E
u tinha alguma esperança de que fosse me sentir menos miserável quando saísse do acampamento. Eu achei mesmo que estava deixando todos os meus problemas e frustrações para trás, mas me enganei muito. Na verdade, eu estava me sentindo ainda pior: morrendo de frio, com um olho roxo, excluído do restante do grupo e tudo isso dentro de uma caverna em International Falls, Minnesota.Como se eu já não estivesse com frio o bastante, John ainda fez questão de nos informar que aquele era o segundo lugar mais frio dos EUA. Ninguém havia pensado que iríamos precisar de casacos para um lugar como aquele; mas, felizmente, John tinha casacos extras e nos emprestou. Mesmo assim não era o suficiente e eu sentia meus ossos doerem de tanto frio.
Hector, apesar de ter, relutantemente, me pedido desculpa pelo soco, não parava de me olhar feio do outro lado da fogueira. Eu não o culpava por ter reagido daquela maneira. Ele mandou Sam ir na biga junto com John e nós dois acabamos na mesma biga. Eu sabia desde o início qual era a intenção dele: ele queria saber porque Eve e eu não falamos com ele a respeito de deixar Hannah de fora da missão. Ele nem mesmo tentou disfarçar; mal o acampamento saiu de vista e ele já foi logo perguntando "E então? O que realmente aconteceu com Hannah, Nico?". Eu repeti tipo umas quinze vezes que seria mais seguro para ela ficar no acampamento; isso porque ele encontrou umas quinze maneiras diferentes de perguntar a mesma coisa. Depois veio a parte em que ele perguntou "E por que vocês não vieram falar comigo?". Novamente, eu fiquei repetindo que não tivemos tempo e que foi tudo em cima da hora, etc. Foi só quando pousamos e nos instalamos em uma caverna nas montanhas que ele se cansou das minhas evasivas e eu me cansei da curiosidade dele. Ele disse:
- O que você está escondendo de mim e por que?
- Caramba, Hector! Isso não é da sua conta.
- Achei que nós fôssemos um grupo.
- Isso não significa que eu tenho que contar detalhes da minha vida pessoal para você.
- Acontece que isso não diz respeito só a você. Hannah deveria estar aqui e ela não está; e eu sei que ela gostaria de estar.
- Ah, é? E você está insinuando o quê?
- Que você fez algo muito errado para fazer com ela ficasse no acampamento.
Nesse instante, John, que estava ignorando completamente a nossa discussão, passou por mim e me entregou algumas coisas para que eu ajudasse a montar o nosso acampamento. Dei as costas para Hector e comecei a arrumar as coisas.
- Nico, não me obrigue a mandar uma mensagem de Íris para Hannah... – ele ameaçou.
Eu o encarei, derrotado.
- Tudo bem. Eu vou contar: eu terminei com ela. – podia parecer que eu não estava dando a menor importância ao ocorrido por causa do jeito que eu falei, mas isso era porque me doía demais relembrar aquilo.
Hector me olhou tão abismado que eu cheguei a pensar que ele havia visto algo terrível atrás de mim. Mas não. Ele realmente ficou daquele jeito por causa do que eu disse.
- Foi a maneira que eu encontrei de mantê-la fora de combate. Não queria que ela viesse conosco e sabia que ela não aceitaria ficar de fora sem um motivo...convincente. – tentei explicar e amenizar a situação, mas acabei piorando tudo.
Ele ainda tinha aquele olhar chocado no rosto, mas logo ele passou a ficar também indignado. Alguns instantes de silêncio se passaram até que ele murmurou:
- Como você pôde?
E aí Hector partiu para cima de mim, com uma fúria que eu nunca havia visto; e, apesar de John e Sam terem interferido rapidamente, ele conseguiu me dar um belo soco no olho esquerdo.
Depois foi ainda pior porque John começou a gritar com a gente. Ele estava muito estressado porque nós estávamos começando de um jeito totalmente desastroso e disse que nós íamos precisar de muita maturidade se quiséssemos ter algum sucesso na missão. Ele falou para mim e para Hector:
- Vocês dois: se acertem de uma maneira pacífica e vamos voltar ao trabalho.
Hector e eu nos encaramos com raiva, e ele disse:
- Hum. Sinto muito pelo soco. – mas, pela cara dele, estava óbvio que ele não sentia.
Terminamos de arrumar tudo e John sugeriu que descansássemos um pouco e mais tarde conversaríamos. John, Hector e Sam ficaram de um lado da fogueira; e eu, sozinho, do outro lado. Aquela briga com Hector me deixou irado: eu achava que havíamos nos tornado amigos e que ele pelo menos me ouviria, mesmo que aquilo soasse absurdo para ele. Mas depois comecei a pensar que talvez ele tivesse razão, porque eu fiz parecer que ele não fazia parte do grupo e que a opinião dele não contava. E, ainda por cima, Hector era muito amigo de Hannah; é claro que ele não ia ficar numa boa sabendo que um cara a magoou. Ele podia mesmo ter me poupado do soco, mas eu precisava reconhecer que ele tinha toda as razões para ficar com raiva de mim. Enquanto eu pensava sobre isso, Sam veio se sentar ao meu lado.
- E aí? Seu olho ainda está doendo muito? – ele perguntou.
- Não. Quem precisa de gelo quando já se está dentro de um freezer, certo?
Ele riu.
- Você é engraçado. Não fique mal por causa do meu irmão. Ele só está mais preocupado do que o normal. Vai melhorar daqui a pouco.
- Espero que você esteja certo. E espero que ele não fique chateado com você por ter vindo aqui me fazer companhia.
- Eu não consigo ficar quieto como aqueles dois ali. – Hector e John haviam pegado no sono. – Não vejo a hora de começar a lutar! É verdade que você lutou contra Cronos quando tinha a minha idade?
- Eu só ajudei na batalha; foi Percy que lutou diretamente com ele.
- Deve ser o máximo ser filho de um dos Três Grandes!
- Não é lá grande coisa. Cada semideus tem o seu valor.
- Conversa! Você é muito mais poderoso do que qualquer outro semideus no acampamento.
- Isso depende do ponto de vista.
- Como assim? – Sam ficou confuso.
- Se você precisar de uma fenda para o mundo inferior, é comigo mesmo; mas se você quiser um morango fresco, só um filho de Deméter pode te ajudar. E, se você pensar bem, na maior parte do tempo você precisa mesmo é de uns morangos saborosos.
Sam riu mais alto daquela vez. John e Hector acabaram despertando. John se levantou e foi procurar algumas coisas na sua mochila. Ele veio até onde eu estava e espalhou alguns papéis no chão. Hector se aproximou também.
- Bem, pessoal. - John começou. – Vocês devem saber que eu fiquei desaparecido por quase cinco meses, certo?Maureen me declarou inimigo e começou a me caçar e por causa disso eu passei duas semanas tentando fugir, mas ela conseguiu me capturar. E foi aqui que ela me manteve preso: em International Falls, que costumava ser a base da organização.
- "Costumava ser"? – perguntei.
- Ainda não tenho certeza se isso mudou. Maureen deve ter transferido a base para outro lugar depois que eu fugi; ou pelo menos ter mudado muita coisa lá dentro.
- Ok. Supondo que esta ainda seja a base, - disse Hector. – por que nos trouxe até aqui?
- Se esta ainda for a base, nós vamos destruí-la. – John respondeu, simplesmente.
- Então não deve ser muito grande, certo? Se quatro caras podem destruir tudo... – Sam concluiu.
John deu uma pequena risada.
- É basicamente isso aqui. – ele nos mostrou uma daquelas plantas de arquitetura.
Ficamos sem palavras.
- Mas...É enorme! – Hector verbalizou o meu pensamento. – Como você espera que a gente destrua isso rapidamente e consiga fugir?!
- Caras...Vocês têm muito o que aprender! – John agia como se ele destruísse complexos gigantescos todos os dias.- É como eu disse ao Nico: eu não preciso de números, só preciso das pessoas certas. E, numa situação como essa, quanto menor for o grupo, melhor.
Ainda estávamos com cara de paisagem, então ele prosseguiu.
- O complexo pode ser dividido em quatro partes: a prisão, o arsenal, o alojamento e o auditório. A prisão fica no extremo oeste, enquanto que o arsenal fica no extremo leste. Fizeram isso exatamente para que os fugitivos da prisão não pudessem ter acesso às armas e não tomassem conta da base. O alojamento também é um problema: fica bem ao lado da prisão, para que os soldados possam conter os fugitivos imediatamente.
- Se é assim, como foi que você conseguiu fugir? – eu quis saber.
- Eu tive ajuda de um aliado da Maureen. Quero dizer, agora é um agente duplo. Mas não vamos poder contar com essa pessoa dessa vez. Vamos ter que agir sozinhos.
- E qual é o plano? – Hector perguntou.
- Dois de nós vão atacar o alojamento e conter os soldados, enquanto um liberta os prisioneiros e o outro destrói o arsenal. Voluntários?
- Prisioneiros. – me candidatei.
- Eu e Sam vamos atacar. – disse Hector.
- Então eu vou ficar com o arsenal. Aqui vão algumas coisas que vocês precisam saber: Maureen só mantém presos aqueles de quem ela precisa e, por causa disso, não pode matá-los; isso significa que são poucos prisioneiros. Além de mim, havia mais três: Daniel, Cora e Ian. Daniel é filho de Atena, vocês o conhecem. Cora e Ian são filhos de Ares; Maureen esteve testando vários filhos de Ares e só parou quando encontrou Raphael Young. Antes de ela ter acesso ao livro das Dádivas, ela já sabia que um filho de Ares possuía um dom para batalhas. Mas foi extremamente difícil descobrir quem era, porque todos os filhos de Ares têm pelo menos um pouco desse dom. Ela recrutou dezenas deles; alguns permaneceram ao lado dela, outros fizeram o mesmo que eu e acabaram presos. Não pude levá-los comigo quando fugi; mas prometi que voltaria para tirá-los daqui. O detalhe sobre a prisão, Nico, é que ela é cheia de armadilhas e cada cela exige um código diferente para ser aberta. Ou seja, você vai ter que usar a força para abrir. E vai ter que ser rápido. Mas, se tudo der certo, eu vou poder ir ajudar você. Hector e Sam: o sucesso dessa ação vai depender de vocês. Espero que vocês conheçam alguns truques para conter qualquer que seja o número de soldados no alojamento. Talvez eu consiga ajudar vocês também, mas os prisioneiros são a prioridade.
- Vamos poder nos comunicar enquanto estivermos lá dentro? – Hector quis saber.
- Não. Se usarmos celulares, eles saberão que estamos lá. E é por isso que vamos ter duas horas para sairmos dali. As bigas estarão a nossa espera do lado de fora, e quando o tempo se esgotar precisamos sair de qualquer jeito. Isso serve principalmente para você, Nico: você tem duas horas para tirar os prisioneiros de lá; nem um minuto a mais. Porque eu vou destruir o lugar e todos devem estar em segurança quando eu começar.
Eu e os outros nos encaramos apreensivos. O plano em si era bastante simples, mas nós sabíamos que na prática seria bem diferente. Por outro lado, eu acreditava que John não arriscaria nossas vidas e a dele mesmo se aquele plano tivesse uma probabilidade muito grande de dar errado. Ele devia saber o que estava fazendo.
- E então? Podemos ir? – John já havia se levantado e estava se preparando para partir.
Eu não havia visto o complexo quando chegamos porque ainda estava escuro. Por isso foi uma surpresa olhar para o lado de fora da caverna e ver aquela construção gigantesca abaixo de nós. Só aquilo já me fazia ter certeza absoluta de que não seria fácil atingir a meta de John. Este pensamento me fez estremecer: e se eu não conseguisse libertar os prisioneiros?
- Não se preocupe. O frio vai passar daqui a pouco. – John achou mesmo que eu estava com aquela cara por causa do frio.
Nos escondemos no meio das rochas, nos fundos do complexo. Parecia tão desprotegido! Procurei atentamente alguma câmera ou quem sabe uma armadilha, mas das duas, uma: ou o lugar estava mesmo abandonado ou os guardas lá de dentro estavam muito preparados para acabar com qualquer um que invadisse.
- Então...por onde a gente entra?- perguntei porque não havia porta nenhuma a vista. E eu não achei que John fosse explodir uma das paredes.
- Eu, Hector e Sam vamos pela ventilação do auditório. – John respondeu. – E você vai pela passagem subterrânea que eu usei para fugir. Que é bem aqui. – ele afastou a neve com o pé e revelou uma tampa de chumbo no chão. – Não é um túnel longo; você vai chegar à prisão rápido. Mas o problema vai ser quando você chegar lá.
- Por que?
- Eles se prepararam para o caso de alguém tentar escapar usando um túnel. Os filhos de Hécate fizeram uma mágica para que um alarme soasse caso a linha do solo fosse ultrapassada. É algo bastante simples; qualquer filho de Hécate pode fazer e desfazer. Mas, como você não vai ter ajuda de um deles, o alarme vai soar e os guardas irão até a prisão. Se Hector e Sam conseguirem mantê-los longe de você, nós vencemos. Por isso, nós vamos na frente e você vai esperar vinte minutos aqui fora e só vai entrar depois. Não dá para prever nada, Nico, então fique muito atento quando chegar lá. O alarme definitivamente não será o único obstáculo.
- Ok. – eu detestava não ter muita noção do que ia precisar fazer. Estava um pouco arrependido de ter escolhido libertar os prisioneiros; John é que devia ter ficado com essa parte.
- Vamos logo. Nos vemos daqui a duas horas. – John e os Madison me deixaram ali e usaram uma corda para escalar até a ventilação.
Aproveitei aqueles vinte minutos de espera para me sentar um pouco e tentar relaxar. Chequei se todos os meus itens de batalha estavam facilmente acessíveis. De uma certa forma, eu estava feliz. Sim, porque eu finalmente iria reencontrar Daniel e minha consciência ficaria mais tranqüila. Levar os semideuses que Maureen aprisionou de volta para o acampamento seria como tirar uma tonelada das costas, porque eu não precisaria ficar me preocupando com a possibilidade de ela usá-los para fazer chantagem. Sem falar que a volta deles iria aumentar muito as nossas chances de derrotá-la, já que ela seqüestrou vários dos melhores guerreiros do acampamento.
Aqueles pensamentos me deixaram um tanto otimista, e quando os vintes minutos se passaram eu me dirigi consideravelmente confiante para o túnel. Retirei a pesada tampa, respirei fundo e entrei. O túnel era estreito, o que me impediu de seguir com a mochila nas costas. Tive que empurrá-la enquanto engatinhava pela terra fria e isso me atrasou um pouco.
Eu havia chegado ao fim do túnel, dentro da prisão. Aguardei só mais alguns instantes antes de levantar a tampa para tentar ouvir alguma coisa: lâminas se chocando, gritos, alarmes e coisas assim. Imaginei se os outros ainda não haviam chegado ao alojamento. Depois desencanei, porque seria pedir demais ouvir alguma coisa no local em que eu me encontrava. Além disso, pelo menos meia hora já havia se passado e eu precisava seguir o plano à risca.
Empurrei a tampa de chumbo sem hesitar, joguei minha mochila e me impulsionei para o lado de dentro em dois tempos. Conforme John havia me avisado, um alarme absurdamente alto começou a ecoar antes mesmo de eu pôr os pés no chão. Logo em seguida, escutei o barulho de pancadas à minha esquerda: eu havia saído dentro da última cela do grande corredor que era a prisão; à minha esquerda devia ser a porta que levava ao alojamento e o barulho com certeza foi dos guardas tentando chegar até a prisão, porém sendo impedidos pelos Madison. Beleza! O plano estava dando certo!
Fiquei um pouco mais tranqüilo e observei melhor o ambiente à minha volta: tudo era cinza por ser feito de cimento; as celas ficavam distantes umas das outras, nunca lado a lado; sob o teto surgiam de vez em quando algumas faíscas de eletricidade, mesmo que eu não estivesse vendo nenhuma cerca elétrica ali, e a mesma coisa acontecia nas grades das celas, provavelmente era mais um truque dos filhos de Hécate.
Quanto às celas, havia pelo menos vinte, e poucas estavam ocupadas. Meus olhos percorreram o lugar inteiro diversas vezes em busca de Daniel, mas era difícil enxergar as outras celas de onde eu estava porque o lugar era uma curva. Um turbilhão de pensamentos invadiu minha mente, mas eu não tive tempo de me concentrar em nenhum deles e fiz menção de correr para procurar Daniel. "Fiz menção" porque um choque elétrico me obrigou a parar antes mesmo de eu tocar na grade da cela em que eu estava.
Caí no chão e precisei esperar algum tempo até ter condições de me levantar. Fala sério: eles não maneiravam na proteção nem das celas vazias! Acontece que eu fiquei tão desesperado para encontrar Daniel que nem prestei atenção àquele "pequeno" detalhe.
Me levantei e tentei ficar calmo para poder pensar direito: eu estava preso numa cela que me eletrocutava se eu chegasse muito perto da grade; e tudo que havia lá dentro era um colchão. Felizmente eu havia trazido fogo grego na mochila. Eu não tinha certeza se ia funcionar ou se eu explodiria o complexo inteiro e mataria todos, inclusive eu; mas era a única coisa que eu podia fazer. Por precaução, usei apenas um recipiente de fogo grego. Pulei de volta para o túnel para me proteger e deixei a tampa próxima. Depois atirei o fogo e fechei o túnel rapidamente.
Foi uma explosão moderada. Achei que os guardas nem iam ouvir por causa da batalha e do alarme que continuava soando. Levantei a tampa e agradeci aos deuses por ter funcionado. Se o truque funcionasse nas outras celas aquela missão ia ser moleza!
Deixei o túnel novamente e fui para o corredor. Nenhuma das celas dos fundos estava ocupada. Mesmo que John tivesse me dito que haviam poucos prisioneiros, aquilo me deixou apreensivo: eu tinha certeza de que haviam muitos outros semideuses na mesma situação de Daniel, e se eles não estavam lá, o que Maureen teria feito com eles?
Eu já estava meio desesperado quando cheguei ao fim do corredor, mas fiquei aliviado quando encontrei as últimas cinco celas ocupadas. Havia duas garotas e três caras, todos parecendo esfomeados e maltratados. Mas a minha preocupação imediata foi o seguinte: Daniel não estava lá. Olhei muito atentamente para cada um dos garotos, na esperança de que ele estivesse apenas diferente e eu não o tivesse reconhecido. Mas ele realmente não estava lá.
Comecei a me sentir fraco; a temperatura pareceu ficar mais baixa ali dentro. Uma sensação horrível começou a tomar conta de mim. Não era igual, mas lembrava o meu zumbido nos ouvidos quando alguém morria. Independente do que fosse, eu precisava deixar aquilo de lado no momento, porque eu tinha cinco semideuses para salvar.
- Pessoal, vou tirá-los daqui! – anunciei e comecei a tirar recipientes de fogo grego da mochila.
Esperei ouvir qualquer coisa, mesmo que fosse só um "Hum", mas ninguém disse nada. Parei o que estava fazendo para verificar se eles estavam pelo menos sorrindo, mas eles permaneceram sentados riscando o chão, olhando as unhas ou simplesmente cochilando. Parecia que eles nem mesmo haviam me visto ali! Mas que droga era aquela?!
- EI! Caras, vamos sair daqui! Vou destruir as grades com fogo grego, então é melhor se afastarem!
Eles nem se moveram. Antes que eu pudesse tentar outra coisa, ouvi um choro agonizante na primeira cela. Corri até lá e vi uma garota loira e magrinha deitada num colchão. Ela estava segurando a cabeça com as duas mãos e estava chorando muito. Me aproximei da cela o máximo possível e perguntei:
- O que você tem? Está machucada?
Ela foi a primeira a me encarar. Mas eu acho que preferia que ela não tivesse feito isso: nunca vi um olhar tão sofrido em toda a minha vida!
- Eu... – sua voz era fraca. – eu não agüento mais isso!
- Não se preocupe. Vou tirar você daí agora mesmo.
- Não! Não faça isso! – ela gritou.
- Por que não?!
- Porque eu...AH! – ela agarrou a cabeça outra vez. Aparentemente, ela não estava com nenhum machucado sério. Eu não entendia de onde vinha aquela dor tão forte.
- Olha, você só precisa colocar o colchão em volta de você e a explosão não vai te atingir. Eu prometo que você não vai se machucar.
- Você não entende... Eu não posso deixar este lugar!
- E por que não?
- Ela não deixa!
- Quem é ela?
A garota se contorceu de dor novamente.
- Por favor, diga alguma coisa! Se você não me explicar, eu não vou poder te ajudar!
- Ela sabia que vocês viriam...E levou os outros para a base...Mas nós não somos mais úteis para ela e ela nos deixou aqui para...morrer... – ela já estava chorando tanto que não conseguia mais falar.
- Você está falando da Maureen? E quem são os outros? São prisioneiros também? E o que ela fez com você?
- Ela disse...ela disse que nós estamos proibidos de sair daqui...e que não devemos deixar ninguém nos ajudar.
- E por que vocês estão obedecendo?
- Não temos escolha...a flauta negra...
Aí eu entendi tudo: Maureen usou a Dádiva de Julia Hawkins para controlar os prisioneiros. Como sempre, ela estava uns duzentos passos à nossa frente.
Bom, e o que eu poderia fazer? Como eu poderia salvar pessoas que não iam permitir que eu as salvasse? Se eu forçasse e resolvesse explodir as grades eles provavelmente iam se atirar no meio da explosão e morrer. Era em momentos como aquele que eu odiava Maureen mais ainda: como alguém tão cruel podia ter sido abençoado com tanta inteligência?!
Me pus a andar de um lado para o outro do corredor, tentando ter alguma idéia, mas era impossível me concentrar nos meus pensamentos ouvindo o alarme que não parava de tocar e a garota chorando de dor. Olhei para o relógio: já havia se passado uma hora! Eu não podia perder mais tempo! Eu tinha plena consciência de que a minha atitude poderia pôr em risco a missão e até mesmo as nossas vidas, mas fazer aquilo era melhor do que fazer nada, mesmo que fosse muito arriscado.
Me afastei dos prisioneiros e fiquei entre as celas vazias. Se a mágica dos filhos de Hécate nas grades se desfez quando eu as destruí, provavelmente o teto também ficaria livre se eu destruísse parte dele. Procurei um ângulo seguro e arremessei dois recipientes de fogo grego no teto. Deu certo porque usei as duas mãos para lançar dois praticamente ao mesmo tempo e eles colidiram. Depois eu só precisei de mais um para ampliar o buraco. Assim a corrente elétrica desapareceu.
Usei uma corda com um gancho para subir. O vento gelado da superfície parecia mais um chicote cortando a pele. Apesar de a primeira etapa do meu plano ter funcionado, eu estava perdido outra vez. John não deixou um daqueles desenhos comigo; eu não sabia se o teto do restante do complexo também tinha armadilhas e, principalmente, não sabia onde podia encontrá-lo. Bem, mas ele e os Madison haviam usado a ventilação para chegar até o auditório. Eu só precisava encontrar a entrada que eles usaram.
Caminhei devagar pelo teto, cauteloso. Felizmente não esbarrei em nenhuma armadilha. Era meio preocupante não ouvir nada do lado de fora; eu me perguntava se os outros não haviam sido dominados pelos guardas. Encontrei uma entrada da ventilação. Havia sido arrombada; só podia ser aquela.
O espaço era extremamente pequeno. Fiquei surpreso por um cara grande como Hector não ter ficado preso no meio do caminho. A saída também já se encontrava aberta. Caí em cima da mesa do que deveria ser o auditório. Era quase igual ao que encontramos no acampamento. Vi logo alguns sinais de luta: uma estante caída e flechas na parede. Também escutei a batalha à minha direita no alojamento.
Me dirigi para a esquerda, esperando encontrar John no arsenal. No caminho, quatro guardas caídos, mais flechas e mais bagunça. Encontrei o lugar, mas John não estava lá. Mas ele definitivamente havia deixado sua marca: ele instalou bombas ao redor de todo o lugar e um cronômetro indicava que nós tínhamos menos de quarenta minutos para sair dali. Eu não havia levado o aviso dele tão a sério antes, mas o tempo começou a me preocupar a partir daquele instante.
Se ele não estava no arsenal, só podia estar ajudando os Madison no alojamento. Corri para lá, desesperado. Eu fiz toda aquela peripécia de destruir o teto justamente para não ter que usar a porta do alojamento e chamar atenção dos guardas para a prisão. Mas foi tudo perda de tempo! Eu teria que chamar John no alojamento de qualquer jeito.
Tomei um susto ao chegar até a porta do alojamento porque ela estava escancarada. Me escondi atrás de uma pilastra imediatamente, torcendo para nenhum guarda ter reparado em mim. Depois de esperar um pouco, só para o caso de alguém ter resolvido olhar duas vezes para lá, eu espiei a batalha com o canto do olho: Hector estava lutando com praticamente todos lá dentro; ele investia contra eles e os empurrava para Sam, que dava o golpe final. Eles eram uma dupla fantástica! Hector não tinha tanta força nos ataques, mas sempre encontrava os melhores ângulos para investir e os furos na defesa do adversário, e isso já os enfraquecia bastante; e Sam, apesar do tamanho, era muito forte e derrubava os inimigos rapidamente com os seus ataques impiedosos. Aparentemente, John havia acabado de chegar ali, pois ainda estava meio perdido na batalha. E, para a minha sorte, estava bem perto da porta; se ele permanecesse ali seria muito mais fácil chamá-lo sem que os guardas percebessem. O único problema era como eu ia fazer aquilo.
Abri minha mochila em busca de idéias. Eu tinha...fogo grego. Ótimo. Mais explosões. O detalhe era que, daquela vez, a chance de eu matar alguém era muito grande mesmo. E mesmo que fosse uma distração, pelo menos uma pessoa ia olhar para a porta para ver de onde aquilo tinha vindo e ia me ver; não ia dar tempo de arrastar o John para fora. A menos que eu...Ah, não. Péssima idéia. Mas...era a única que eu tinha. Como eu odiava ter que recorrer àquilo!
Peguei um recipiente de fogo grego, fechei os olhos e me concentrei. Tentei mentalizar todo o meu trajeto antes de me transportar pelas sombras; quem sabe assim a probabilidade de dar errado seria menor. Senti que começava a ser deslocado e procurei por um lugar relativamente seguro para atirar o fogo grego. Eu praticamente já não estava mais no mesmo lugar quando atirei no teto do alojamento.
Mal ouvi a explosão porque eu só precisei esbarrar no John para me deslocar novamente.
E, quando tudo parou de correr, eu já estava caído no chão do arsenal. John se debateu, muito assustado. E só parou de tropeçar em volta quando se deu conta de que estávamos no arsenal e que ele estava esbarrando nos explosivos.
- Nico! O que você fez?! Por que estamos aqui?!
- John, não tenho tempo para explicar tudo, mas eu vim até você porque há algo errado com os prisioneiros e eu não consigo libertá-los! Você precisa vir comigo agora, até porque...
- Só temos quinze minutos...- ele completou meu pensamento ao olhar para o cronômetro. – Só temos quinze minutos e você não libertou os prisioneiros! – ele gritou, desesperado.
- Então vamos logo! Eu explico no caminho!
Nós dois corremos de volta para o auditório e subimos pela ventilação em dois tempos. Enquanto corríamos pelo teto, eu fui falando:
- Maureen usou uma Dádiva para convencer os prisioneiros a não saírem da prisão de jeito nenhum! Tentei falar com eles, mas é como se eles nem mesmo pudessem me ver ali. Apenas uma garota está relativamente consciente, mas ela está com uma dor de cabeça esquisita que está quase a matando. Seria fácil destruir as celas para que eles pudessem sair, mas, se eles não "querem", eu não sei como tirá-los do complexo.
- Tem que haver uma maneira. – John olhou para o relógio, nervoso.
Descemos pelo buraco que eu havia feito e chegamos à prisão. John avaliou a situação rapidamente e me perguntou, enquanto procurava algo em sua mochila:
- Você é bom de pontaria?
- Tipo arco e flecha? Não. Eu sou realmente ruim.
- Isso vai nos atrasar ainda mais. Hannah seria muito útil em uma hora como essa. – ele tirou um punhado de dardos da mochila. Eu reconheci aqueles dardos: eram iguais aos que Owen King usou quando nos conhecemos. Achei melhor ignorar o comentário sobre Hannah e ficar feliz por John ter aquele recurso.
Acho que John também não era lá muito bom em pontaria porque ele gastou pelo menos três dardos com cada prisioneiro. Mas acabou dando certo: eles pegaram no sono e não iam reagir quando destruíssemos as grades.
- Três minutos. Rápido! – ele me alertou enquanto explodíamos a terceira cela, tendo o cuidado de encontrar um ângulo que não ficasse tão próximo do prisioneiro.
Conseguimos destruir tudo, mas aí eu me dei conta de que não íamos conseguir sair dali a tempo: tínhamos cinco semideuses desacordados e a saída mais prática era o túnel; não ia ter como arrastar cada um deles para fora.
- John. – eu olhei para o relógio. – Um minuto!
- Nossas vidas dependem de você, Nico. – John estava arrastando os prisioneiros para perto de mim.
- O que está fazendo?!
- Só tem um jeito de sair daqui: fazendo a mesma coisa que você fez comigo agora a pouco. Você precisa estar em contato com as pessoas, certo?
- Eu não posso fazer isso! Meus poderes não funcionam direito e eu não vou conseguir levar tanta gente comigo!
- Eles funcionaram quase agora, não funcionaram? Você só tem que repetir o feito com o quíntuplo da intensidade!
- Eu não vou conseguir... – John já havia colocado todos os prisioneiros à minha volta e se ajoelhou ao meu lado.
- Vai sim! Você nem precisava tanto na última vez e conseguiu, e não é agora, quando você mais precisa, que os deuses vão te abandonar. Eles contam com você para salvar os filhos deles e vão te ajudar. Acredite!
Não tive tempo de me concentrar e muito menos de pensar para onde eu queria ir. Isso porque eu ouvi uma grande explosão e eu sabia que o nosso tempo tinha acabado. Eu simplesmente dei um jeito de envolver todos os semideuses com um braço e segurar o braço de John com a outra mão.
Senti o calor da explosão absurdamente próximo de mim, mas consegui fugir antes que ele me queimasse. Só tive tempo de sentir que estava afundando em um colchão de neve e depois tudo era escuridão.
