matá-los, mas os dois haviam escapado antes que se cumprisse a sentença.
De repente, um corpo inerte, caído perto de uma mesa, chamou-lhe a atenção. Quem teria matado aquele homem pesado e corpulento? Pedia a Deus que não fossem Maldie ou seu irmão. Nenhum dos dois era emocionalmente sólido o bastante para lidar com a necessidade de matar um ser humano como parte da guerra pela sobrevivência. E se a situação houvesse atingido aquele extremo, ele deveria ter estado ali, para defendê-los.
— Balfour! — chamou uma voz familiar, às suas costas.
— James! Que prazer ouvi-lo!
— Trabalho seu? — indagou o mestre de armas, apontando para o cadáver.
— Não. E espero que também não seja de Maldie, ou Eric. Você os viu? Estive na masmorra e não os achei.
— Sim, eles fugiram. E sim, mataram esse sujeito.
— Estão feridos?
— Não. Calum bem que tentou impedi-los de escapulir de Dubhlinn com vida, mas pus um fim à ameaça. — James sorriu de repente. — Encontrei-os por acaso. Sua
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linda dama, empunhando uma espada maior do que ela mesma tentava proteger Eric de Calum.
— Maldie tentou lutar com Calum?
— Ela estava apenas querendo levar Eric para um lugar seguro. Você conseguiu localizar Beaton, ou o maldito se escondeu para evitar o merecido castigo?
— Já despachei Beaton para o inferno.
— Então é por isto que nossos inimigos se renderam. A luta cessou em todos os pontos de Dubhlinn.
— Ótimo. Onde estão Maldie e Eric?
Balfour estava ansioso para constatar, com os próprios olhos, que nenhum dos dois fora ferido. Até que o fizesse, não teria sossego, não se consideraria, sequer, vitorioso. Tudo correra tão bem, que ainda não absorvera a idéia da vitória ampla e incontestável.
— Eles não deveriam ter sido obrigados a fazer isto — falou, empurrando o cadáver com o pé. — Maldie não deveria ter sido obrigada a empunhar uma espada.
— Rapaz, você não pode controlar tudo o que os outros fazem o tempo todo. Ou acabaria morrendo, vítima de insônia crônica.
Balfour sorriu, cansado.
— Sei que você tem razão. Não posso acompanhar cada passo das pessoas que me são caras, protegê-las de todos os possíveis perigos. Talvez eu esteja apenas me sentindo um pouco culpado.
— Então deixe que a vitória apague suas preocupações.
— Ficarei melhor quando vir meu irmão e Maldie.
— Siga-me, rapaz. Deixei-os num lugar seguro, perto de nosso acampamento. Levei Nigel para lá.
— Nigel está bem?
— Sim, apenas exausto devido ao grande esforço físico de enfrentar uma batalha ainda sem estar completamente restabelecido. Porém, assim que a vitória me pareceu garantida, retirei-o do meio do combate para poupá-lo.
— Conhecendo-o, ele não deve ter ficado muito feliz com sua interferência.
Os dois homens cruzaram o pátio interno, onde não havia mais sinal de luta. Mulheres e crianças começavam a sair de seus esconderijos e o choro daqueles que tinham perdido entes queridos enchia o ar. Contudo, existia uma boa chance de que a
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vida dos moradores de Dubhlinn melhorasse com a morte de Beaton, passado o primeiro choque.
— Não há nada que possamos fazer por eles — James murmurou enquanto começavam a subir a colina onde fora armado o acampamento.
— Sim, porém o desespero dos derrotados sempre tira um pouco do brilho da vitória. Pergunto-me o que acontecerá a essa gente daqui em diante. São tantos os que disputam o controle dessas terras.
— Não é possível que o novo lorde se revele pior do que Beaton.
— Eu gostaria de acreditar nisso.
Tenso, Balfour subiu os últimos metros em silêncio. Dali a instantes, reveria Maldie. A última vez em que haviam se falado, chamara-a de traidora, de informante. Ainda não conseguia entender os motivos que a tinham levado a tentar matar Beaton. Na verdade, não compreendia Maldie, nem os motivos por trás de suas atitudes. De uma única coisa, porém, tinha certeza. Ela não o receberia de braços abertos. De alguma maneira, precisava convencê-la a voltar para Donncoill. Precisava de tempo para fazê-la esquecer a mágoa provocada por seus insultos, precisava reconquistá-la. Não a deixaria partir. Ela era importante demais para a sua vida, para a sua felicidade. Daria um jeito de obrigá-la a ouvi-lo, a perdoá-lo.
Vendo Balfour subir a colina, Maldie sentiu os joelhos fraquejarem, tão grande a sensação de alívio. Finalmente ele vencera a disputa com Beaton e sobrevivera para saborear a vitória. Queria, desesperadamente, poder partilhar desse contentamento, mas estava à beira de confessar coisas que o fariam rejeitá-la. Tudo lhe parecia muito injusto. Ninguém merecera tanto morrer quanto Beaton, e Balfour devia se sentir orgulhoso por livrar o mundo de uma criatura demoníaca. Odiava-se por ser forçada a estragar o momento glorioso.
Eric tocou-a de leve no braço, uma expressão tão desesperançada quanto a sua própria. Estava a ponto de perder o homem a quem amava e Eric a ponto de perder muito mais. Tinha que ser forte para ampará-lo, para infundir-lhe coragem.
— Temos que contar a ele — o menino sussurrou. — Acho que não devemos esperar.
— Provavelmente não. Mas Balfour parece tão animado, depois de derrotar o homem que o atormentou durante treze anos.
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— Sim, e o que vou lhe dizer vai impedi-lo de desfrutar da vitória por muito tempo. De certo modo, a verdade a meu respeito vai deixar claro que essa rixa longa e sangrenta foi baseada numa mentira e que tantos membros do clã dos Murray morreram por nada. E se esperarmos demais para contar tudo, será ainda pior.
— Sim, eu sei, pois Balfour começaria a se perguntar por que lhe escondemos a verdade, se apenas a descobrimos durante nossa estada em Dubhlinn. Isto é, no seu caso. — Maldie sorriu amarga. — Quanto a mim, tenho escondido a verdade sobre minha origem há semanas, cheguei a mentir para encobri-la.
— Talvez nós não tenhamos que expor todos os segredos — argumentou Eric, subitamente inseguro.
— Não, ambos sabemos que só existe uma atitude a tomar. Contar a verdade sem subtrair uma única informação. Quando Balfour souber como você descobriu ser filho de Beaton, voltará à atenção para mim. Nosso sinal de nascença não apenas provará que estamos ligados por laços de sangue, como revelará minhas mentiras. E estou farta de dizê-las. Temos que ser absolutamente sinceros, honestos. Se contarmos somente parte da história, Balfour é inteligente o bastante para inferir o resto e nós dois não passaremos de escória aos seus olhos.
O menino sorriu tristemente.
— É bom estarmos juntos nisso. Afinal, se vou ser rejeitado por causa de meu sangue, pelo menos a terei comigo. Sei que é uma atitude egoísta, mas conforta-me não estar sozinho nesta hora.
— Não é egoísmo — ela o consolou compreensiva. — Ninguém gosta de estar só, acredite-me. Sei por experiência própria. Mesmo com a presença de minha mãe, sempre me senti sozinha.
— Você nunca mais ficará sozinha.
As palavras do menino a emocionaram profundamente. Não importava o que acontecesse depois que a verdade viesse à tona, teria alguém consigo. Eric sabia quem ela era, conhecia detalhes de seu doloroso passado e do pecado mortal que quase cometera em Dubhlinn. Entretanto, ele permanecera ao seu lado, como um irmão fiel. Tamanha bondade e constância não era algo ao qual estivesse acostumada.
— Sobre o que vocês dois estão falando? — indagou Nigel, curioso.
— Apenas imaginando o que terá acontecido a Beaton — Eric respondeu, desviando o olhar.
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— Como nosso irmão está subindo a colina em perfeitas condições físicas, presumo que Beaton esteja morto. — Pausa. — Você tem mesmo certeza de que não está ferido? — ele insistiu, notando que Eric evitava fitá-lo.
— Sim. Maldie e eu estamos bem. ¦
— Alegra-me saber — afirmou Balfour, aproximando-se do grupo.
Após um breve olhar para Maldie, Balfour envolveu o irmão caçula num demorado abraço. Vendo-os tão comovidos, Maldie foi dominada por uma angústia crescente. Eric amava os irmãos e sabia que, ao lhes contar a verdade, estaria destruindo tudo o que mais prezava. Angustiava-a pensar que o rapazinho poderia vir a ser privado do afeto daqueles que o tinham criado. Um golpe tão severo costumava ser difícil, às vezes impossível, de superar.
Tensa, Maldie não conseguia interpretar a natureza dos olhares furtivos que Balfour lhe lançava. Preocupava-se tanto com Eric, que suas emoções permaneciam quase anestesiadas. Também, estando perto de confessar a verdade sobre sua origem, preferia se preparar para a rejeição que, com certeza, viria.
— Você está bem? — Balfour questionou Eric, estudando-o longamente.
— Sim. Apenas um pouco dolorido — o rapazinho respondeu, afastando-se do irmão e postando-se ao lado de Maldie.
Franzindo o cenho, Balfour contemplou o par à sua frente, começando a experimentar uma certa inquietude. Eric tinha uma expressão aflita, como se estivesse padecendo de algum tormento interior. E Maldie parecia triste. Indagava-se se ela teria contado ao rapaz o que houvera entre os dois. Eric sempre se portara de acordo com um rígido código de justiça e sem dúvida estaria irritado com as acusações infundadas que a jovem dama sofrera.
— Vi o homem que vocês tiveram que matar — Balfour falou, repentinamente ansioso para preencher o silêncio. Temia o que Maldie e Eric estavam se preparando para dizer-lhe. — Lamento ambos terem sido expostos àquilo. Eu deveria protegê-los.
— Você não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo — Eric murmurou gentil. — E, na verdade, não foi um verdadeiro duelo. O homem caiu em cima da espada que eu estava segurando.
— A primeira vez em que derramamos o sangue de alguém é sempre duro.
— Eu sei, mas não se preocupe comigo. O infame estava a ponto de matar Maldie e, por sorte, consegui impedi-lo.
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— Por que aquele mercenário queria tanto matá-la? — Sem conseguir entender por que Maldie recusava-se a enfrentar seu olhar, a inquietude de Balfour só aumentava.
— Ele me culpava pela queda de Dubhlinn. Achava que você só conseguira transpor as muralhas, porque eu o estava ajudando. Acusou-me de ser sua informante.
— Você suportou muitas acusações imerecidas, não? — Havia angústia e arrependimento na voz de Balfour.
— E o preço que se paga quando se é uma estranha. Você derrotou Beaton?
— Sim. O canalha está morto.
— Então a justiça venceu.
Num gesto cansado, Balfour passou a mão pelos cabelos escuros.
— Começo a pensar que sou o único ciente da nossa vitória.
— Acho que o que aflige esses dois não tem nada a ver com a batalha — disse Nigel, os olhos fixos em Maldie e Eric.
— Tem algumas coisas que precisamos contar-lhes. — Eric endireitou os ombros e, pela primeira vez, enfrentou abertamente o olhar dos irmãos.
— Isso pode esperar, rapaz — interveio James. — Partiremos para Donncoill em breve. Depois de festejarmos, vocês poderão conversar o quanto quiserem.
— Depois de ouvir o que tenho a lhes dizer, talvez vocês não queiram festejar em minha companhia.
— Vamos, menino, não se culpe pela morte de Malcolm — Nigel o tranquilizou. — Você não o traiu, com palavras ou atos. Foram as tentativas de Malcolm de libertá-lo que acabaram denunciando-o. Ninguém jamais o acusaria de nada.
— Não estou assim por causa da morte de Malcolm. — O tom ríspido fez com que Balfour, Nigel e James o fitassem surpresos.
— Você está me deixando preocupado, rapaz. — Apesar de tentar sorrir, Balfour revelava nervosismo. — Com certeza o que precisa nos dizer não pode ser assim tão grave.
— Não sou um Murray — Eric anunciou em alto e bom som. — Todos nós estivemos enganados durante esses treze longos anos. Entendam, o pai de vocês pode ter se deitado com a esposa de Beaton, mas não foi ele quem me deu a vida. Sou um Beaton.
Maldie pensou nunca ter visto homens vividos e experientes parecerem tão assombrados quanto Balfour, Nigel e James. Obviamente os três queriam negar o que
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haviam acabado de ouvir, mas algo os mantinha em silêncio. Perguntava-se se hesitavam em se manifestar porque acreditavam no que Eric acabara de lhes contar, ou porque temiam que o menino tivesse enlouquecido durante o período de cativeiro. Logo ficou claro que preferiam à segunda alternativa.
— Não, rapaz, era isto o que Beaton queria fazê-lo acreditar — Balfour afirmou categórico. — Se o infame pretendia fazer o mundo engolir essa mentira, naturalmente precisava convencê-lo antes.
— Não sou nenhum idiota. Sei o que estou dizendo.
— Não, claro que não é idiota. Você permaneceu sob o jugo do maldito durante muito tempo. Mesmo o mais inteligente dos homens pode acabar acreditando em algo que lhe é repetido à exaustão, em especial quando não há ninguém por perto para lembrá-lo da verdade.
— Você está tentando tão ardentemente transformar aquilo que estou me esforçando para explicar em mais uma mentira de Beaton, que torna-se difícil para mim expor toda a verdade. Percebo que minhas revelações não serão bem-vindas. Assim como deixarei de ser bem-vindo em Donncoill.
— Você nunca deixaria de ser bem-vindo — declarou James.
— Sou um Beaton. Acreditem-me quando o digo, embora desejasse, com todo o coração, que não fosse verdade. Olhem para mim. Não me pareço em nada com os Murray. Sempre presumimos que eu havia puxado minha mãe, mas era curioso eu não guardar nenhuma semelhança com meu pai. Sou loiro, e vocês todos morenos. Também não sou alto e forte.
— Você pode ter herdado essas características físicas de sua mãe. Os filhos nem sempre se assemelham a ambos os pais — argumentou Balfour, a voz carregada de angústia.
Naquele instante, Maldie não teve duvidas de que o peso da verdade começava a dobrá-lo.
— Mas deveria existir algo de meu pai em mim. — Eric calou-se por alguns segundos. — Agora, já não tem mais importância. Descobri o sinal de nascença.
Imediatamente Balfour fitou Maldie. Enfim entendia por que o sinal lhe parecera familiar.
— Ah, aquela marca. Você é filha de Beaton também?
— Sim. Beaton era o homem que seduziu e abandonou minha mãe. Que arruinou a vida dela e a minha.
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— No entanto você ia matá-lo.
— Sim, por este motivo vim a Dubhlinn. Para ficar perto de quem jurei destruir. E por esta razão vim a Donncoill. Afinal, você o queria morto tanto quanto eu.
— Por que você quereria matar seu próprio pai? — perguntou James.
— Porque minha mãe, em seu leito de morte, me obrigou a prometer que o faria. — Ela sorriu friamente ante a expressão chocada do mestre de armas. — Minha mãe odiava Beaton por tê-la abandonado. No início, achei que fosse porque o amava, porque se sentia envergonhada pela desonra a que fora submetida. Depois percebi tratar-se apenas de orgulho e vaidade feridos. O tempo que passei na masmorra serviu pelo menos para uma coisa: ajudar-me a enxergar a verdade com clareza. Embora seja doloroso admitir, minha mãe me criou para ser uma arma contra o homem que a desprezara.
— Outros homens a desprezaram também, não? — indagou Nigel, o olhar cheio da simpatia que Maldie buscava encontrar no de Balfour, ainda impenetráveis.
— Sim, muitas e muitas vezes, até que ela passou a se interessar apenas pelo dinheiro. Provavelmente nunca conseguirei entender por que minha mãe considerava Beaton pior que os outros e por que quis me usar para o aniquilar. Talvez ela desejasse me punir por eu haver sobrevivido ao parto. Os motivos não importam muito agora. Depois de enterrá-la, parti para Dubhlinn disposta a cumprir minha promessa. Peço-lhes perdão, porque tentei aproveitar-me de vocês para atingir meu objetivo.
— Receio que eu seja o responsável por essa amarga revelação — disse Eric, segurando a mão de Maldie. — Como é meu costume, fiz uma ou duas perguntas sem me dar conta das possíveis consequências.
— Tudo o que você fez foi me obrigar a encarar as verdades que eu tentava, há anos, ignorar. Eu sim, forcei-o a enxergar uma verdade ainda mais dura.
— Que marca é essa sobre a qual estão falando? — quis saber Nigel. — Muitos de nós possuem sinais de nascença pelo corpo.
— É um sinal distinto e incomum — explicou Eric, tirando a túnica e mostrando o ombro. — A mãe de Maldie explicou-lhe ser esta uma marca herdada somente pelos descendentes diretos de Beaton.
— Talvez sua mãe tenha sido uma parente distante de Beaton — Nigel argumentou —, e você tenha herdado o sinal dela.
— Se eu fosse o único a ostentar este sinal, a sua seria uma explicação razoável e nossos receios poderiam, então, ser infundados. Porém o fato de Maldie também ter na
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pele o mesmo sinal, prova que ambos somos filhos de Beaton. E eu seu legítimo herdeiro. Aquele homem que matamos também sabia disso.
— E Beaton?— perguntou Nigel, lançando um olhar preocupado para Balfour, que conservava-se em silêncio.
— Não, ou teria me sequestrado anos atrás. George foi um dos encarregados de me abandonar na colina e viu a marca no meu ombro. Preferiu esperar para revelar a verdade numa ocasião em que pudesse obter algum proveito. — Eric inspirou fundo antes de continuar. — Também descobri que Beaton matou minha mãe e a parteira. Não queria testemunhas vivas daquilo que considerava sua vergonha. Por isso, não apenas preciso aprender a aceitar que não sou um Murray, e sim um Beaton, mas também assimilar o fato de que meu pai matou minha mãe e tentou me matar.
— Beaton era um canalha que espalhou desespero e miséria por onde andou. — James abraçou Eric com força. — Pelo visto, o crápula induziu Grizel a assassinar seu pai também. Isto é, seu pai adotivo.
— Nossos homens já se reuniram e com certeza estão se perguntando qual a razão de nossa demora aqui. — Nigel segurou o braço de Balfour e sacudiu-o. — Devemos regressar a Donncoill.
— Sim — concordou Balfour, dando um rápido abraço em Eric e pondo-se a caminhar para o local onde os cavalos pastavam.
— Todos nós — declarou Nigel, bem alto.
— Sim, definitivamente todos nós — devolveu Balfour, sem olhar para trás.
— Não — disse Maldie, balançando a cabeça. — Acho melhor eu tomar outro rumo.
— Não tardará a anoitecer e você não tem suprimentos para empreender uma longa jornada. O sensato é nós acompanhar.
— Depois de tudo o que lhes contei, não creio que vocês apreciariam minha presença.
— Talvez, no momento, aquele cavaleiro soturno — Nigel apontou para o irmão mais velho —, não deseje sua companhia. Mas ele não é o único Murray de Donncoill.
— Também não me sinto à vontade sobre isso — murmurou Eric, inseguro. — Balfour não me desprezou, mas também não me deu as boas-vindas.
— Tolice, menino. — James o fez montar num cavalo. — Lorde Murray o abraçou.
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— Era como se eu estivesse envolvido num manto de gelo. Balfour ainda não digeriu os fatos. Talvez Maldie e eu devêssemos permanecer aqui.
— Não. Vocês têm que estar por perto quando Balfour se recuperar do choque e for procurá-los.
— Parece-me uma ótima razão para nos mantermos distantes.
— O pobre homem sofreu um baque — insistiu Nigel, rindo e passando a mão nos cabelos do caçula. — De alguma forma, as notícias o abalaram mais do que a nós, embora eu desconfie do motivo. Contudo, ele acabará recuperando o bom senso.
— Ainda que Balfour supere o choque, nada mudará a realidade. Sou um Beaton, não um Murray.
— Você é um Murray. Talvez não de sangue, ou de nome, mas em todo o resto — afirmou Nigel, enfático. — Nós o criamos como um de nós durante treze anos. Realmente lhe passou pela cabeça que poderíamos rejeitá-lo? Você continua sendo o garoto que James encontrou abandonado ao pé da colina. Você ainda é o filho da mulher que nosso pai amou. Nada disso mudou. E nunca lhe ocorreu que, uma vez ou outra, tenhamos tido dúvidas sobre você ser mesmo o filho bastardo de nosso pai?
— Mas vocês jamais deixaram transparecer algo.
— Claro que não. Tratava-se de uma idéia sem importância.
— Então por que Balfour está tão preocupado?
— Receio que tenha pouco a ver com você, rapaz.
Sentindo sobre si os olhares masculinos, Maldie enrubesceu. Embora não desejasse voltar para Donncoill, era impossível negar o argumento de Nigel. A noite não tardaria a cair e necessitava de suprimentos para empreender uma jornada. Na verdade, incomodava-a aceitar qualquer coisa dos Murray, depois de tê-los enganado tanto. Por outro lado, antes engolir o orgulho do que suportar a fome e o frio ao relento.
Chegando ao castelo, não havia sinal de Balfour. E Maldie, para seu desgosto, foi conduzida ao mesmo quarto de onde escapara após nocautear Jennie.
— Sinto muito por tê-la agredido — ela falou ao ver a jovem criada terminar de arrumar o aposento. — Mas eu precisava sair daqui.
— Ainda está dolorido, sabia? — Jennie mostrou um hematoma no queixo. — O coitado do Duncan passou dois dias se escondendo da ira de nosso lorde.
— Eu tinha que escapar de Donncoill. — Conformada, Maldie suspirou fundo. — Você não demorará a ouvir toda a história. Por favor, acredite-me quando digo que sinto muito por havê-la atacado.
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— Está bem. Mas se você decidir fugir outra vez, não mande me chamar.
A serva saiu e bateu a porta com força, deixando-a só. Tensa, Maldie deitou-se na cama e fitou o teto. Embora não planejasse permanecer em Donncoill, começava a suspeitar de que poucos dias pareceriam uma eternidade.
Ainda não conseguira entender por que Balfour destinara-lhe aquele quarto. Podiam ser diversas as razões. Talvez ele necessitasse de tempo para pensar. Afinal, contara-lhe coisas difíceis de serem aceitas. Nigel e James, aparentemente, haviam aceitado e compreendido. Portanto, exista a possibilidade de que Balfour acabasse fazendo o mesmo, após um período de ponderação. Talvez ele a tivesse instalado ali para que pudessem ficar sozinhos depois. Não, não devia alimentar falsas esperanças.
Fechando os olhos com força, Maldie obrigou-se a alterar o rumo dos pensamentos. Sentia-se machucada, por dentro e por fora. Seu corpo fora ferido durante a fuga de Dubhlinn, mas era seu coração que sangrava. Ao enfrentar a verdade sobre o caráter de sua mãe, tornara a perdê-la. De fato, nunca tivera uma mãe. Apenas vivera com uma mulher que, de má vontade, vestira-a e alimentara-a enquanto a preparara para se tornar uma assassina.
Então havia a questão de seu pai, a quem planejara matar. Apesar de estar feliz por não ter cometido parricídio, a morte de Beaton não lhe causara pesar. Ele merecera morrer por vários outros motivos além de ferir o orgulho e a vaidade de Margaret Kirkcaldy. Fora duro encontrá-lo cara a cara, conhecer o demônio que a gerara.
Bem no fundo, temia possuir algo daquela criatura maligna dentro de si. E desconfiava de que Eric padecia da mesma aflição. Levaria muito tempo até parar de questionar cada uma de suas atitudes, temendo descobrir nelas um reflexo da maldade herdada de Beaton. Levaria muito tempo para se convencer de que não se parecia absolutamente em nada com o pai.
Quanto a Balfour... Esperaria um pouco mais, mesmo sabendo que seria uma espera vã. Ele nunca voltaria para a sua cama e, provavelmente, nunca mais desejaria tornar a vê-la. Apesar de não ser informante de Beaton, conforme fora acusada, traíra-o de outros modos. Mentira-lhe e tentara usá-lo para atingir seus próprios fins. Algo difícil para um homem tão orgulhoso perdoar.
Quando o dia raiou, Maldie já estava acordada. Quase não dormira durante a noite interminável. Balfour não a procurara hora nenhuma. Somente Jennie aparecera ainda emburrada, para levar-lhe o jantar. No seu entender, a mensagem fora clara. Se
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sequer havia sido convidada para partilhar a refeição com a família no salão principal, melhor sumir dali, porque transformara-se numa presença indesejada.
Vestindo a capa e apanhando a pequena bolsa de couro que preparara durante a noite, Maldie dirigiu-se aos aposentos de Nigel, onde o cavaleiro tomava o desjejum na companhia de um sonolento Eric.
— Você está desistindo depressa demais — disse Nigel, não revelando surpresa ao vê-la.
— Não sou o tipo de bater a cabeça contra a parede.
— Espere só mais um pouco — pediu Eric.
— Não posso.
— Por quê? Balfour não vale a pena? Pelo olhar do menino, era óbvio que Nigel lhe contar mais do que deveria. Pretendera apenas despedir-se rápida mente dos dois e partir, agora percebia que dizer adeus não seria tão simples assim.
— Se vocês vão ficai falando sem parar, é melhor eu m sentar um pouco.
— É uma atitude covarde, você sabe — declarou Eric, com a sinceridade que lhe era peculiar.
— Então acrescentemos covardia à minha longa lista de defeitos. Posso ser tão covarde quanto mentirosa.
— Você não tinha outra alternativa a não ser mentir. Se houvesse contado a verdade a todos desde o início, teria passado o tempo inteiro mofando numa cela em Donncoill. Ninguém prestaria atenção aos seus argumentos, ninguém acreditaria quando explicasse que não pretendia ajudar Beaton, apesar de ser filha do próprio. Para um Murray, a idéia de não ajudar um parente é simplesmente inconcebível.
— O fato de haver justificativas para minhas mentiras não importa muito. Está claro que não sou aceita, que não posso ser aceita.
— Não, não é verdade. — Eric segurou-a pelas mãos. — Eu fui aceito. Todos agora sabem que sou filho de Beaton e sim, ficaram chocados, mas só. Você tinha razão. Aos olhos do povo de Donncoill, continuo sendo o mesmo Eric de antes. Como James argumentou, deixei de ser filho de sangue para me tornar filho adotivo.
— Fico feliz por você. — Maldie beijou-o no rosto. — Ouça, nossas situações são bem diferentes. Não fui criada aqui. Não fiz parte desta família por treze anos. Surgi no meio da estrada para Dubhlinn e escondi meus propósitos. Matar o próprio pai não é uma idéia que as pessoas entendam facilmente.
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— Talvez seja duro para algumas pessoas compreender, mas, considerando quem era Beaton, não creio que a condenarão por isso — ponderou Nigel. — E você foi a Dubhlinn para resgatar Eric. Você o salvou.
— Não. Quando a batalha começou, as chances de que ele acabasse ferido eram mínimas. De fato, acabei expondo-o a um perigo maior ao tirá-lo da masmorra e arrastá-lo para o meio da confusão. Afinal, Beaton o queria vivo.
— Você é modesta demais. Talvez por esta razão ache difícil acreditar que as pessoas são capazes de perdoá-la por seus pequenos erros.
— Pequenos? — Maldie riu amarga. —Não, não foram erros pequenos. Você sabe que seu irmão valoriza a verdade acima de tudo. E eu raramente lhe disse a verdade. Balfour queria acreditar em mim e sempre me esquivei de suas perguntas, sempre me neguei a dizer-lhe algo que pusesse um fim às suas desconfianças.
— Se você crê que seus crimes são assim tão vis, então por que acha que Balfour deveria tomar uma decisão a respeito numa única noite?
— Oh, eis uma pergunta inteligente. — Ela levantou-se e apanhou a bolsa. — Talvez Eric esteja certo. Talvez eu não passe de uma covarde. Tive coragem para esperar por Balfour uma noite. Agora, não posso mais. Quanto mais o tempo se arrastar, menos poderei suportar o que ele terá a me dizer.
— Por favor, fique só mais esta noite — Eric a abraçou, ansioso.
— Não, nem mais uma hora.
— Você é uma mulher teimosa — acusou-a Nigel.
— Muito teimosa.
— Para onde irá?
— Ainda não tenho certeza.
— Vá para o castelo de seus parentes.
— Os Beaton?
— Não, tolinha. Os Kirkcaldy.
— Oh, não, não posso procurá-los.
— Por que não?
— Acho que não seria bem-vinda, depois do que ouvi a respeito deles.
— E quem lhe falou a respeito deles?
— Minha mãe.
— Não é minha intenção aumentar a sua dor, mas desta vez é para seu próprio bem. Sua mãe mentiu-lhe e usou-a de maneira abominável. Por que não teria mentido
Hannah Howell 164 Destinos ao Vento
sobre a própria família? Talvez ela tenha preferido mentir sobre o caráter dos pais e irmãos a voltar para casa e enfrentá-los. É melhor você conhecê-los antes de julgá-los.
Maldie massageou as têmporas, a cabeça começando a latejar. Nigel estava certo. Sua mãe fora uma pessoa fria e egoísta, que preferira uma vida desregrada a admitir os próprios erros.
— Talvez ela não tenha estado completamente errada — Maldie murmurou, ainda lutando para conservar algo de positivo na imagem da mãe. — Levar uma criança bastarda para casa não costuma ser bem-aceito.
— Sim, mas, só se pode saber qual será a reação da família quando se enfrenta a situação. Não conheço os Kirkcaldy, mas também, nunca ouvi nada de realmente negativo sobre aquele clã. Você lhes deve uma chance de provar quem são.
— Suponho que sim — ela reconheceu hesitante. — Pelo menos terei um rumo a seguir.
— Não será tão difícil quanto você imagina.
— Não? Se eles me receberem, serei obrigada a contar-lhes a verdade sobre minha mãe. Não é uma história bonita. E eu faço parte dessa história.
— Você tem uma escolha. Poderia ficar aqui — sugeriu Eric.
— Não. Vou procurar os Kirkcaldy.
— E mandará notícias para nós? — o menino insistiu.
— Sim, mandarei notícias. Mas creia-me, Nigel Murray, se você estiver errado sobre meu clã, ficarei muito, muito irritada.
O cavaleiro riu e Maldie aproveitou o momento de distração para despedir-se. Depois de beijá-los na face, saiu do quarto às pressas. Ao ultrapassar os portões de Donncoill, seu coração batia tanto que mal conseguia respirar. Com igual intensidade, temera e desejara encontrar Balfour durante o trajeto. Quis o destino que não visse ninguém.
— E aonde você está indo, moça?
A voz profunda assustou-a. Trêmula, virou-se para encarar James. De onde o mestre de armas surgira, não tinha a menor idéia.
— Que susto você me deu!
James apenas sorriu e tornou a perguntar:
— Aonde você está indo?
— Para o castelo dos Kirkcaldy.
— Uma boa escolha.
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— O quê? Nenhuma tentativa de me convencer a ficar?
— Bem, concluí que você não se deixará convencer de nada, se nem Nigel nem Eric conseguiram fazê-la voltar atrás na decisão tomada.
— Você sabia que eu estava com eles? Ah, James, você é um homem sorrateiro.
— Vá, moça, mas tenha cuidado. Não gosto de imaginá-la vagando sozinha por aí. Porém, você precisa mesmo conhecer os Kirkcaldy, mais do que precisa permanecer em Donncoill.
— Talvez você tenha razão. — Ela despediu-se do mestre de armas com um beijo no rosto, sorrindo ao vê-lo enrubescer.
— Vá com Deus, menina.
Ganhando a estrada, Maldie tentou não pensar muito em como todos haviam-na deixado partir facilmente. Existiam três possíveis explicações. Ou achavam ser mesmo seu dever procurar os Kirkcaldy, ou julgavam a possibilidade de uma reconciliação com Balfour nula, ou, ainda pior, não a queriam em Donncoill para que tentasse reconquistá-lo.
Não, não alimentaria esses pensamentos que, além de provavelmente injustos, só serviam para magoá-la. Ninguém, exceto Balfour, mostrara-se incapaz de aceitar a verdade a seu respeito e de perdoá-la. Talvez, por isso, a preferissem longe de Donncoill a vê-la rejeitada por Balfour.
Seria uma tarefa árdua esquecer Balfour. Amava-o com todas as suas forças. E, partir de Donncoill, abrindo mão desse amor, a estava dilacerando por dentro. Sua razão dizia que não podia voltar atrás. Se Balfour a quisesse, teria que se esforçar para encontrá-la. Por um instante Maldie imaginou se seria este o motivo pelo qual Nigel, Eric e James haviam insistido para que procurasse os Kirkcaldy. Não, não devia se comportar feito uma tola, permitindo-se sonhar. Precisava se concentrar em chegar ao castelo de seus parentes em segurança e o mais rápido possível. Então, teria dias e anos pela frente para lidar com a sua dor.
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Capítulo XI
Onde está ela? — Balfour interrogou o sentinela, postado nos portões de Donncoill.
— Milorde a perdeu de novo? — Nervoso Duncan deu um passo atrás, como se temesse ser alvo de um acesso de ira. — Eu não sei. Não a vi.
Praguejando por entre os dentes, Balfour voltou ao castelo, rumando diretamente para os aposentos de Nigel. Doía admitir, porém Maldie ainda se sentia mais confortável discutindo algumas coisas com Nigel e Eric do que com ele. Passara uma noite muito longa e quase o dia inteiro pensando em tudo o que acontecera. Agora sentia-se pronto para conversar. Começava a temer haver esperado demais. Talvez Maldie já não desejasse ouvi-lo. Ou então, confessar toda a verdade e depois partir, fora o plano dela desde o princípio.
Ao entrar no quarto de Nigel, notou que Eric, ao vê-lo, abaixara imediatamente o olhar. A expressão angustiada do menino encheu-o de culpa e vergonha. Estivera tão imerso no próprio sofrimento, tão fechado em sua amargura, que pouco pensara no drama enfrentado pelo irmão caçula. Tudo em que Eric acreditara tudo aquilo em que aprendera a confiar, fora-lhe roubado. Ele precisava saber, sem sombra de dúvida, que sua origem não fazia nenhuma diferença. Aquele abraço seco que lhe dera logo antes de deixarem Dubhlinn não bastara. Eric necessitava de demonstrações de afeto e aceitação muito mais enfáticas. Aproximando-se, Balfour passou um braço ao redor dos ombros estreitos.
— Parece que todos nós fomos amaldiçoados com os pais que tivemos — falou.
— Seu pai apenas dormia com as mulheres de outros homens. Meu pai os matava — Eric respondeu um pouco mais relaxado.
— Rapaz, nenhum clã, nenhuma família, é livre de seus canalhas. Você sabe tão bem quanto eu que os Murray têm tido sua parcela de crápulas. Afinal, ouviu todas as nossas histórias. De vez em quando sempre surge alguém com personalidade distorcida, alguém de alma negra.
— Sangue ruim.
— É o termo que as pessoas costumavam usar. Suponho que exista gente assim. A maioria dos homens perversos são criados por um outro ainda pior. Nós sabemos quem criou Beaton.
— O pai dele. E Beaton o matou.
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Balfour levou alguns segundos para se recuperar do assombro.
— Beaton matou o próprio pai?
— Estou certo de que Maldie e eu lhe contamos isso.
— Talvez eu não tenha escutado bem. Pouco ouvi depois de ser informado de que você e Maldie eram filhos de Beaton. E que Maldie quase cometeu parricídio.
— Tal pai, tal filha? Não, Maldie não se parece em nada com Beaton! — Eric afirmou veemente. — Apenas é fruto da amargura da mãe rejeitada.
— Sei disso, rapaz. E diria a ela, se pudesse encontrá-la. — Notando que Nigel e Eric desviavam o olhar, Balfour inquietou-se. — Onde está Maldie?
— Por que você acha que nós dois saberíamos de seu paradeiro? — Nigel devolveu, cruzando os braços atrás da cabeça e recostando-se na cabeceira da cama.
Parando ao lado do irmão, cuja calma excessiva o estava enlouquecendo, Balfour fitou-o fixamente.
— Onde está ela?
— Também tenho uma pergunta a lhe fazer. Por que deseja encontrá-la?
— Para conversarmos, é claro.
— Ah, claro. Você precisou de uma noite e um dia inteiro para pensar no que dizer. Nunca imaginei que seu raciocínio fosse tão lento, homem.
— Nigel — interveio Eric, nervoso —, não creio que isso seja uma brincadeira.
— Você quer acabar com minha diversão, garoto? — Nigel sorriu para o caçula.
— Desta vez, sim.
— Maldie fugiu de Donncoill de novo, não? — Subitamente, Balfour sentiu-se exausto e derrotado.
— Sim. Partiu esta manhã, em busca dos parentes, os Kirkcaldy — esclareceu Nigel.
— Mas Maldie sempre falou que os Kirkcaldy não a queriam.
— Era o que a mãe dela dizia. É óbvio que aquela maldita mulher nunca esteve muito preocupada em ser fiel aos fatos. Maldie decidiu procurar os Kirkcaldy e descobrir, por si mesma, qual é a verdade.
— Então está acabado — murmurou Balfour desejando, desesperadamente, sumir dali, ficar sozinho. Se fugisse, seus irmãos perceberiam a profundidade de seus sentimentos por Maldie. Suspeitava que ambos já houvessem adivinhado o que se passava em seu coração. Contudo, não via motivos para lhes fornecer uma prova concreta de sua decepção.
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— Acabado? — Nigel sentou-se, massageando a perna quando o movimento abrupto lhe causou um espasmo de dor. — A moça foi atrás dos parentes e você concluiu que está tudo acabado?
— Que mais poderia pensar?
— Que Maldie se cansou de esperá-lo decidir se você gostou, ou não, do que ela lhe contou.
— Ninguém poderia gostar do que ela me contou.
— Uma triste escolha de palavras a minha, confesso. Que tal "aceitar, perdoar, compreender"? Soa melhor assim?
— Eu precisava de algum tempo para digerir as informações. Por que é tão difícil alguém entender isso?
— James e eu, por exemplo, precisamos de pouco mais de alguns minutos. O que você acha que passou pela cabeça da pobrezinha quando você precisou de muito mais tempo? Você a ama e mal a conhece.
— Como poderia conhecê-la se ela não me contou quase nada a respeito de si? E o pouco que me contou era mentira?
— Não tudo! — exclamou Eric, saindo imediatamente em defesa de Maldie.
Suspirando fundo, Balfour passou as mãos pelos cabelos. Não queria conversar sobre o assunto. Queria se trancar no quarto como uma criança e lamber as feridas.
— Maldie fez sua escolha. Se desse mesmo importância à minha opinião e aos meus sentimentos, uma noite de espera não teria sido muito. Sequer se despediu de mim. Preferiu fugir. Você questionou qual seria o significado de meu longo silêncio aos olhos dela. Sendo um homem inteligente, Nigel, como supõe que eu deveria interpretar o fato de Maldie haver partido antes que pudéssemos ao menos conversar? — Batendo a porta com força, Balfour retirou-se.
— Então é o fim? — Eric indagou apreensivo.
— Não. Balfour apenas precisará de mais algum tempo para pensar antes de ir atrás dela.
— Você acha que Maldie esperará por ele?
— Sim. — Havia uma certa tristeza no sorriso de Nigel. — Mais do que gostaria.
— Só espero que estejamos certos sobre os Kirkcaldy. Maldie necessitará se sentir bem-vinda para suportar a dor de esperar por Balfour.
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Segurando a bolsa de couro com força, Maldie olhou ao redor, reparando na beleza austera do grande salão. Cruzar os portões do castelo Kirkcaldy, o antigo lar de sua mãe, fora a coisa mais difícil que jamais fizera. Agora, aterrorizada, perguntava-se se acabaria sendo posta dali para fora.
Bem no fundo do coração, reconhecia a possibilidade de Margaret haver mentido sobre sua família, assim como mentira sobre todo o resto. Porém, num inexplicável e incomum acesso de sinceridade, também poderia ter dito a verdade.
Os sentinelas nos portões a tinham observado de uma maneira estranha e não hesitaram em conduzi-la ao interior do castelo quando pedira-lhes uma audiência com lorde Kirkcaldy. Teria sido porque, como ela, muitos ali possuíam os mesmos cabelos negros e olhos verdes? Maldie apressou-se a sufocar a incipiente sensação de que voltava para casa. Até falar com o irmão de sua mãe, não ousaria alimentar sonhos inatingíveis. Se fosse rejeitada, como Margaret afirmara que iria acontecer, seu sofrimento seria ainda maior porque, por um breve instante, conhecera a alegria da consanguinidade.
Um homem alto entrou no salão enorme e sentou-se à cabeceira da mesa. Ao seu lado, com a mão apoiada no punho da espada, permaneceu de pé um rapaz mais baixo e mais magro. Ambos possuíam cabelos negros e olhos verdes.
— Você é uma Kirkcaldy? — perguntou o cavaleiro alto.
— Você é chefe deste clã? — Maldie esforçou-se para manter os ombros eretos e esconder os medos que a afligiam.
— Sim. Sou Colin Kirkcaldy. Você desejava falar comigo?
— Sim. Sou Maldie Kirkcaldy, filha bastarda de Margaret Kirkcaldy.
Considerando a expressão assombrada dos dois homens, ela teve certeza de os haver chocado terrivelmente.
— Onde está Margaret? — indagou Colin, um tanto pálido.
— Minha mãe morreu durante o último inverno.
— Você se parece com ela, tem os traços de uma Kirkcaldy.
— Porque sou uma Kirkcaldy.
— E seu pai?
— William Beaton, de Dubhlinn. Mas você não o verá, porque ele morreu poucos dias atrás, pelas mãos de Balfour Murray, lorde de Donncoill.
Para sua surpresa, Colin riu.
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— Você também tem a língua afiada dos Kirkcaldy. Venha, sente-se aqui, à minha direita. Thomas vá buscar vinho.
— Você não deveria ficar sozinho, sir.
— Acho que posso me defender dessa moça pequenina. Você não veio me matar, não é? — Colin indagou baixinho, tão logo o rapaz sumiu de vista.
— Não, embora talvez eu devesse considerar a possibilidade, se o que minha mãe disse a respeito de todos vocês for verdade.
— E o que minha irmã disse sobre nós?
Armando-se de coragem, Maldie contou tudo o que Margaret falara sobre a família. Vendo a ira transformar as belas feições masculinas, ela não teve dúvidas de que sua mãe mentira mais uma vez. Seu tio não apenas se mostrava irritado, mas magoado e bastante ofendido.
Quando Thomas retornou com o vinho, Colin o fez sentar-se à mesa e repetiu a história de Maldie. O rapaz revelou-se igualmente ultrajado.
— Parece que Margaret permaneceu a mesma criatura ignóbil até morrer — Colin murmurou desgostoso. — Se você acreditou nisso tudo, moça, por que veio até aqui?
Maldie tomou um longo gole de vinho para se fortalecer. Não podia nem começar a imaginar qual seria a atitude de seu tio quando lhe expusesse todos os fatos. Era tentador apelar para evasivas, ou apenas calar-se. Porém estava determinada a não cometer os erros recentes quando, escondendo a verdade e contando mentiras, perdera a confiança e o afeto daquele a quem amava. Desta vez, começaria e terminaria com a verdade. A verdade feia e degradante.
Muito tempo se passou antes de Maldie dar a narrativa por encerrada e Colin retomar a palavra.
— Não sei o que mais me enfurece e enoja no comportamento de minha irmã: a forma como mentiu para você, o modo como a tratou, ou a crueldade de obrigá-la a atentar contra a vida de seu próprio pai. Tudo foi odioso, mas é inconcebível pensar que uma mãe chegaria ao extremo de obrigar a filha a cometer parricídio, condenando-a assim à danação eterna.
— Não matei meu pai.
— Mas tentou.
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— Sim, tentei. — Maldie sorriu melancólica. — E fracassei. Bem, isto já não importa agora. Aquele homem merecia morrer e embora não tenha sido eu a desferir o golpe fatal, farei penitência por meu pecado.
— Aquela que deveria fazer penitências está, infelizmente, além de qualquer chance de redenção. Nunca entendi minha irmã, nunca entendi de onde vinha sua vaidade exacerbada. Creio que sua beleza a tornou egoísta, incapaz de levar em consideração os sentimentos alheios.
— Estou começando a acreditar que, às vezes, é impossível compreender o que está por trás do comportamento das pessoas.
Colin tomou a mão da sobrinha entre as suas.
— Tem uma coisa que você deve saber. Nós nunca a teríamos rejeitado. Se minha irmã houvesse se dado ao trabalho de prestar atenção em outras coisas que não fosse em si mesma, teria percebido que os Kirkcaldy sempre acolheram seus bastardos. Nenhuma criança é responsável pelos erros dos pais.
— Sim, mas nem todo bastardo é filho de Beaton.
— Para nós, não importa a identidade de seu pai. Não foi ele quem a criou e apesar de sua mãe ter levado uma vida fútil, você dá a impressão de haver se transformado numa moça sensata.
— Sensata? Passei meses correndo de um lado para o outro, tentando cravar uma adaga no peito de meu pai.
— Todos temos nossos momentos de tolice.
— Tive mais que alguns momentos — Maldie confessou, lembrando-se de Balfour.
— Bem, você pode falar sobre isso quando quiser, agora que retornou ao lar.
— Tem certeza? Você possui apenas minha palavra de que sou filha de Margaret.
— Tudo o que você disse reflete o caráter de minha irmã. E existe uma prova irrefutável. Você é a imagem de Margaret. Não é verdade, Thomas?
— Mas é claro.
— Então, sobrinha, bem-vinda ao lar.
Do alto das muralhas da fortaleza, Maldie contemplou o horizonte. Fora completa e calorosamente aceita por sua família. Apesar do seu passado, apesar do crime que quase chegara a cometer, os Kirkcaldy não escondiam a alegria de tê-la em
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seu meio. Nestas últimas duas semanas, descobrira-se cercada por genuíno afeto e bondade. Devia sentir-se mais feliz do que jamais se sentira, porém, sempre que estava sozinha, a tristeza a dominava.
— Por quem seu coração chora menina? — perguntou Colin, aparecendo ao seu lado.
— Por que meu coração deveria estar chorando por alguém? — devolveu a pergunta.
— Tenho trinta e cinco anos, mocinha. Já vi muita gente sofrendo por amor, inclusive eu mesmo, quando minha esposa morreu. Se fosse apostar, diria que você sofre por causa do senhor de Donncoill.
Maldie se esforçou para esconder a surpresa. Jamais mencionara seu envolvimento com Balfour. Como o tio pudera adivinhar? Contudo, não valia a pena esconder seus sentimentos. Passara a vida inteira sozinha, sempre resolvendo seus problemas e curando suas mágoas sozinha. Seria bom ter alguém com quem conversar.
— Talvez sim. Mas não importa.
— Tem certeza?
— Ele não está aqui, está?
— Não. A ausência pode ter muitos significados. Como estavam às coisas entre vocês dois por ocasião de sua partida?
— Nada bem.
— Por que não me conta a história desde o início? Às vezes quem está de fora enxerga a situação com mais clareza.
O argumento sólido a inspirou a desabafar. Se o tio pudesse ajudá-la, de alguma maneira, a superar a dor, valia a pena arriscar-se a ouvir as palavras de censura que seu comportamento, sem dúvida, merecia. Ao terminar o relato, a expressão colérica de Colin não deixava dúvidas de que o desiludira.
— Imagino que eu tenha seguido os passos de minha mãe.
Sinto muito havê-lo decepcionado.
— Não, não é por isto que estou furioso. Apenas me pergunto quanto tempo levarei para chegar a Donncoill e matar aquele infame.
— Não! — Maldie gritou muito pálida. — Você não pode matá-lo.
— Por que não? O maldito a desonrou.
— Não fui exatamente desonrada. Apenas pensei que poderia...
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— O quê? Agir como um homem? Desfrutar dos prazeres da carne e então partir? — Colin sorriu, lutando para esfriar a cabeça. — Apesar de ser mais corajosa do que muitos homens que conheço, você não é um homem. Uma moça não pode se deitar com qualquer um que a atraia sem pagar um preço, sem sair magoada. Foi o que lhe aconteceu, não?
— Bem... sim... um pouco. Tolamente, achei que poderia desfrutar da paixão e depois partir. Era uma paixão arrebatadora. Não fui forte o bastante para resistir.
— Ninguém merecia mais a felicidade do que você. Porém seria bom se houvesse pensado nas consequências.
— Pensei nas consequências. Na época, eu me preparava para matar Beaton e começava a achar que não sobreviveria depois de cumprir a promessa feita à minha mãe. Que importância tinham as consequências? Não é culpa de Balfour eu sentir algo mais que simples desejo.
— Não. Mas por culpa dele você experimentou o gosto da paixão. Ele se aproveitou do seu desejo.
— Não, não foi assim. Balfour estava tão inseguro quanto eu mesma, porque temia repetir os erros do pai. Balfour é um homem que preza a verdade acima de tudo e eu frequentemente o enganei com minhas mentiras.
— Você dá a impressão de não esperar que ele venha procurá-la.
— Sim. O que eu queria era que você me aconselhasse, dissesse qualquer coisa que me ajudasse a superar esse amor.
— Infelizmente não há remédio para coração partido. — Colin a abraçou apertado.
— Dizem que o tempo cura todas as feridas.
— Sim, às vezes demora uma eternidade.
— Você não está me ajudando muito, tio — ela murmurou, sorrindo embora quisesse chorar.
— Só existem duas coisas que eu poderia fazer para ajudá-la. Uma é matar o canalha, a outra é arrastá-lo até aqui e obrigá-lo a desposá-la.
— Eu não suportaria se Balfour fosse morto, em especial por um parente meu. E só aceitaria para marido um homem que desejasse se casar comigo de livre e espontânea vontade.
— Eu também poderia ir a Donncoill incutir um pouco de bom senso na cabeça do rapaz.
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— Seria mais fácil trazê-lo até aqui na ponta da espada.
— Sinto muito, menina.
— A culpa não é sua. Tampouco de Balfour. Quis o destino que eu entregasse meu coração a um homem que não suporta mentirosas e, na ocasião em que nos conhecemos, eu estava atolada em mentiras. Não, devo aceitar a derrota. Apesar de amar Balfour, tudo o que ele sentiu por mim foi paixão.
— Então o homem é um tolo.
— Talvez, no futuro, eu venha a pensar assim também e, então, poderei esquecê-lo. Por enquanto, serei obrigada a viver com a dor deste amor não correspondido, sabendo que a culpa é toda minha.
— Seus pecados não foram assim tão grandes. Se lorde Murray a ama, perdoará suas mentiras. Se não perdoar, é porque não a merece. E será ele a sair perdendo.
— Obrigada. — Ficando na ponta dos pés, Maldie beijou o tio no rosto. — Não tema, não vou me desesperar esperando-o vir à minha procura. Minha mãe, mesmo desmiolada, me ensinou uma lição preciosa: sobreviver a qualquer custo. Pode demorar um pouco, mas não serei vencida. Arrancarei o belo cavaleiro da minha cabeça e do meu coração.
— Se você demorar um pouco mais, a moça vai esquecê-lo — falou Nigel, observando o irmão andar de um lado para o outro do quarto, como fera enjaulada.
— E o que o leva a pensar que ela já não me esqueceu?
Durante as últimas três semanas Balfour tentara, com todas as forças, tirar Maldie da cabeça e do coração. Luta vã. Para piorar, Eric e Nigel não demonstravam nenhuma simpatia por seus temores e mesmo James não hesitara em lhe dar uma ou duas sugestões de como agir. Agora começava a se perguntar se todos não estariam certos e somente ele errado.
— Por que Maldie já o teria esquecido?
— Talvez porque tenha partido sem sequer se despedir de mim?
— Foi você quem não a procurou, quem passou uma noite e um dia inteiro pensando sobre como lidar com o que ela lhe contou. Claro que a pobrezinha imaginou que acabaria rejeitada. Quantas vezes preciso repetir o óbvio?
— Você a faz parecer uma garotinha tímida, capaz de fugir por temer uma palavra áspera. Maldie não é tímida.
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— Ela não fugiu por temer uma palavra áspera e sim por temer o que você poderia dizer-lhe.
— Não quero ir atrás dela, pronto para entregar meu coração, e então descobrir que meu amor não é correspondido. Afinal, magoei-a muito ao acusá-la injustamente de crimes os quais não cometeu. Acusei-a de tentar matar o próprio pai.
— Maldie planejava matar o maldito — devolveu Nigel, quase aos gritos na ânsia de fazer o irmão raciocinar.
— Sim, porque estava presa ao juramento feito à mãe. Eu lhe roubei a chance de cumprir essa promessa.
— O que é ótimo.
— Mas Maldie pensaria assim?
— Creio que sim. Você terá que lhe perguntar.
— Você não me dará sossego, não é?
— Não.
— Pois eu achava que você preferiria que Maldie e eu não nos casássemos.
— Confesso que não pretendo dançar em seu casamento, porém quero muito vê-los felizes. Vocês foram feitos um para o outro. O destino lhe sorriu ao mandar-lhe Maldie para companheira.
— Você acredita que ela ainda esteja com os Kirkcaldy? — Diante da expressão culpada de Nigel, Balfour logo imaginou o resto. — Maldie lhes mandou notícias.
— Sim. Eric e eu lhe pedimos para nos comunicar seu paradeiro. Precisávamos saber onde encontrá-la quando você, finalmente, resolvesse agir. Pelo visto, Margaret também mentiu sobre a família.
— Os Kirkcaldy teriam acolhido Maldie?
— Sim, com muita alegria, e lhe proporcionado uma infância feliz. Não havia necessidade de Maldie viver como viveu assistindo à mãe se transformar numa prostituta vulgar.
— A pobrezinha já enfrentou momentos duros e não fiz muito para poupá-la. E agora, quando for procurá-la, serei obrigado a enfrentar todo o clã.
— Não use isto como desculpa para adiar a jornada. Para sua própria surpresa, Balfour riu. Na verdade, ao tomar a decisão de partir, livrara-se da tristeza que o abatera desde que Maldie abandonara Donncoill. Ainda existia a possibilidade de tê-la perdido, mas tentaria reconquistá-la. Para o bem, ou para o mal, enfim encontraria respostas para suas dúvidas e receios.
Hannah Howell 176 Destinos ao Vento
— Marcharei para a fortaleza Kirkcaldy amanhã.
— Você quer que eu ou James o acompanhemos?
— Irei sozinho.
— Sozinho?
— Sim. Se Maldie for cuspir na minha cara e me mandar para o inferno, prefiro sofrer a humilhação sem testemunhas.
Praguejando em silêncio, Balfour sorveu o resto da cidra que lhe havia sido servida com relutante hospitalidade. Enfrentara uma longa jornada até a fortaleza Kirkcaldy e tudo o que queria era achar Maldie e arrastá-la de volta para Donncoill. Via-se agora sentado num salão imenso e bem cuidado, cercado por uma dezena de homens de cabelos negros e olhos verdes, todos o encarando como se o considerassem uma ameaça. Colin Kirkcaldy, chefe do clã, dava a impressão de estar a ponto de vará-lo com sua espada e começava a se perguntar quanto Maldie contara ao tio.
— Obrigado pela bebida — agradeceu, depositando o cálice vazio sobre a mesa de carvalho. — Ajudou-me a espantar o cansaço da viagem. Por favor, onde posso encontrar Maldie, pois desejo falar-lhe.
— Sobre o quê? — interrogou lorde Kirkcaldy áspero, fitando-o fixamente. — Você segurou a moça durante meses em Donncoill. Com certeza teve tempo suficiente de dizer o que bem quisesse. E tempo suficiente para dizer àquilo que não deveria.
— Talvez, sir, na época, eu ainda não soubesse exata-mente o que desejava dizer.
— E talvez, agora que ela retornou ao lar, já não queira mais ouvi-lo.
— Verdade. Que mal pode haver em me permitir falar-lhe? Creio que Maldie tem coragem bastante para responder sim ou não às minhas perguntas.
— Minha sobrinha tem mais coragem do que muitos homens que conheço. Aquela menina tem tido uma vida dura e duvido que algum dia nos contará tudo o que sofreu. Foi rejeitada pelo pai, embora tenha sido melhor assim, e tratada vergonhosamente pela mãe. Minha irmã sempre teve mais orgulho que bom senso. Margaret deveria ter voltado para casa com a filha, não sumido, fazendo-nos julgá-la morta. Seu maior crime foi levar a criança a pensar que nós jamais a acolheríamos que lhe daríamos as costas.
— Não. O maior crime daquela mulher foi o de criar Maldie para ser a espada da vingança.
Hannah Howell 177 Destinos ao Vento
— Você está a par dessa história? — Colin tornou a encher o cálice de Balfour, observando-o com redobrada atenção.
— Sim, mas infelizmente levei algum tempo para absorvê-la e entendê-la. Na ocasião, estava consumido pela idéia de derrotar Beaton e salvar meu irmão.
— O irmão de Maldie.
— Sim, e meu também. Não se pode pôr de lado alguém a quem amamos durante treze anos, não se pode deixar de considerá-lo um irmão apenas porque não possuímos o mesmo sangue.
— Mas você não disse nada disso ao saber da verdade. Más, parece-me que se fechou num prolongado silêncio.
Recostando-se no espaldar da cadeira, Balfour sentiu a confiança retornar. Colin Kirkcaldy estava disposto a ouvir suas explicações. Só não compreendia por que o cavaleiro insistia em conhecer detalhes de seu relacionamento com Eric. Talvez porque o rapaz e Maldie fossem meio-irmãos?
— Ainda saboreando a vitória sobre Beaton, fui informado de que a mulher que eu desejava era filha do homem que eu havia acabado de matar, assim como o garoto que eu sempre chamara de irmão. Talvez eu seja um pouco lento para assimilar certas coisas porque não possuo personalidade impulsiva. Costumo pensar muito antes de agir.
— Já se passou quase um mês desde a derrota de Beaton, meu amigo. E Donncoill não fica muito longe daqui.
— Tenho cavalos lentos — Balfour murmurou, ouvindo risadas abafadas. — O fato é que Maldie sequer se despediu é mim. Simplesmente partiu. Sem uma palavra, sem um ateus, sem nada. Fui obrigado a procurar sozinho, respostas pira o que ela havia feito explicações para a partida súbita. O fardo maior sobre meus ombros era o conhecimento de que eu havia matado o pai dela.
— Minha sobrinha não se importava com o canalha.
— É o que ela disse, é o que todos não cessam de me repetir. Ainda que seja verdade, roubei de Maldie a chance de executar uma vingança longamente preparada. Impedi-a de cumprir sua promessa à mãe moribunda.
— Se isso a estivesse incomodando, Maldie o teria feito saber. — Colin cruzou os braços sobre o peito. — Sabe o que eu acho? Que você estava emburrado como um menino. Você realmente esperava que nossa Maldie iria se sujeitar a ficar dia após dia aguardando-o decidir-se se a queria, ou não?
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— Eu só precisava de um ou dois dias para digerir a idéia de que minha amante era filha de meu pior inimigo e que meu irmão não era meu irmão. Isso sem contar o fato de que Maldie admitiu haver mentido para mim desde o primeiro momento em que pôs os pés em Donncoill.
— Mas você não confiou nela durante todo o tempo.
— Não. Porém minhas suspeitas não se revelaram de todo infundadas. Maldie escondeu muitos segredos enquanto esteve em meu castelo e mentiu sistematicamente para mim. Reconheço que errei também. Apesar de compreender sua preocupação, acho que nossa conversa, por enquanto, chegou ao fim. O que tenho a dizer a Maldie agora é somente entre mim e ela.
— Minha sobrinha está na margem direita do lago. Balfour levantou-se, surpreso.
— É isto, então? Você não vai me perguntar sobre minhas intenções?
Lorde Kirkcaldy sorriu.
— Sem dúvida são honrosas, ou você não teria vindo atrás da moça e se sentado à minha mesa, tentando responder, pacientemente, às minhas perguntas, às vezes impertinentes. Veja se consegue trazer Maldie para casa antes do jantar. A pobrezinha não tem se alimentado como deveria.
Maldie largou o anzol sobre a relva macia e suspirou fundo. Desde que chegara ao castelo de sua família, acostumara-se a passar várias horas do dia junto ao lago, pescando. Na verdade, fingia pescar, porque ia em busca de um pouco de solidão.
Parte de si exultava de alegria por haver sido tão calorosamente acolhida pelo clã. Outra parte ainda tinha dificuldades para se adaptar à convivência com tanta gente falante, afetuosa e agitada. Afinal, passara a vida inteira ao lado de uma mãe taciturna, que a ignorara durante a maior parte do tempo.
Balfour continuava presente em seus pensamentos e isto a enfurecia. Um mês se passara desde que se tinham visto pela última vez e não fora capaz de tirá-lo da cabeça. Continuava amando-o a despeito de si mesma.
Apesar de querer odiá-lo, de querer culpá-lo, reconhecia que agir assim seria injusto. Ela nunca lhe fizera promessas, nunca falara de amor, ou de compromisso.
Um ruído súbito às suas costas. O choque a fez levantar-se, os joelhos trêmulos quase não a sustentando de pé. Devia estar sonhando.
Hannah Howell 179 Destinos ao Vento
— Por que você está aqui? — indagou, lutando para controlar as emoções. Não se permitiria alimentar esperanças porque uma nova decepção a destruiria.
— Vim procurá-la. — Balfour deu um passo à frente, diminuindo a distância que os separava. — Você partiu sem dizer adeus, doce Maldie.
— Ninguém gosta dos portadores de más notícias. Como está Eric?
— Bem. Recuperado dos ferimentos. O que você pensou que eu ia fazer com o garoto?
— Nada de mal, claro. Apenas estava preocupada com ele, depois da provação pela qual passou. De repente, tudo em que Eric acreditava desmoronou. Tive medo de como você e os outros poderiam reagir.
— Eric é meu irmão. Não termos o mesmo sangue não muda o que sinto. Continuo a amá-lo. Não foi difícil para mim entender a profundidade de meus sentimentos em relação a ele. Só não entendi por que você mentiu para mim e por que não teve coragem de me enfrentar face a face.
— Não pensei que você gostaria de me ver novamente, depois do modo como o enganei.
Atraindo-a para si, Balfour a abraçou com força.
— Não lhe ocorreu, uma única vez, que eu poderia querer saber o motivo de tudo?
— Contei-lhe depois da batalha. — Embora se esforçasse para permanecer indiferente, para resistir, Maldie apoiou a cabeça no peito largo e o enlaçou pela cintura. — Confessei-lhe tudo.
— Ah, sim, você começou com as notícias mais chocantes. Explicou ser filha de Beaton, falou sobre o juramento que a obrigava a matar o próprio pai e concluiu dizendo que meu irmão não era meu irmão. Como você achou que eu conseguiria prestar atenção em qualquer outra coisa depois do impacto dessas informações?
— Bem, realmente não importa como você aceitou, ou não, a verdade, porque uma coisa não mudou. Continuo sendo filha de Beaton, seu maior e mais antigo inimigo.
Para Balfour, a identidade do homem que gerara Maldie não tinha a menor importância. O sangue de Beaton não a contaminara, não a impedira de desabrochar, de se transformar numa mulher bela de corpo e alma.
Mas, naquele momento, não estava com vontade de conversar. Há séculos não a beijava, não a tocava. Inclinando-se, beijou-a de leve na boca.
Hannah Howell 180 Destinos ao Vento
Por um breve instante Maldie pensou em se afastar. Ainda não haviam dito o que precisavam dizer um ao outro. Ainda sequer sabia por que ele fora procurá-la. Mas, a pressão dos lábios insistentes minou suas defesas. Trêmula, retribuiu a carícia.
— Temos que conversar — ela murmurou, numa última tentativa de conservar a razão.
— E conversaremos. — Balfour a fez deitar-se sobre a relva, já começando a despi-la.
— Por que não agora?
— Porque já não estou conseguindo raciocinar com clareza. — Depois de contemplar os seios alvos, ele tomou um dos mamilos róseos na boca e sugou-o.
Maldie gemeu baixinho. Mesmo se Balfour houvesse ido procurá-la atrás apenas de mais umas poucas horas de paixão carnal, mesmo se ele a abandonasse em seguida, seu sofrimento não seria maior do que quando partira de Donncoill, certa de que nunca mais tornaria a vê-lo. Pelo menos teria estes últimos momentos de doçura intensa, antes de fechar-se para o mundo e para a vida.
Carícias urgentes, beijos sôfregos, mãos ávidas. Enlouquecidos de desejo, os dois não tardaram a atingir o clímax e, por um instante, perderam a noção de tempo e espaço.
Aos poucos, o torpor da saciedade se dissipou e Maldie tornou-se dolorosamente consciente da própria nudez. Embaraçada, vestiu-se depressa, o olhar abaixado. Daquela vez, ambos haviam permitido que a paixão os dominasse, os cegasse por completo, quando ainda havia tanta coisa que não fora dita, tantas perguntas não respondidas. Nem sequer sabia por que Balfour a procurara ali. E se ele só pretendera possuí-la e então partir, não poderia culpá-lo. Agira como uma tola, entregando-se sem pensar nas consequências.
— Você está pensando o pior a meu respeito, não é? — disse Balfour, terminando de vestir-se. — Creia-me, querida, eu não teria enfrentado uma jornada tão longa somente para nos deitarmos juntos, embora tenha sido delicioso.
— Desculpe-me. — Maldie esboçou um pequeno sorriso. — Como sempre, deixei-me conduzir pelo desejo sem questionar se era a coisa certa, ou sensata a fazer. Parece que nunca faço a coisa certa.
— Ah, você faz sim. — Balfour a abraçou, terno.
— Eu o traí.
Hannah Howell 181 Destinos ao Vento
— Não, apesar de eu ter achado que sim durante algum tempo. Quisera encontrar as palavras certas para dizer-lhe o quanto lamento o sofrimento que lhe causei com minhas desconfianças. Mas não, você não me traiu. Em nenhum momento revelou meus segredos, ou prejudicou meu clã. Você apenas mentiu.
— Apenas menti? — Maldie repetiu, surpresa.
— Sim. Aliás, você simplesmente evitou me dizer a verdade, ou então negou-se a responder algumas de minhas perguntas. Quando consegui ficar calmo o bastante para enxergar além da minha raiva e dor, analisei tudo o que você havia me dito, cada uma de suas palavras. As mentiras que você me contou foram para encobrir a verdade. Você não queria que eu descobrisse quem era seu pai e fez bem em agir assim. Se, logo no primeiro momento, eu tivesse sabido, nunca teria confiado em você, nunca teria acreditado que você não planejava ajudá-lo. — Balfour balançou a cabeça. — É injusto considerar o filho responsável pelos erros do pai, ou da mãe.
— Depois do mal que Beaton lhe causou, você teria motivos para desconfiar de tudo e de todos. — Maldie o beijou no rosto, embriagada de felicidade. Balfour não somente a perdoara por tê-lo enganado, como compreendia os motivos que a tinham levado a mentir-lhe. — Contei-lhe tão pouco a respeito de mim mesma, que tornou-se difícil para você decidir sobre minha culpa ou inocência. E você teria acreditado se eu lhe houvesse confessado que planejava matar Beaton para cumprir uma promessa?
— Não. É duro acreditar que uma filha estaria disposta a matar o próprio pai, ainda que esse pai fosse alguém como Beaton. Também seria difícil crer que uma mulher compassiva e delicada como você se empenharia em levar essa vingança até o fim.
— Provavelmente foi melhor eu haver fracassado.
— Sem dúvida. Embora você estivesse amarrada à promessa feita à sua mãe e Beaton merecesse morrer, nada justificaria você arriscar a salvação de sua alma. Durante algum tempo eu não sabia qual fardo pesava mais em meus ombros: tê-la impedido de consumar sua vingança, ou haver matado seu pai. Então, comecei a alimentar esperanças de que, talvez, você não me culpava de nenhuma dessas coisas.
— Como poderia culpá-lo? Enfim eu começava a enxergar quem era realmente minha mãe. Margaret nunca me amou. Apenas usou-me para matar meu pai. Passei minha vida toda tentando ignorar a verdade para me proteger da dor de mais uma rejeição.
Balfour abraçou-a, desejando poder dizer algo que aplacasse tanto sofrimento.
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— Margaret e Beaton perderam a oportunidade de ser amados por uma filha maravilhosa, da qual teriam se orgulhado. — Ele sorriu ao vê-la corar. — Infelizmente não podemos escolher nossos próprios pais, mas você, apesar do que o destino lhe impôs, tornou-se uma bela mulher, por dentro e por fora.
— É melhor você parar de falar assim, ou vou acabar chorando.
Rindo, ele a beijou na testa.
— Bem, acho que é hora de dizer-lhe por que vim procurá-la. Tudo o que você precisará fazer é responder sim, ou não. Quero levá-la comigo para Donncoill. Preciso de você ao meu lado. Quero-a para minha esposa e castelã de Donncoill.
Maldie teve que se conter para não gritar "sim" imediatamente. Ele dissera muito, porém não o bastante. Balfour desejava-a, estava pronto para desposá-la. Entretanto, não mencionara o amor. Por um instante perguntou-se se conseguiria fazê-lo confessar seus sentimentos antes de ser obrigada a tomar a iniciativa. Mas os homens costumam refutar em expor a alma, costumam ter vergonha de abrir o coração. E mesmo se Balfour a amasse, existia a possibilidade de que só viesse a se declarar dali a muitos anos.
— Quero me casar com você, contudo, talvez minha resposta seja não. Você falou de desejo, de necessidade. Mas há algo que não sabe a meu respeito. Algo que me esforcei para esconder. Eu te amo, Balfour Murray. Amo-o com todas as minhas forças, desde o primeiro instante. Talvez não faça sentido para você, mas, não posso desposá-lo se esse sentimento não for recíproco.
— Ah, minha linda tola. — Ele a esmagou contra o peito, num abraço apaixonado. — Você terá muito amor, possivelmente mais do que desejaria em alguns momentos.
— Você me ama? — Maldie indagou num sussurro emocionado.
— Sim, eu a amo. Desde o primeiro instante em que a vi. Então sua resposta é sim? Você se casará comigo?
— Sim. — O beijo ávido foi interrompido pelo som repentino de uma trombeta. — É o sinal de caçada? — ela indagou, olhando ao redor.
Rindo, Balfour terminou de vestir-se.
— Parece que seu tio Colin está nos mandando um aviso. Se não aparecermos logo no castelo, a caçada começará.
Hannah Howell 183 Destinos ao Vento
Feliz como nunca imaginara possível, Maldie trançou os cabelos. Já não estava só no mundo. Tinha parentes que a amavam, que se preocupavam com sua segurança. E que a manteriam sob estrita vigilância.
— Acho que os dias até nosso casamento vão ser muito longos — falou, vendo um grupo de Kirkcaldy aparecer do meio do nada para acompanhá-los até o castelo.
— Muito longos mesmo — Balfour concordou, desanimado.
Capítulo XII
Trêmula, Maldie olhou-se no espelho. Estava pronta para seu casamento.
Sentia-se atordoada, num misto de nervosismo e felicidade. Um mês se passara desde que Balfour fora buscá-la na fortaleza Kirkcaldy. E embora houvesse passado a residir em Donncoill, os dois nunca mais haviam tido uma chance de ficarem a sós, seu tio, e um número crescente de parentes, que foram chegando com antecedência para as bodas, revezavam-se na tarefa de mantê-los sob constante vigilância até a noite de núpcias.
Uma batida na porta e Colin entrou, alegre e bem-humorado como de costume. Maldie ainda encontrava dificuldade para perdoar a mãe por tê-la impedido, durante anos, de desfrutar da companhia daquele cavaleiro bom e generoso.
— Não escondi Balfour debaixo da cama — ela brincou.
— Eu sei. Acabei de vê-lo em seu quarto, andando de um lado para o outro.
— Andando de um lado para o outro? Então ele está preocupado. Será que mudou de idéia sobre o casamento?
Colin riu ante a insegurança da sobrinha.
— Não, menina. Nós homens sempre ficamos nervosos no dia de nosso casamento. Afinal, estaremos assumindo um compromisso sério, perante Deus e nossos semelhantes. — De súbito, ele notou o sinal de nascença no ombro de Maldie, exposto pelo decote do vestido. — E uma linda marca na sua pele.
— A marca de Beaton. Minha mãe costumava dizer que era um sinal do meu sangue ruim.
— Sua mãe não passava de uma tola, amarga e insensível. O senhor de Dubhlinn podia ser um canalha, mas nem todos os Beaton o são. O jovem Eric também não é um Beaton?
Hannah Howell 184 Destinos ao Vento
— Sim. E possui na pele o mesmo sinal que eu carrego.
— Entretanto, trata-se de um menino a caminho de se tornar um homem íntegro. Responda-me, você tem orgulho de ser uma Kirkcaldy?
— Claro.
— Bem, como já lhe disse antes, nosso clã sempre teve sua cota de pecadores. Alguns traidores, ladrões, assassinos. Acredite-me, querida, os Murray também já tiveram seus canalhas. Você se transformou numa mulher honrada, apesar de seus pais. Tenha orgulho disso.
— Obrigada, tio — Maldie murmurou, os olhos marejados de lágrimas.
— Você não está acostumada a ouvir elogios. — Não se tratava de uma pergunta e sim de uma declaração.
— Não importa.
— Oh, importa sim. Uma criança precisa se sentir valorizada para crescer saudável e forte, de corpo e alma. Por passar a vida inteira privada de merecidos elogios, você se tornou tão insegura que chegou ao extremo de pensar que seu homem pode estar desistindo do casamento. Creia-me, lorde Murray não poderia ter escolhido uma noiva mais bela e mais dotada de qualidades.
— Maldie já devia estar aqui — reclamou Balfour pela enésima vez, parado a poucos metros do altar erguido no salão principal.
Revirando os olhos, Nigel encostou-se na parede.
— Calma, o tio dela foi buscá-la. Veja, lá está sua noiva. Ao ver Maldie, Balfour prendeu a respiração. O vestido verde-água moldava as curvas sinuosas do corpo mignon de maneira sutil e sensual, os cabelos negros, presos numa única trança, estavam enfeitados com pequeninas pérolas. Jamais a vira tão bela. Jamais amara e desejara tanto uma mulher.
— Esta é sua última chance de voltar atrás, querida — falou baixinho, tomando-a pela mão. — Depois de pronunciar seus votos, você nunca mais poderá escapar de mim.
Embevecida, Maldie contemplou aquele que logo seria seu marido. Impressionantemente alto e másculo, Balfour possuía uma elegância inata, que o fazia se destacar onde quer que estivesse. Não havia ali um único cavaleiro tão bonito ou atraente. Ainda não conseguia entender como fora capaz de atrair a atenção de um homem como ele.
Hannah Howell 185 Destinos ao Vento
— Esta é também sua última chance de voltar atrás, sir. Lembre-se de que se tentar fugir, eu consigo correr mais depressa ainda.
Rindo, ele a beijou de leve nos lábios antes de conduzi-la até o altar. Ao ajoelhar-se ante o sacerdote, Maldie olhou a multidão ao redor. Kirkcaldy e Murray, dois clãs que agora formavam uma aliança. Eric junto de seu tio, ambos sorrindo-lhe. Nigel, também sorrindo, mas melancólico. Não havia nada que pudesse fazer por ele, exceto rezar para que superasse a decepção de um amor não correspondido. Então, Balfour começou a dizer, perante Deus, que a recebia como esposa e tudo o mais deixou de existir. Não queria perder uma única palavra.
Balfour ainda ria de alguma bobagem que Colin falara, quando Nigel surgiu ao seu lado. Percebendo um certo desconforto entre os irmãos, lorde Kirkcaldy afastou-se, para que pudessem conversar a sós. Balfour havia esperado que Nigel vencesse seus sentimentos por Maldie ou, pelo menos, aprendesse a conviver com eles. Agora, começava a recear que a situação não se resolveria assim tão facilmente.
— Parabéns, irmão, e muitas felicidades.
— Obrigado. Porém não é só isso que você quer me dizer, é? — Balfour perguntou, temendo ouvir a resposta.
— Estou de partida.
— Não vá. Em nenhum momento lhe pedi para se afastar de Donncoill.
— Sim, eu sei. Preciso partir. Estou verdadeiramente feliz por você e Maldie. Qualquer um pode notar como é grande o amor que os une. Eu achei que poderia aceitar isso, superar a desilusão. Mas, será difícil conseguir se permanecer aqui.
— A última coisa que eu queria era afastá-lo de seu lar.
— Você não está me afastando. Apenas resolvi viajar durante algum tempo. Será mais fácil virar essa página longe daqui. Eu não suportaria magoar você, ou Maldie, de alguma forma. Não suportaria destruir a amizade que nos une.
— Para onde você irá?
— Para a França. Os franceses estão dispostos a pagar qualquer escocês que queira lutar contra os ingleses. E não me olhe assim. Não pretendo partir para a guerra porque busco a morte. Apesar de apaixonado pela esposa de meu irmão, continuo gostando muito de mim para querer morrer.
— Você ficará para a festa de amanhã?
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— Não. Partirei ao amanhecer, na companhia de alguns Kirkcaldy que também estarão embarcando para a França. — Nigel abraçou o irmão com força. — Não ficarei longe para sempre. Não sou tão idiota a ponto de pensar que as dores do coração não têm cura. Voltarei um dia. Agora vou me despedir de Eric.
Absorto, Balfour observou o irmão desaparecer no meio da multidão. E quando Maldie apareceu ao seu lado, preferiu não dizer-lhe nada por enquanto. Por que roubar a alegria de um dia tão importante?
— Você acha que conseguiremos escapulir sem sermos vistos? — ele indagou a meia voz.
— Duvido. Há gente demais aqui dentro para passarmos despercebidos.
— Então façamos uma saída triunfal. — Tomando-a no colo, Balfour atravessou o salão lotado sob uma salva de palmas, gritos e assobios.
— Um de nós tem uma família enorme. — Ela riu quando o marido trancou a porta do quarto e jogou-a na cama.
— Esse castelo era imenso, até os Kirkcaldy começarem a chegar. A propósito, esposa, você estava linda neste vestido.
— Sim, eu estava — ela murmurou lânguida, deixando-se despir. — Cuidado para não rasgá-lo.
— Estou tendo cuidado. Não o arranquei com os dentes, conforme pretendia.
— Faz muito tempo que não ficamos juntos.
— Uma eternidade.
— Hoje é nossa noite de núpcias. Talvez devêssemos ter sido mais comedidos. O que aquela gente lá embaixo vai pensar de nós?
— Estou faminto, esposa. Contive-me o quanto pude. Cheguei ao meu limite.
— Eu também. Porém agora, casados, creio que um de nós precisa aprender a ter um pouco mais de controle. — As ações de Maldie desmentiam suas palavras. Atirando-se sobre o marido, ela praticamente destruiu as roupas que o cobriam, expondo o corpo viril às suas mãos e aos lábios ávidos.
Eles fizeram amor com uma paixão que beirava a insensatez. Bocas unidas, peles suadas, corações acelerados, dedos entrelaçados. Assim alcançaram o clímax, certos de que um era para o outro o próprio ar que respiravam.
— Ah, querida, minha doce sedutora — Balfour murmurou, horas depois. — Nesta nossa primeira noite de casados, eu pretendia possuí-la lenta e gentilmente, não arrastá-la para sensações ensandecidas.
Hannah Howell 187 Destinos ao Vento
— Também tentei ir devagar, mas acabei mostrando não ter controle nenhum sobre meus impulsos. A culpa é do meu tio. Se ele não nos tivesse mantido separados até o dia de nosso casamento, não estaríamos tão desejosos. Mas não se preocupe, posso esperar pelo sexo lento e gentil. Temos uma vida inteira pela frente.
— Sim. — Fitando-a fixamente, Balfour falou: — Há algumas coisas que preciso lhe dizer. Eu deveria ter lhe dito antes de pedi-la em casamento, porém temi que você ficasse zangada e respondesse não.
Por um instante Maldie foi dominada pelo medo. Então obrigou-se a se acalmar. Lorde Murray era um homem bom e justo. Sem dúvida não guardaria segredos sombrios e imperdoáveis. Aliás, quem guardara segredos quase imperdoáveis fora ela.
— São coisas más a seu respeito o que você tem a me contar?
— Não. Mas, é possível que você não vá pensar bem de mim.
— Fale logo, então. Esta não é uma noite para ficarmos irritados, mas também é a noite perfeita para abrirmos à alma. Conte-me tudo.
— Você se lembra da primeira vez que partilhamos essa cama?
— Pergunta tola. Claro que sim. Você disse que não poderia mais continuar com aquele jogo de sedução, que não conseguia mais reprimir o desejo que sentia por mim e tinha que satisfazê-lo.
— E era verdade. Porém apenas metade da verdade. Existia um outro motivo pelo qual a pressionei para se tornar minha amante.
— Você não precisou me pressionar muito.
— Eu havia percebido o interesse de Nigel em você. Quis marcá-la naquela noite como minha, Maldie, e de ninguém mais. Quis que meu irmão soubesse que você pertencia apenas a mim. E... quis que você o soubesse também. — Balfour calou-se por um momento, surpreso por não haver sinal de raiva no rosto da esposa. — Usei o desejo que você sentia por mim a fim de arrastá-la até a cama sem considerar que talvez você ainda não estivesse pronta para se entregar.
— Essa é sua grande confissão? Você tem se preocupado com isso há meses, não? — Maldie recostou-se na cabeceira da cama, esforçando-se para não rir, pois temia insultá-lo.
— Isto e mais uma coisa.
— Conte-me.
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— Eu não precisava trazê-la para Donncoill depois de sofrer aquela derrota em Dubhlinn porque, na época, ainda não desconfiava de Grizel. Porém, quando olhei para você, desejei-a imediatamente e decidi tê-la perto de mim para seduzi-la.
— Vergonhoso.
Estreitando os olhos, Balfour observou a mulher. Maldie não parecia nem um pouco zangada, pelo contrário. Dava a impressão de divertir-se com a história.
— E por último...
— Há mais?
— Já lhe falei de quando suspeitei de que você estava me traindo. Mas não expliquei todos os motivos que me levaram a julgá-la uma espiã. Parte de mim simplesmente não conseguia entender como você pudera me escolher, tendo Nigel aos seus pés.
Maldie arregalou os olhos e enterrou o rosto no travesseiro. Apavorado, Balfour odiou-se por tê-la levado às lágrimas. Nunca a vira chorar antes... Então, os sons abafados foram ficando mais distintos.
— Querida, você está rindo? — indagou num misto de espanto e confusão.
Ela ergueu o rosto, iluminado por um sorriso radiante.
— Desculpe-me se o ofendi rindo, porém nunca me passou pela cabeça que seus graves pecados seriam esses.
— Agora você está se divertindo às minhas custas — ele murmurou, sentindo-se relaxado pela primeira vez desde que decidira confessar-lhe toda a verdade. — Somos marido e mulher. Quis começar nosso casamento somente com a verdade entre nós.
— Uma decisão elogiável. Porém você se preocupou sem razão. Talvez seu comportamento inicial não tenha sido muito honroso, porém não é nada comparado às mentiras que lhe contei.
— Ainda assim não estava certo valer-me de todos os meios para seduzi-la.
— Calma, meu amor. Eu também o desejei desde o primeiro momento em que o vi. Talvez eu não tenha me valido de todos os meios para seduzi-lo, mas fiz o possível para conquistá-lo. Portanto, pare de se culpar.
— Você perdoa as faltas de seu marido com muita facilidade.
— Quando essas faltas são me desejar loucamente e tentar me seduzir, não é difícil perdoar.
— Eu a amo, Maldie Murray.
Hannah Howell 189 Destinos ao Vento
— Estou tão feliz, que temo acordar de um sonho. Só tem mais uma coisa que eu gostaria de dizer, antes de tornarmos a nos entregar às delícias da noite de núpcias.
— Mais confissões?
— Não se trata disso. Eu o vi conversando com Nigel depois da cerimônia e tive a impressão de que falavam sobre algo sério. Há algum problema que eu ainda não saiba?
— Não e sim. Não estamos enfrentando nenhuma ameaça externa. Não existe nenhum inimigo querendo me matar, ou se apossar de nossas terras. O problema está dentro de nossa família. Nigel partirá amanhã cedo.
— Por quê? — Maldie perguntou, embora adivinhasse a resposta.
— Pretende se aliar aos franceses na luta contra os ingleses.
— Oh, eu sinto muito.
— A culpa não é sua, querida.
— Claro que sim. Seu irmão está partindo por minha causa.
— Não. Você nunca fez nada para encorajá-lo. Nigel apenas precisa de algum tempo sozinho para superar esse sentimento.
— Espero que ele volte em breve, pois seu lugar é aqui, em Donncoill, junto de você e de Eric. Talvez ele possa encontrar aquilo que procura na França.
— Assim como encontrei minha felicidade na estrada para Dubhlinn. — Balfour inclinou-se e beijou-a na boca. — Eu a amo, minha bela sedutora de olhos verdes.
— Não mais do que eu a amo.
— Você está me desafiando, milady? — Sorrindo, Balfour a segurou pelos pulsos, imprensando-a na cama com o próprio corpo.
— Sim, estou. Você é homem suficiente para aceitar meu desafio?
— Poderia levar muito tempo para decidirmos quem é o vencedor.
— Temos a vida inteira — ela murmurou sensual. — E não consigo pensar numa maneira melhor de passar nossos anos juntos do que mostrando um ao outro o quanto nos amamos.
— Nem eu, Maldie Murray. Nem eu.
Fim.
