A grande fuga

Como de costume às três horas, o carro chegava à escola. Era uma instituição muito selectiva, no bairro mais chique da cidade. O motorista estacionava aquele enorme carro, saía e abria a porta traseira do lado direito, esperando respeitosamente a chegada de Daniel Black. Também, como já vinha sendo hábito, mal o jovem o via, desfazia-se em lágrimas – era mais forte do que ele. No entanto, tinha sempre o cuidado de disfarçar o mais possível diante dos colegas, para que eles não pensassem que era demasiado sensível e, fazendo um esforço enorme, dirigia-se com desenvoltura para o carro que o esperava, apesar de toda a dor que lhe ia na alma. Entrava e pensava que, uma vez mais lá tinha que ir para aquela casa e que se encontrava atolhada de um exército de empregados, subindo depois para aquele a que chamavam o quarto do menino e que mais parecia uma loja de brinquedos de luxo. Como odiava aquele aparato!

Mal tinha acabado de sair do portão da escola, compreendeu que aquela tarde ia ser diferente. Com o coração a bater muito forte, Daniel reparou no pequeno carro branco que o acompanhava ao ritmo dos seus passos, mesmo atrás de si e que, silenciosamente, o ultrapassava para pôr-se a seu lado. Incapaz de se voltar para ver melhor, esperou, cheio de alegria, que se aproximasse mais dele. O vidro do lado do condutor abriu-se lentamente.

- Daniel!

A criança tinha sonhado tanto com aquele momento durante noites intermináveis de insónias e pesadelos, que mal podia acreditar que tal lhe estava a acontecer: que aquela era realmente a voz que sonhava poder voltar a ouvir. Aos nove anos, sabia muito bem que não existiam fadas e muito menos sapos que se transformavam em príncipes. Naquele momento, percebeu que nada daquilo era um sonho… aquela voz era bem real.

- Papá! Eu sabia que virias!

- Entra, despacha-te!

A criança saltou para dentro do carro e fechou a porta com um sorriso que lhe iluminava o rosto.

O pai olhou para o motorista, que era tão grande quanto o automóvel, e que corria na sua direcção. Arrancou com o carro, fazendo-lhe sinal para que se afastasse, uma vez que não estava na disposição de atropela-lo. Felizmente que um grupo de raparigas em patins corriam na sua direcção e uma delas, com menos prática do que as outras, foi de encontro ao motorista.

- Deixe-me passar! Uma criança acaba de ser raptada.

- Peço desculpa, mas não tenho muita prática; comecei há pouco tempo…

Impotente, o motorista viu o carro afastar-se diante dos seus olhos sem nada poder fazer. Era certo e sabido que o patrão ia fazê-lo em pedaços.

Bella

- Até a mim aquele monstro me ia pondo a chorar com aquelas falsas tremuras na voz…

Bella acabava de chegar ao escritório e, como sempre, que vinha de um julgamento, libertava-se da tensão em que o processo a deixava a falar sozinha.

- Ainda bem que o juiz não se tinha deixado levar por aquelas choraminguisses!

Ao dizer isto, pôs as pernas em cima da secretária, parodiando com o patrão, Carlisle. –Graças a Deus! – disse a rapariga, observando o seu reflexo do canto olho nas prateleiras cromadas.

Duas batidas na porta trouxeram-na à realidade. Era Ângela, a secretária. Até Carlisle se sentia aterrorizado quando a via ou ouvia.

- O Carlisle quer ver-te imediatamente.

Bella ficou a pensar no que ele quereria. Estaria Carlisle já ao corrente de que tinha ganho o processo?

Encontrou-o com os pés em cima da secretária e pensou para consigo: será que ele também se olha na estante cromada? (não pode deixar de sorrir).

- Queria felicitar-te pela tua vitória. Confesso que estava com um certo receio que não conseguisses, tendo em conta o tipo de caso: uma mulher que se divorcia e que, para além disso, reclama a guarda das crianças, pondo-se aos gritos cada vez que o marido se aproxima…

- Acho absolutamente normal – retorquiu Bella.

Quando se trata de um marido que, à primeira contrariedade, começa a bater-lhe até não poder mais e, quando ela vai queixar-se à esquadra, ele tenta, a todo o custo, fazê-la passar por louca…

- Mas arranjou um dos melhores advogados da cidade.

- Ele tinha como pagar, enquanto ela não tem um tostão furado e, além disso, tem três crianças para criar!

A voz de Bella elevou-se demasiado ao fazer esta afirmação, quase roçando as lágrimas. Conteve-se. Isso nunca poderia acontecer: chorar por causa de um cliente em frente ao patrão.

- Com essa atitude, fazes com que eu, para a próxima pense duas vezes antes de te dar um caso deste tipo. É muito mau quando os traumas pessoais interferem com a vida profissional.

Bella engoliu em seco, perguntando a si própria se tinha percebido bem o que ele tinha querido dizer.

- Os traumas da minha vida pessoal? – repetiu incrédula.

- Então! Com certeza deves saber que nós efectuamos sempre uma investigação antes de contratar alguém! – disse Carlisle, sorrindo ao ver a sua surpresa.

- E isso quer dizer o quê?

- Quando tinhas doze anos, os teus pais divorciaram-se e a tua mãe passou anos a percorrer o país de uma ponta à outra, para que o teu pai não pudesse tirar-te dela.

O essencial, pensou. O essencial não era isso. O importante era o stress em que ela tinha vivido durante tantos anos. Mudando de escola a cada trimestre, a angústia que sentia só de pensar que um dia a Policia podia aparecer. O essencial era o olhar amargurado da mãe, o mesmo olhar que se podia ver estampado nos olhos da sua cliente.

- Compreendo muito bem os teus sentimentos, mas nunca esqueças que um bom advogado não pode ter sentimentos. Não me faças arrepender de te ter dado o lugarque te dei, confiando cegamente em ti.

Bom, tinha acabado de levar uma repreensão, mas de uma forma bastante cordial, pensou Bella ao sair. Sentia-se percorrida por suores frios. Ainda bem que não lhe tinha falado da visita que recebera dois dias antes.

Nesse dia, ia finalmente descansar um pouco, pensou, mas Ângela entrou no escritório, qual furacão:

- Não te esqueças que o cliente da entrevista das três e meia deve estra a chegar: trata-se de um tal Daniel…

Alguns minutos mais tarde, entrou pelo escritório um miúdo todo sujo de vermelho, acompanhado de uma jovem, cuja blusa se encontrava igualmente suja da mesma cor. Ketchup, pensou Bella, olhando para o hambúrguer que o garoto trazia na mão.

- Minha senhora – disse o miúdo, assim que conseguiu engolir o que tinha na boca. – Tenho visto nos filmes que, na América, todas as pessoas têm o direito a um advogado, mesmo as crianças.

- Em alguns casos sim. É preciso ter sete anos.

- Tenho nove!

A jovem que o acompanhava interveio.

- O meu nome é Esme e sou a ama do Daniel.

Feita a apresentação, começou a expor o que a tinha levado ali a pedido de Daniel. A mãe do pequeno tinha morrido num acidente de automóvel há alguns anos. Desde então, a criança ficou a viver em França com o pai, que era francês. Quando veio passar as férias com a avó, que era portuguesa, Daniel viu-se, vinte e quatro horas depois da sua chegada, em casa de um senhor que diziam chamar-se Jacob Black e que o tinha informado, com a maior das friezas, que era o seu verdadeiro pai.

- Jacob Black… o proprietário de uma cadeia de hotéis? – perguntou Bella.

- Esse mesmo. Quando me contratou, explicou-me que, há alguns anos atrás, tinha casado em França, mas que a sua mulher, pouco tempo depois, havia fugido com outro homem, sem se preocupar em pedir o divórcio. Só quando soube que ela tinha morrido é que se apercebeu que, oito meses depois de o ter deixado, ela tinha tido um filho cujo nome era Daniel… Consternado, tratou de fazer tudo o que estava ao seu alcance para recuperá-lo. Mas…

- Mas?

- Mas…tenho a impressão que esta história está muito mal contada – explicou Esme, com uma voz hesitante. Na realidade Jacob não liga nenhuma a Daniel; nem um beijo nem um carinho. A sua atitude não é, de perto nem de longe, a de um pai preocupado. Contrastando com tudo isto, Edward Cullen, o outro pai de Daniel, se é que me é permitido falar, acaba de chegar e quer levá-lo consigo para França. Sempre que telefona lá para casa, Daniel agarra no telefone e chora que nem um louco, suplicando-me que o deixe ir ter com o seu «papá»… Até agora não ousei reagir, mas o senhor Jacob começou a falar em irmos passar umas férias ao Brasil…

Bella percebeu imediatamente o que o senhor Black tinha em mente. A convenção internacional, que geria os litígios da guarda das crianças, não tinha nesse país as mesmas regras que no resto do mundo. Assim que Daniel pisasse terra brasileira, ninguém podia fazer nada.

- Disseram-me que nunca recusava ajudar uma criança em perigo…

Esse era o problema, pensou Bella.

- Quanto é que custa ter-te como minha advogada? – perguntou Daniel. Tenho algum dinheiro, sabes? No meu aniversário, deram-me cem euros.

A expressão do olhar daquela criança era de inquietude e desespero, tal como tinha sido o seu na sua idade.

- Tu vais conseguir forçar Jacob a deixar-me ir viver para sempre com o meu pai, não vais?

Bella não teve coragem de lhe dizer que não e, virando-se para Esme, disse-lhe:

- A próxima vez que Edward Cullen telefonar, por favor, dê-lhe o meu numero de telefone.

A história daquela criança fê-la lembrar-se de todo o seu passado e, forçosamente, do sermão que tinha acabado de ouvir de Carlisle. Não havia qualquer dúvida que, se fosse ter com ele e lhe pedisse que a deixasse tomar conta do caso, ele não permitiria e, ainda por cima, fazer frente a alguém tão bem cotado na sociedade como Jacob Black. Se carlisle viesse a saber disto era capaz de ter uma depressão nervosa… Não havia outra escolha: se Edward Cullen lhe telefonasse, ela recomendá-lo-ia a outro colega da sua confiança.

Neste momento, tinha todo o direito de ir almoçar ao seu restaurante preferido e festejar a vitória.

O telefone tocou.

- Dra. Isabella Swan?

Uma voz quente e com um sotaque francês, muito sensual, fez-se ouvir do outro lado.

- Fala Edward Cullen.

Bella pensou que, de tanto cansaço, o cérebro estava a pregar-lhe uma partida e resolveu fazê-lo repatir.

- Edward Cullen, o verdadeiro pai de Daniel.

- O verdadeiro pai de Daniel… suponho que essas devem ser as mesmas palavras que Jacob Black utiliza. A criança nasceu oito meses depois de ela ter conhecido…

- Daniel nasceu de um parto prematuro. Em França, ele é legalmente reconhecido como meu filho. A mãe estava a pensar em legalizar a situação no seu país, assim que tivesse coragem de pedir o divórcio. Infelizmente, não teve tempo para fazê-lo, visto ter morrido num acidente de automóvel, quando Daniel tinha cinco anos.

Bella queria acreditar no que ele lhe dizia. Não só pela sua voz sedutora, mas também por algo difícil de definir… o seu tom parecia sincero; não era possível simular aquele calor verdadeiro que a sua voz transmitia.

Mas vejamos: quando uma mulher se casa, a lei presume que o pai da criança é o marido. No caso de Daniel, o marido é Jacob Black e, infelizmente, a mulher dele já cá não esta para nos explicar toda a situação. Deveria ter pensado nisso antes de deixá-lo vir.

- O meu filho já perdeu a mãe e recuso-me a privá-lo da avó. Este ano, ela sentiu-se bastante doente para poder deslocar-se a França e pediu-me para o deixar ir.

- Porque razão não veio com ele?

- Sou guia de montanha e estamos em plena estação. Fiquei muito mais contente de o ir deixar passar as férias com a família, caso contrário teria de ir para uma colónia de férias. Tudo o que lhe peço é que lhe efectuem testes de ADN. Eles provarão que sou eu o pai.

- Olhe, o mais que lhe posso fazer é dar-lhe o nome e o telefone de um amigo meu, que também é advogado, e terá todo o prazer em tomar conta do caso; emitirá um pedido para que lhe restituam a guarda da criança. Bella esperava que ele ficasse suficientemente bem impressionado, terminasse por ali e lhe agradecesse pela sua gentileza, ficando assim livre uma vez por todas dos Cullen, das amas e dos magnatas de hotelaria.

- A minha advogada é você. Foi o meu filho que a contratou.

Apesar do seu esforço, Bella não consegui resistir e, sem que desse por isso, já estava com um dossier na mão, enquanto escrevia todas as informações que ia pedindo, desligando, inclusive o telefone de uma forma bastante seca, porque se sentiu irritada com a sua fraqueza.

De súbito, o telefone voltou a tocar.

Mike Newton! Esquecera-se completamente dele. Só Deus sabe quanto o detestava. Era um arrogante repórter. Tinham-se encontrado numa festa há um ano e, desde então nunca mais abandonou a ideia de a seduzir.

Sem hesitar fez de conta que na tinha ouvido o telefone e saiu para finalmente, ir almoçar.

Jacob Black estava sentado no seu sofá electrónico, cujo espaldar se encontrava programado para lhe dar massagens nas costas.

O fim de tarde mostrava-se auspicioso. Dentro de alguns minutos, a criança que Tânia resolvera fabricar em França, iria chegar da escola… mas, no dia seguinte, já lá não se encontraria, uma vez que Jacob tinha antecipadamente preparado tudo para irem passar uma longa temporada ao Brasil. Claro que a criança iria chorar, mas isso não tinha importância, visto que o principal objectivo era lá estarem num dos seus hotéis.

Tânia era sua prima e Jacob sabia que se tinha casado com ele porque os pais a tinham forçado a isso, visto não quererem dividir a fortuna da família.

Como era de esperar Edward Cullen acabara de iniciar um processo de reconhecimento de paternidade. Tinha sido marcada uma audiência para daí a uma semana. Edward mostraria o resultado das analises de ADN, mas infelizmente para ele, isso não iria servir de nada, uma vez que, tanto ele como a criança já estariam no Brasil.

O mordomo de Jacob entrou na sala e interrompeu os seus agradáveis sonhos.

- O motorista pede para falar consigo.

Com efeito, o motorista tinha ar de quem se queria enterrar a seus pés, escondendo-se atrás de Esme.

- Onde está a criança? – gritou Jacob.

- Foi raptado – murmurou o motorista procurando freneticamente um lugar onde pousar o olhar, para não ter que enfrentar o do patrão.

Começou por relatar o que tinha acontecido, mas a forma atabalhoada como o fazia não estava a ajuda-lo.

- Ainda tentei parar o carro, mas uma das miúdas…

- Miúdas?

- Sim, havia-as por toda a parte, a andarem de patins.

Esme fazia um esforço enorme para não se rir. Que bela ideia tinha tido ao pedir às suas antigas colegas para irem para aquele local promover aquelas batatas fritas, conseguindo assim perturbar a circulação.

- Suponho que foi o pai dele… quer dizer… o outro pai… enfim, o falso pai… - dizia o motorista, gaguejando de medo, ao ver a transformação do rosto do patrão.

Gritando a plenos pulmões e chamando-o de tudo o que lhe passava pela cabeça, pô-los fora da sala. De novo sozinho, procurou na agenda um determinado número e fez a ligação.

- Seria possível falar com o senhor James?

James era um detective, que se tinha demitido da Policia por motivos pouco excusos. O que é certo é que por vezes, lhe tinha sido útil quando precisara de tratar de uns assuntos um pouco obscuros e sabia mostrar-se muito discreto. O melhor era ele começar por essa advogada que Edward lhe tinha comunicado que o representava. James saberia mostrar-lhe onde se encontravam os seus intresses.

Continua….