Prelúdio

Berlin, 1939

Ela abaixou a cabeça e abraçou a irmã mais jovem que estava caída no chão ao lado dela. Lucy escondia o rosto e chorava sem parar. O contato com a embaixada foi inútil e ela ainda não entendia como, em nome de tudo o que era sagrado, ela havia sido escoltada por um grupo de soldados para fora do teatro e levada para aquele lugar que mais se parecia com um galpão fétido do que com uma delegacia.

Ela também não sabia porque Lucy estava ali. Ela nem mesmo havia sido escalada para a apresentação daquela noite. O interrogatório era absurdo. Todo tipo de pergunta constrangedora, começando por seus hábitos alimentares até perguntas de foro intimo, tal qual "dormiu com algum cidadão alemão durante sua estadia em Berlin?". O que ela devia responder quanto a isso? Não! Tudo o que ela não queria era um alemão absurdamente loiro e pálido, principalmente agora que sua carreira começava a decolar.

Havia um bocado de bons rapazes germânicos sentados nas primeiras filas para assistir a uma performance dela e alguns acabavam sendo um estorvo ao achar que poderiam ter algo com uma prima dona com penas alguns buquês de flores. Ela se lembrava de um particularmente insistente, a quem ela tinha que desencorajar com freqüência e muitas vezes usando de má educação para isso. Não gostava de alemães, era tudo o que ela poderia alegar.

Foi uma péssima idéia ir à Alemanha com a companhia. Da última vez que colocou os pés em território germânico ela era uma garota deslumbrada com a obra de Wagner e seu maior sonho era interpretar Brumhilde na opera O Anel dos Nibelungos, mas este papel ela jamais teria, ele era reservado às jovens arianas.

Voltar depois de quase cinco anos estava sendo degradante. Ela não sabia como, mas em algum lugar de sua documentação, ou até mesmo no resultado de uma investigação minuciosa, constava que ela era a filha de um banqueiro judeu residente em Londres, falecido há um ano, e por tanto, herdeira de uma fortuna significativa.

A política alemã era obscura para boa parte da Europa. O que todos diziam é que Hitler era um homem dotado de carisma e uma mente insana para declarar guerra ao continente inteiro. Começou com a Polônia, há quase dois anos e agora havia um rumor generalizado sobre raças, eugenia, superioridade e lei da sobrevivência, mas ninguém sabia dizer exatamente o que estava acontecendo dentro da Alemanha. Só podiam dizer que era, de algum modo, terrível.

Ela e a irmã foram levadas para aquele galpão, onde um rapaz de olhos atentos e expressão séria analisava uma série de papeis a sua frente e esporadicamente lançava olhares à Lucy. Era alto e tinha cabelo escuro, falou num inglês muito convincente que havia um pequeno problema com a documentação das duas e que só levaria alguns minutos para esclarecer o mal entendido. Depois disso ele se calou e passou a vigiar tudo como um gavião a espreita da presa.

O uniforme que usava era inconfundível. O preto lustroso da farda intimidava e ele não parecia ser o tipo de pessoa que era mandada para resolver assuntos simples. O quepe sobre a mesa levava uma águia de asas abertas e logo abaixo a agourenta figura de um crânio prateado. Oficial Edmund Hoffmann, foi como ele se identificou.

As perguntas vieram em dado momento da conversa, tomando um ar cada vez mais inquisitivo e opressor. Lucy começou a tremer. À medida que ficava cada vez mais evidente a razão delas estarem ali, sua irmã mais nova começou a chorar e o clima se tornou histérico e angustiante. O oficial sisudo trincou os dentes e respirou denotando inegável irritação. Estava perdendo a pouca paciência e a noite já ia alta.

- Fraulëin Pevensie, faça sua irmã se calar. – a ordem veio num tom austero e impessoal. Susan tentou acalmar Lucy, mas as coisas estavam fugindo ao controle.

Lucy não parou de chorar como foi ordenada e eventualmente o rapaz perdeu a paciência. Ele esmurrou a mesa de uma vez provocando um tremendo susto em ambas. Lucy implorou para fazer contato com a embaixada, ou o consulado britânico. O oficial se enfureceu ainda mais e avançou contra ela.

Susan não teve tempo de agir. Antes que pudesse se levantar da cadeira sua irmão já havia sido estapeada com tanta força que havia caído no chão. A mão sobre a face, os olhos assustados e cheios de lágrimas. Aquilo era só o início de um pesadelo e Susan sabia disso. Algo dentro dela dizia que ambas teriam sorte se sobrevivessem àquela noite.

- Não tem o direito de nos tratar dessa maneira, oficial. Nós somos cidadãs britânicas! – Susan tentou argumentar e tudo o que recebeu foi um olhar de profundo desprezo por parte do oficial.

- Eu digo o que vocês são enquanto estiverem pisando em solo germânico. – ele as encarou de forma intimidadora. Ele havia mantido a pose diplomática e burocrática do cargo até aquele momento, mas finalmente a mascara estava caindo e revelando a face do monstro – O que vocês são... Duas cadelas imundas, vadias fétidas que se exibem pelas ruas como mulheres de bem, mas jamais serão isso! Não passam de duas fraudes, duas mentiras ambulantes, iludindo e contaminando as mentes de nossos cidadãos, contaminando nossa cultura e arte!

- Somos parte de uma companhia respeitada. – Susan tentou manter a calma e argumentar – Viemos a convite do Reich.

- A mera presença das duas no elenco demonstra o quão inferior é o que chamam de arte. – ele esmurrou a mesa novamente e encarou as duas como um touro ensandecido – Nenhuma companhia de respeito admitiria duas porcas judias. Se fosse uma companhia de opera alemã, nem mesmo para lavar o chão serviriam!

- Mas nós não trabalhamos para alemães e entramos legalmente no país. – ela sabia que aquela conversa não ia levá-la a lugar nenhum, mas pelo bem de Lucy ela fingiria que estava calma e totalmente segura de sua posição. – Não pode fazer nada contra nós.

Aquela alegação firme foi sua sentença condenatória ao inferno e o demônio era ariano...

Naquela mesma noite elas foram jogadas numa cela, não sem antes receberem bofetadas, chutes nas costelas, tapas, socos...Lucy foi atingida na cabeça por uma coronhada e ficou desacordada por algum tempo. Susan mal conseguia respirar, que dirá se mexer para ajudar a irmã.

O pior era saber que o pesadelo não estava nem próximo do fim.

Aquele rapaz permaneceu ali, observando tudo atentamente. Ele não esboçava qualquer reação durante as agressões provocadas por outros soltados. Era perfeitamente indiferente a cena, não importava o quanto gritassem de dor.

Os soldados que as espancavam eventualmente sugeriram que devia haver algo que valesse a pena de baixo das saias rasgadas. Avançaram pra cima de Lucy primeiro. Ela já não conseguia mexer muito as pernas por causa de luxações nos joelhos.

Mas Edmund Hoffmann não permitiu que os outros tocassem Lucy de forma mais invasiva e indecorosa, provavelmente foi o único sinal de humanidade que o filho do demônio demonstrou. Os soldados entenderam que a proibição se estendia à irmã mais velha e também não molestaram Susan. Talvez o oficial apenas detestasse a idéia de uma mistura acidental de raças opostas. Talvez tivesse nojo de qualquer um que tocasse uma judia.

A cada golpe desferido as duas gritavam e imploravam por misericórdia. Ele apenas olhava de forma analítica e fria, como se estivesse assistindo uma peça ruim, ou ouvindo uma música que não lhe agradava. Em alguns instantes ele até mesmo parecia entediado com a cena degradante de duas garotas sendo torturadas.

O sangue havia secado no canto da boca. Logo toda pele estaria coberta por hematomas arroxeados. Logo Susan, que sempre se orgulhou tanto de sua pele imaculada e sem falhas.

Lucy respirava e depois de alguns minutos sozinha ela recuperou a consciência, mas estava sonolenta, o que era um mau sinal.

Ratos se escondiam em frestas. O cheiro imundo das celas era um acréscimo à dor e ao desconforto. Não seria espanto se pegassem uma infecçã e exausta, Susan fez uma prece e pediu para que sobrevivessem a qualquer que fosse o futuro delas. Ou pelo menos que tudo acabasse logo.

Na manhã seguinte mais chutes, socos, tapas, choques, chicotadas. Ameaçaram esmagar os dedos de Lucy para que ela nunca mais tocasse uma note sequer. Foram impedidos pelo mesmo oficial da noite anterior. Não parecia haver uma razão específica para poupar a mais jovem de algo como aquilo, mas ninguém questionava a autoridade dele.

Ela entendeu que se tratava de um burocrata de patente alta, provavelmente o filho de alguém importante dentro do partido. Alguém que tinha inteligência para bolar estratégias, mas que não deveria ser arriscado no fronte. Um maldito filho de general que se mijaria todo se tivesse que enfrentar o campo de batalha. Um covarde sádico.

Ele não parecia estar se divertindo com aquela barbárie, mas também não parecia sentir coisa alguma. Era como um cientista, testando-as para ver até que ponto elas resistiriam.

Não haveria qualquer socorro por parte do consulado britânico. Não haveria qualquer ajuda enviada a duas jovens musicistas britânicas de ascendência judaica. Ela e Lucy estavam à mercê da hospitalidade dos alemães e depois de uma semana inteira sofrendo todo tipo de agressão física elas foram reunidas a um grupo de mulheres, todas em estado deplorável, e seguiram em comboio até uma zona rural bem afastada da cidade.

Não sabia exatamente onde estavam, ou mesmo quanto haviam andado durante todo dia. Susan sentia fome e, a julgar pela aparência da irmã, Lucy devia estar bem perto de desmaiar.

As outras mulheres dentro do caminhão sujo e apertado não estavam em melhor estado e algumas tinham sinais de doença. Tosses secas, sangue, feridas abertas e o cheiro pútrido de decomposição. Moscas rodeavam algumas mulheres que pareciam mais mortas do que vivas e o prognóstico ainda não era bom.

Em um dos carros pretos que seguiam o comboio com as prisioneiras, estava o oficial inexpressivo e assustador. Susan notou que ele tinha um interesse maior em observar Lucy, fosse durante seções de espancamento, fosse enquanto ela estava simplesmente caída em algum canto da cela. A forma como ele fazia isso dava a impressão terrível, como se ele estivesse esperando o momento certo para devorar a garota por inteiro.

Pararam em dado momento. Mulheres irritadas do lado de fora davam ordens em alemão e guiavam as presas para galpões cheios de camas improvisadas que mais pareciam caixotes amontoados, ou talvez fossem caixões.

Um campo de trabalhos forçados em algum lugar chamado Duchau. Ouviu algumas comentando que era próximo de Munique, mas não era como se alguma delas tivesse grandes chances de escapar. Havia homens armados com fuzis e metralhadoras, cães farejadores treinados para destroçar carne humana com a força das mandíbulas e cercas de arame farpado.

Ela e Lucy foram mandadas junto com um grupo de mulheres em melhor estado para quebrar pedras. Para mãos habituadas a pó de arroz, teclas de piano e batom isso era apenas mais uma tortura.

Dadas as condições gerais, ambas ainda tinham forças, mesmo que a comida não fosse suficiente para mantê-las firmes por um dia inteiro. Ainda estavam em melhor estado do que a maioria e a maior parte dos hematomas estavam encobertos pelos trapos que usavam. Os rostos foram poupados e isso despertava inveja em algumas presas com menos sorte.

Ela tentava controlar seu próprio temperamento e ficar calada. Cumpria as ordens dadas, mesmo que seu alemão fosse bem limitado, só para não receber mais golpes. Lucy fazia o mesmo, mas os soldados não precisavam exatamente de um motivo para socar alguém.

Às vezes ela tinha certeza de que ia morrer naquele inferno frio e miserável, mas Lucy insistia em animá-la. Aquele terror não conseguia tirar o otimismo incorrigível da irmã mais nova. Lucy seria sempre um ponto de luz, mesmo nas noites mais escuras, com sua alegria inexplicável e sua fé, mesmo quando sua magreza se tornava assustadora e a fome assolava à ambas.

- Tudo vai acabar bem. – ela insistia em afirmar e Susan se perguntava se ela estava tentando se convencer daquela mentira.

Uma semana depois uma mulher de rosto sisudo e voz áspera chamou por elas. Frau Bunchën resmungou qualquer coisa e mandou que elas a seguissem. Elas foram levadas a uma casa afastada do campo e dos dormitórios dos soldados. Uma residência moderna, Susan imaginou que se tratasse de uma casa funcional que resistiria a um possível ataque. Talvez fosse um bünker.

Elas foram levadas até a cozinha da casa funcional. Um balde com esfregão foi indicado a elas e em seguida Frau Bunchën indicou uma pia entulhada com louça suja. Ficou evidente o motivo de estarem ali e por um momento Susan e Lucy ficaram felizes com a perspectiva de serem designadas para um trabalho menos pesado.

Lucy tomou conta do esfregão e começou a limpar o chão da cozinha com toda determinação que seus músculos doloridos permitiam, enquanto Susan lavava a louça e pensava numa forma de organizar o aparelho de jantar.

Levanto em consideração o que haviam passado até aquele momento, talvez as coisas estivessem começando a melhorar para ambas.

Ou talvez o pesadelo estivesse apenas começando.

Nota da autora: Sei que tenho duas fic's pra terminar ainda, mas relaxem. Os capítulos estão mais ou menos prontos. Essa fic surgiu no ímpeto. Isso que dá assistir Bastardos Inglórios XP.

Vamos esclarecer uma coisa antes de tudo. Não tenho absolutamente nada contra judeus e muito menos contra alemães. O que aconteceu durante a Segunda Guerra foi e sempre será abominável e esta fic é um trabalho de ficção, muito romantizado e leve, se comparado ao horror da época. Se por um acaso houver algum seguidor do judaísmo entre meus leitores, shalom pra você. Se houver algum alemão ou descendente, adoro o país de vocês e a educação que os alemães têm, assim como adoro a hospitalidade e gentileza dos turcos, a organização inglesa e por ai vai. Entenderam a mensagem? Vivemos em comunidade e pra que tudo dê certo respeito é fundamental. Vamos respeitar as diferenças e aproveitar a fic.

Comentem.

Bjux,

Bee