O Guarda-Costas

Por Mukuroo

Obs: Saint Seiya não me pertence! Os personagens podem sofrer algumas alterações em suas personalidades originais.

Obs: Fic dedicada à Virgo no Áries, que há quase um ano vem me cobrando um fic Shaka x Mu.

I

"Era só o que me faltava", Mu pensou irritado. – Não vou precisar de um intérprete.

- Você fala russo?

- Sim, eu falo um pouco – ele disse, triunfante.

- Quanto? – Shion perguntou.

Mu sorriu, os olhos verdes brilhantes.

- O bastante para recusar uma proposta de casamento.

Shion riu. – Será que consegue mesmo reconhecer uma proposta em russo?

- Poderia ser cego e surdo e ainda entenderia.

O outro sacudiu a cabeça.

- Sei que é um homem de negócios capaz, mas não posso me arriscar a deixá-lo andando sozinho pela Rússia, sem ninguém para ajudá-lo.

Mu odiou aquelas ultimas palavras. Ele tinha mais motivos que o trabalho para estar naquele país, e ter alguém junto só dificultaria as coisas. Entretanto, era importante não comprometer a viagem. Resolveu ser condescendente com o patrão.

- Eu entendo sua preocupação – Sorriu e disse. – Vou encontrar uma pessoa qualificada.

- Não é necessário – Shion a interrompeu, satisfeito. – Eu conheço a pessoa ideal. Ele vive em Moscou e é amigo da família. Seu nome é Shaka Virgo e trabalha para um banco que está abrindo filial por lá. Ele fala o idioma e poderá ajudá-lo. Farei com que o encontre no aeroporto.

- Perfeito. – Mu disse sem convicção. Pretendia livrar-se do desconhecido na primeira oportunidade.

* * *

Mu pensou que teria sua chance na chegada. Certamente, seria fácil ocultar-se na multidão, arranhar um táxi e despistar o amigo do patrão. Ao chegar percebeu que não se enganara quanto ao número de pessoas. Como numa liquidação, as pessoas se empurravam e acotovelavam. Um caos completo. Como se todo o mundo tivesse resolvido desembarcar no aeroporto de Moscou exatamente naquele dia de agosto. As filas de verificação de visto e passaporte eram imensas, e os funcionários, lentos e indiferentes.

Mu permaneceu mais de duas horas na fila, exausto por ter de segurar o equipamento fotográfico. Não ousou colocá-lo no chão com medo de que alguém o chutasse. Na sua frente havia um homem alto e atrás uma mulher gorducha que o empurrava com os ombros. Até Mu lhe lançar um olhar glacial.

Ele presumiu que tudo isso traria um benefício: Shaka Virgo já devia ter desistido de esperá-lo e ido embora. Depois do visto carimbado, teve de enfrentar outra fila para comprar rublos, recuperar a mala e passar pela alfândega. A empreitada levou mais uma hora e meia, e só então Mu saiu no saguão principal. Cansado, suado e com sede.

Ele nem se deu ao trabalho de procurar o homem que certamente o esperava. Seguiu diretamente para a fila de táxis. Todos de aparência gasta e pouco confiável. Contudo, antes que pudesse escolher um deles, um moderno Mercedes prata estacionou a seu lado, e dele desceu um homem jovem, alto, magro e de longos cabelos loiros. Mu admirou-o por um momento, mas depois voltou à realidade, esticando-se para chamar um dos táxis.

- Sr. Áries?

Mu piscou e virou-se. O homem do Mercedes, em seu terno escuro impecável, o olhava ansioso. Mu pensou em negar sua identidade, mas julgou desnecessário. Este não podia ser o amigo do chefe, que já passava dos quarenta anos.

- Sim? – respondeu, apreensivo.

O outro estendeu-lhe a mão.

- Sou Shaka Virgo. Bem - vindo à Rússia.

Lentamente, Mu estendeu-lhe a mão e trocaram um cumprimento.

Ele era o perfeito executivo. Abriu a porta do passageiro para Mu e acomodou sua bagagem no porta-malas, indiferente à buzina impaciente de um táxi,

- Como soube que era eu? – Mu perguntou, observando-lhe o perfil.

- Eu recebi um fax com sua descrição, e depois, a única pessoa que portava esse equipamento fotográfico era você. Além disso... – ficou um tanto sem graça. – Não é comum por aqui alguém com o cabelo pintado de lilás, sabe... Ainda mais desse tamanho.

Mu ficou imaginando como o chefe o descrevera. Alto, de cabelos lilás e, provavelmente, sexy. O curioso é que o chefe não lhe descrevera o homem a seu lado. E nem ele tivera o interesse de perguntar. Talvez o outro pudesse mesmo ajudá-lo, a julgar pelas roupas, o carro e o relógio Rolex de ouro. Devia ser influente. O timbre de sua voz era agradável.

- Eu pensei que tivesse desistido de me esperar depois da demora no aeroporto – ele comentou.

- Demora?

Mu suspirou.

- Não, é sempre assim. Eu só vim para o aeroporto bem depois do horário de chegada do seu vôo. Não foi avisado?

- Não.

O loiro riu.

- Isto me parece mesmo coisa do Shion. - o outro comentou, referindo-se ao chefe de Mu.

- Ele é muito seu amigo?

- Não, mas é amigo de meus pais. Eles compartilham interesses equivalentes.

Isso explicava a diferença de idade, Mu concluiu. A seu ver, Shaka devia ter uns vinte de dois anos no máximo. Curiosamente, ele não lhe perguntara aonde desejava ir.

- Estamos indo a algum lugar em particular?

- Ao seu hotel.

- Mas eu ainda não escolhi um – Mu arriscou.

- Eu sei, por isso fiz uma reserva no Baltschug Kempinski. Fica num prédio antigo que foi modernizado, próximo à praça Vermelha e ao Kremlin.

- Eu havia pensado em ficar no Ukraine. – Mu retrucou.

Shaka sorriu, provocando o outro. – Acredite, não seria do seu agrado. É onde os oficiais comunistas costumavam ficar. E continua sendo muito simples.

- Talvez fosse melhor eu descobrir isso sozinho.

O outro tornou a rir. – Ah, é do tipo orgulhoso! – comentou.

Esse comentário o desconcertou. Mas Mu preferiu não retaliar, afinal pretendia livrar-se dele. Para que alimentar uma rusga? Certamente este não era o tipo de homem com quem gostaria de se envolver.

Mu sorriu e vislumbrou o novo país, que conhecera apenas pelo que havia lido nos livros e revistas, através da janela do carro. O ar condicionado do Mercedes mantinha a temperatura no interior do carro fresca apesar do sol escaldante do lado de fora, onde as pessoas encaloradas e de mau humor enchiam as calçadas.

- Pensei que o clima daqui fosse mais ameno – Mu comentou. – Hoje, pelo menos, parece mais quente do que a Inglaterra.

- No momento estamos tendo uma forte onda de calor, o que é incomum. Aqui na Rússia dizem que passamos nove meses esperando pelo verão e três meses de decepção. Você teve sorte.

Shaka virou a direção com maestria, certamente acostumado ao tráfego congestionado.

- Você não é daqui, não é? Há quanto tempo está morando em Moscou? – Mu perguntou, curioso.

- Sou indiano, mas minha mãe era inglesa. Estou aqui há uns seis meses. E você? – o loiro o fitou, de forma curiosa. Mu não parecia inglês.

- Sou tibetano, mas também de mãe inglesa. – falou com um leve sorriso. – Shion me disse que fala russo.

- Sim, foi um de meus cursos na universidade.

Um intelectual, Mu pensou. – Nunca fui para a universidade.

- Então deve ser muito bom no que faz, para ter merecido uma missão tão importante. – Shaka comentou.

Lisonja e condescendência, tudo na mesma frase! Seria um prazer incrível derrubá-lo(?). Se pelo menos tivesse mais tempo livre... Mas, como sempre, o trabalho vinha em primeiro lugar.

As ruas tornaram-se mais largas e os prédios mais grandiosos. Mu suspirou ao se deparar com o primeiro domo dourado de igreja contra o céu azul.

- Espere até ver São Basílio! – Shaka disse.

- São Basílio?

- É a catedral da Praça Vermelha e pertencente a Igreja Ortodoxa Russa. Essa catedral teve sua construção ordenada pelo Czar Ivan, o Terrível para comemorar a conquista do Cantão de Kazan, e depois da construção ser terminada, mandou arrancar os olhos do arquiteto para que não pudesse construir outra coisa tão magnífica.

Mu arregalou os olhos, curioso com a história.

- Depois disso, por volta de 1588, o Czar Fiodor Ivanovich ordenou queagregassem uma nova capela no lado leste da construção, sobre a tumba de São Basílio o Bendito, santo pelo qual foi chamada popularmente a catedral.

Atravessaram a ponte sobre o rio Moscova e Mu sorriu maravilhado ao ver a imensa igreja de torres cor de tijolo com sua miscelânea de domos coloridos.

- Parece cenário de um conto de fadas! – ele exclamou. – Não imaginava que os domos pudessem ter tantas cores e formatos diferentes. As pessoas daqui devem amar as cores.

- É verdade. Os russos têm sangue quente.

Mu pensou ter ouvido uma nota de desaprovação na voz de Shaka. Se não apreciava a paixão do povo russo, então quem era ele? Talvez gostasse de bancar o indiano austero.

Em poucos minutos estavam diante do hotel. Shaka ajudou-o com o registro de hóspedes e depois levou a bagagem até o quarto. Este, além de muito confortável, tinha as janelas voltadas para os domos coloridos de São Basílio.

- Você deve querer desfazer as malas e eu tenho um compromisso. Encontro você daqui a meia hora no saguão do hotel. Precisa de mais alguma coisa? – Shaka perguntou.

- Uma bebida.

O loiro sorriu. – Então eu o encontrarei no bar.

Mu ficou aborrecido com o tom autoritário. O outro nem mesmo o convidara ou sugerira. Partia do pressuposto que ele devia se adaptar a agenda do outro. Num arroubo desafiador, Mu abriu o frigobar e serviu-se de um refrigerante, sorvendo-o com gosto. Depois, a língua pelos lábios, deixou escapar um suspiro de prazer. Olhou para Shaka e percebeu que o loiro o estudava.

- Pensei que tivesse um compromisso. – Mu lembrou-o.

Ele piscou e concordou, com um gesto de cabeça.

- Eu o vejo mais tarde. – Deu meia-volta e retirou-se.

Embora o prédio fosse antigo, o banheiro era moderno. Mu despiu-se e entrou sob o chuveiro para refrescar-se. Em seguida, usando apenas uma cueca, foi desfazer as malas. Havia um cofre dentro do armário, onde guardou seus valores e um velho caderno muito importante. Diante do espelho, ajeitou os cabelos. Vestiu uma camisa branca de manga três quartos e uma calça jeans que ficava um tanto colada em seu corpo. Refletiu se deveria ou não seduzir Shaka. Talvez o loiro não fosse gay, mas ele parecia interessado. Podia ser divertido.

Melhor não, decidiu, enquanto pegava a carteira e preparava-se para sair. Caso o loiro se apaixonasse, seria difícil livrar-se dele quando chegasse a hora. Olhou o relógio de pulso e viu que já o deixara esperando por mais de vinte minutos. Desceu para o bar.

Shaka não parecia aborrecido com a espera. Conversava com outro homem em russo fluente. Quando o viu, ele levantou-se e o admirou, detendo-se nas coxas bem torneadas de Mu.

- Olá. O que gostaria de beber?

- Bem, como estou na Rússia, acho que vou arriscar uma vodca.

- Com tônica?

- Por favor.

Shaka passou o pedido ao barman e notou que seu companheiro olhava com interesse para Mu.

- Deixe-me apresentá-lo – ele disse secamente – Kamus Aquarius. Sr. Mu Áries.

Mu estendeu a mão para o ruivo que lhe fora apresentado, com um sorriso maroto nos lábios. – É um prazer.

Kamus tomou-lhe a mão e o cumprimentou. Era ruivo, com feições delicadas, que o tornavam atraente de um modo diferente. Vestia um terno marrom, mas olhos transpiravam uma jovialidade informal.

- Bem – vindo à Rússia – ele disse com mesura. – Você está de férias em Moscou?

Mu lançou um olhar a Shaka e então respondeu.

- Não. Estou aqui a negócios. Trabalho para uma firma de informática e estamos juntando material para um CD-rom, sobre Fabergé (1)

- Fabergé? – Kamus ergueu as mãos num gesto extravagante.

- Então veio ao lugar certo. Existem tantas informações. A fábrica fez coisas lindas.

- Eu sei. Mas devo apenas me concentrar nos ovos de Páscoa.

- Ah, claro! Todos desejam ver os famosos ovos.

- Creio que vocês possuem diversos aqui em Moscou?

- Sim, certamente. No Museu de Heráldica.

- Que fica no Kremlin, não é?

- Você foi bem informado, Mu.

O tibetano sorriu, mas por dentro não gostou do tom usado pelo outro.

- Por falar nisso, Kamus poderá ajudá-lo. Ele tem livre acesso ao Kremlin. – Shaka emendou, ao acaso.

- É mesmo? – Mu fingiu estar impressionado com o ruivo.

- É por causa de meu trabalho.

- Ah, o que você faz?

- Eu sou arquiteto, fui nomeado oficial do departamento que lida com os prédios do governo.

- E um oficial graduado. – Shaka novamente emendou.

Kamus não desmentiu e sorriu. – E como o Kremlin é o prédio mais importante de Moscou, preciso estar sempre nele.

- Deve ser um trabalho maravilhoso! – Mu disse, entusiasmado.

Kamus não se fez de rogado.

- Será um imenso prazer mostrar-lhe o museu.

- É muita gentileza de sua parte. Na verdade, eu combinei de me encontrar com o professor Saga. Creio que ele é o curador encarregado dos ovos Fabergé.

- Ah, sim. Eu o conheço. Falarei com ele para que lhe preste toda a ajuda necessária.

- Bondade sua. Fico-lhe grato. Sei que vou aproveitar bastante minha estadia em Moscou.

Mu sorriu e o russo sentiu-se encorajado a prosseguir na narrativa das maravilhas de seu país. Tomaram mais alguns drinques, então Kamus lembrou-se de que precisava partir. Shaka pagou a conta e tomando a mão de Mu na sua por um instante o contemplou, admirado.

Depois que Kamus partiu, Shaka esperou cinco minutos antes de dizer:

- Termine seu drinque. Vamos sair daqui.

Eles caminharam no final da tarde até a praça Vermelha. Shaka lhe aprontava os monumentos e os identificava: o Kremlin com sua alta muralha, a loja de departamentos Gum do lado oposto, e a pedra angular do túmulo de Lênin.

A praça estava repleta de grupos de turistas, mas não chegava a estar lotada.

- Você se saiu muito bem com Kamus – Shaka disse.

- Ele parece ser boa pessoa – Mu disse e notou a expressão de Shaka. – Não queria que eu fosse gentil com ele?

O loiro contemplou o outro atentamente.

- Na verdade, não. Apenas achei que ele poderia lhe ser útil.

- Ele é amigo seu? Ele não me pareceu ter feições russas.

- Mero conhecido. Kamus nasceu na França, mas vive em Moscou desde a infância. Sua mãe era francesa e seu pai era daqui, por isso ele se nacionalizou russo. – suspirou antes de continuar. – Os russos gostam de conhecer todos os estrangeiros. Mulheres e... Homens.

Mu levantou a cabeça e o encarou. – É um aviso?

Shaka concordou. – Os russos gostam de contar vantagem. Como, por exemplo, dizer que conhecem um homem tibetano.

- O que significa esse "conhecer" – Mu ergueu o rosto com ingenuidade.

Os enigmáticos olhos azuis de Shaka encontraram os seus verdes.

- Tenho certeza que me entendeu.

Para atormentá-lo, Mu manteve o ar de inocência. – Quer dizer amizade? Mostrar a cidade, essas coisas?

Por um instante Shaka pareceu intrigado, então viu o sorriso maroto de Mu e ficou sério.

O tibetano riu. – Você quis dizer sexo, não é?

Shaka concordou. – Se permitir que aconteça, será um grande erro.

Mu sentiu-se insultado com o comentário. Que tipo de homem o outro o julgava? Achava que era presa fácil? Considerava-o vulgar a ponto de se deixar seduzir por um estranho atraente? Ou apenas guardava uma opinião preconceituosa de si por causa da aparência andrógena?

- Obrigado pelo aviso. Jamais saberia que certos homens podiam ser tão desprezíveis se não tivesse me alertado.

- Posso lhe fazer uma pergunta pessoal?

- Pode. Mas não garanto que vou responder.

- Qual é a sua idade?

Mu torceu os lábios e sorriu. – O que acha?

- Vinte e dois anos?

O tibetano concordou. – Quase acertou. Por que quer saber?

Mas Shaka não respondeu. – E você tem um parceiro? Não é assim que chamam as pessoas que partilham de um relacionamento estável?

- Parece desaprovar.

- O termo ou um relacionamento homossexual?

- Ambos. – Mu estremeceu. – E como sabe que sou homossexual?

Shaka o observou por um instante, a expressão preocupada, os olhos semicerrados. – Ainda não respondeu minha pergunta.

- Eu não prometi nada.

- Então?

Mu tombou a cabeça para o lado e o estudou.

- Não quero responder.

Por um breve momento, o loiro ficou sem ação, como se não estivesse acostumado a ser contrariado. Então, retomou o tom formal.

- Muito bem, como quiser. Vou levá-lo até a entrada do Museu de Heráldica. Assim já saberá onde fica quando vier visitá-lo.

Shaka o conduziu através de um portão em arco, guardado por soldados. Chegaram a uma área aberta onde uma parte do passeio possuía uma cobertura escorada em andaimes. Provavelmente para abrigar as filas de turistas da chuva e da neve. Naquele momento, entretanto, fornecia sombra e abrigo do calor intenso.

- Ainda não abriu? – Mu perguntou, confuso.

- Sim, mas os visitantes só podem entrar em certos horários e por períodos preestabelecidos.

- Espero que isso não se aplique a mim – ele disse, alarmado. – Preciso de visitas prolongadas e, de preferência, sem a presença de turistas.

- Daremos um jeito.

Mu o examinou, avaliando se ele seria influente.

- Soube que sua firma está abrindo uma filial em Moscou – o tibetano comentou.

- Sim, é verdade.

- Que tipo de negócio?

- Banco. – Shaka respondeu.

Então ele não passava de um funcionário do banco. Certamente não tinha nenhuma influencia. Já fizera o máximo ao apresentá-lo a Kamus.

Caminharam de volta ao hotel. Mu estava acostumado a viajar em razão do trabalho, mas a Rússia era um país diferente dos outros. Os nomes das ruas e sinais eram indecifráveis. Talvez por causa do alfabeto cirílico, no qual o "H" tem o som do "N". Depois, havia o contraste das cores das igrejas com os blocos de apartamentos de concreto.

- É seguro eu andar sozinho pro aqui?

Shaka deteve-se e virou-se para ele.

- O que quer dizer? – ele indagou.

Mu piscou surpreendido pela reação dele.

- Ora... apenas o que perguntei: é seguro andar sozinho?

Lentamente, a expressão de Shaka tornou-se mais relaxada, mas sua voz reteve um tom alterado.

- Durante o dia, sim, mas não o aconselho a sair sozinho à noite.

Mu ficou boquiaberto diante daquelas palavras. Seria o lugar tão perigoso assim? Chegaram ao hotel e o tibetano estendeu-lhe a mão. – Muito obrigado por tudo. Foi muito gentil.

- Não foi nada. – o loiro sacudiu a cabeça em negativa, mas não partiu. – Disse que falou com o professor Saga. Quando pretende encontrá-lo?

- Amanhã. Vou ligar para ele agora mesmo e combinar o horário.

- Ele fala inglês?

- Sim, eu acho.

- Tem certeza? Gostaria que eu fizesse a ligação para você?

"Deus, me dê paciência", Mu pensou. – Acho que sou capaz de fazer uma chamada telefônica sozinho.

O sarcasmo atingiu Shaka, mas ele limitou-se a erguer as sobrancelhas loiras.

- Muito bem. Venho apanhá-lo às oito horas para o jantar.

- É muita gentileza, mas não quero incomodá-lo. – Mu disse.

- Não é incômodo algum.

- Mas e... – Mu pretendia perguntar-lhe da família, mas julgou que o outro estivesse só na Rússia. – Tenho certeza de que é muito ocupado, não quero tomar todo seu tempo.

Shaka franziu a testa. – Eu o encontro no saguão às oito da noite.

O loiro caminhou até o carro estacionado e partiu, deixando Mu apreensivo. Agora estava preso a um chauvinista e autocrata. Fez a ligação ao professor Saga na recepção e seguiu até a loja de departamentos Gum.

O prédio lembrava um castelo francês, com fachada branca e telhado verde. O interior era magnífico. Cheio de galerias ligadas por pontes com balaustre trabalhados em ferro e tetos em arco. Mu comprou um guia em inglês com mapas que cobriam toda a Rússia ocidental, de Moscou a São Petesburgo. Então admirou o grandioso teto em vidro, imensa trama, com teia de aranha.

As lojas já estavam fechando; assim mesmo Mu procurou artigos russos, porém as companhias ocidentais já haviam tomado o lugar. Tirando a arquitetura esplêndida, era um shopping como em qualquer outra parte do mundo.

Voltou ao hotel e guardou o guia na mala. Era um pouco provável que Shaka viesse de novo a seu quarto, mas não custava evitar ter de dar explicações. Colocou uma calça de seda preta que ficava bem colada ao corpo, marcando as nádegas bem redondas e empinadas, e uma camisa branca semitransparente, e desceu para o saguão do hotel para encontrá-lo.

Ele acabara de entrar quando chegou ao térreo. Mu causou estardalhaço com sua roupa, atraindo muitos olhares ao sair do elevador.

Shaka ficou estático por um momento, então caminhou em sua direção.

- Você foi pontual. – ele comentou, admirando o tibetano.

- Não costumo fazer as pessoas esperarem por mais de três horas. – Mu disse, referindo-se à espera no aeroporto.

O loiro sorriu. – Jamais vai esquecer-se daquilo, não é?

- E poderia?

- Não deixe que isso estrague sua viagem. – Shaka tomou o braço do outro e o conduziu até a porta.

- Não se preocupe. – Mu, deliberadamente, levantou a mão até os cabelos, aproveitando-se do gesto para livrar-se dele, e seguiu na frente até o carro.

Shaka abriu-lhe a porta. Não deu mostras de haver entendido a mensagem, mas não o tocou mais.

- Aonde vamos? – Mu perguntou enquanto o outro dirigia.

- A um restaurante de comida típica russa. Achei que gostaria de experimentar na sua primeira noite.

- Bem pensado.

Shaka ergueu uma sobrancelha, irônico. – Devo concordar.

Mu esboçou um sorriso. – Você mora num hotel?

- Não, eu tenho um apartamento, por enquanto.

- Pretende se mudar?

- Não, mas meu trabalho aqui está terminando. Devo regressar à Inglaterra em breve.

- Breve? – Mu apegou-se à palavra. – Espero que não tenha ficado em Moscou só por minha causa.

Shaka não respondeu diretamente. – Tenho direito a umas férias.

- Que embaraçoso! – Mu o encarou. – Não quero impedi-lo de voltar para casa e à sua família. Foi errado Shion pedir-lhe para...

- Estou feliz por poder ajudar – Shaka interrompeu. Seu tom não deixava margem para discussão ou protesto.

- Shion é um amor. – Mu suspirou. – Ele se preocupa tanto comigo. Mas devia entender que posso me cuidar sozinho. Mesmo num país estrangeiro. Posso até imaginar a lista de instruções que passou a você. – Não o deixe ficar muito íntimo aos nativos. Não o deixe fazer passeios turísticos, ele não está de férias. Não o deixe andar de metrô, pode perder-se, e também não o abandone nas lojas ou poderá gastar uma fortuna.

Shaka estacionou o carro diante do restaurante e riu.

- Como sabe o que ele me disse?

- Porque ele me passou o mesmo sermão. Toda vez que viajo, ele fica preocupado.

- Fico surpreso por ele deixar esse tipo de trabalho sob sua responsabilidade.

A voz de Mu se tornou séria. – Ele precisa. Sou muito bom no que faço.

Shaka virou-se para ele e o fitou longamente. Percebeu a seriedade e determinação que havia naqueles olhos verdes.

- Posso entender os motivos dele. Você passa uma imagem de... – Calou-se, buscando a palavra certa. - ... Fragilidade. Faz-me lembrar daquelas bonecas de porcelana. Veste-se com modernidade, mas guarda aquela delicadeza que se perdeu no mundo contemporâneo.

Mu suspirou. Soube exatamente ao que ele se referia. A delicada constituição óssea sempre fora a ruína de sua carreira profissional. Não deixava de ser uma ironia, pois na vida social eram qualidades.

- Sou um profissional e posso lidar com qualquer situação. Não preciso de babá, e tampouco de um acompanhante.

Shaka ergueu as sobrancelhas. – Acaba de fazer uma declaração bem definitiva.

- A idéia era essa.

- E por que disse que não precisa de um acompanhante?

Mu o encarou com bravura. – Não sou um garoto, e sim um homem experiente. Se eu quiser ser amigo de alguém, não é o meu patrão que vai decidir. – Pensou em referir-se ao loiro também, mas preferiu manter-se impessoal.

Shaka pareceu não gostar, uma vez que endureceu a expressão do rosto.

- Começo a achar que Shion tem razão.

- Por quê?

- "O senhor reclama bastante", ele me disse. – Shaka abriu a porta do carro. – Venha. Vamos comer.

* * *

O restaurante estava cheio. Era difícil saber a nacionalidade dos clientes, todos muito elegantes. Apenas quando se passava por eles e ouvia-se o idioma era possível descobrir. Bebiam, comiam e conversavam animadamente. Num palco, improvisado por trás da pista de dança tocava uma banda cigana.

Mu virou-se para Shaka. – É sempre desse jeito?

O outro abaixou a cabeça para ouvir melhor. Mu repetiu a pergunta e o loiro concordou.

- Todo lugar em que há russos, há barulho.

Sentaram-se numa mesa para dois, próxima da janela. O garçom entregou os menus, mas Shaka nem os abriu, os olhos perdidos em Mu.

- Um rublo por seus pensamentos. – Mu disse, as sobrancelhas finas e loiríssimas, tanto que nem dava para notá-las, arqueadas.

Shaka pestanejou e pareceu desconcertado. – O que gostaria de beber?

Escolheram vodca com gelo e Shaka passou a traduzir o menu para ele.

- todos comem zakuski (2) – ele disse. – É um tipo de entrada. E os russos demoram muito neste prato. É por isso que a maioria dos ocidentais reclama do serviço lento, eles comem o zakuski e querem o prato principal logo em seguida, mas é preciso prolongar a experiência.

- Torná-lo uma refeição. – Mu disse, ouvindo Shaka rir.

- Eu fiz por merecer, não foi?

- Você não aceitou minha oferta. – o tibetano comentou.

- Oferta? – o loiro não pareceu entender o que Mu estava dizendo.

- Um rublo por seus pensamentos. – Mu o lembrou. – Parecia tão distante.

Shaka riu novamente. – É mesmo?

- Onde estava?

O loiro apanhou o copo e estremeceu de leve. – Não foi nada. É que você me fez lembrar uma pessoa.

- Quem?

- Você não conhece – ele disse – Já escolheu o que vai pedir?

- Bem, como estou na Rússia, acho que vou pedir o estrogonofe de carne.

- Que aventureiro! – Shaka sorriu.

Mu devolveu-lhe um sorriso, curioso por saber quem seria a pessoa, e por que a lembrança o deixara tão distraído.

- Trouxe sua família para Moscou? – o tibetano acabou por perguntar, um tanto curioso.

- Minha família? – Shaka o estudou atentamente. – Não sou casado.

- Entendo. As firmas costumam mandar pessoas solteiras para o exterior. É mais barato.

- Creio que sim.

Shaka pareceu divertir-se com o comentário, mas voltou a atenção ao garçom. Fez o pedido em russo fluente, e logo chegava a entrada e uma garrafa de champanhe russa. A banda cigana tocava animadamente e muitos casais já enchiam a pista de dança. Mu observava-os com interesse. Alguns arriscavam passos de valsa, enquanto outros apenas rebolavam. O quadro era engraçado.

- Gostaria de dançar? – Shaka sugeriu.

- com esta música? Nem pensar! Ainda não bebi o bastante.

- Talvez uma música lenta, então. – O loiro chamou o garçom e lhe deu algum dinheiro para levar ao líder da banda, um homem de bigode e roupa espalhafatosa.

O dinheiro teve o efeito esperado e a banda passou a tocar uma canção romântica. Shaka levantou-se e ofereceu a mão a Mu. Relutante, ele cedeu ao convite e deixou-se levar até a pista, onde Shaka o envolveu nos braços. Moviam-se através do salão com desenvoltura e Mu não podia deixar de pensar como era estranho estar ali tão próximo a ele, um desconhecido. Os corpos colados, os rostos quase se tocando. Podia sentir-lhe o perfume másculo e vislumbrar-lhe o sorriso. Estavam cientes de que naquele instante eram apenas dois homens, e o trabalho uma mera desculpa. Farsa que encobria o desejoprimitivo que os envolvia.

Mu achou suas idéias perturbadoras. Aquela proximidade incomodava-o. Podia contemplar os traços firmes, a beleza indiana daquele loiro tão belo.

Pôs-se a imaginar se Shaka seria experiente com outros homens. Afinal, ele não o devorara com os olhos, como muitos faziam, ou agira de forma mais audaciosa. Tinha classe e era seguro. Não precisava se expor ao ridículo. Este tipo de homem possuía uma aura irresistível.

"Seria Shaka um homem desses?", Mu refletiu.

Um casal desajeitado esbarrou neles, mas, antes que ele desse um passo em falso, Shaka o segurou e levou para o outro lado da pista. Mu riu.

- Esta foi por pouco.

- Hum-humm. – Shaka olhou o tibetano e sorriu. Mu imaginou se aquele homem podia ler-lhe a mente.

- Está distante novamente. Onde estava desta vez?

Mu não sabia o que esperar, mas certamente não previa o que ele iria lhe dizer.

- Eu sei que tem outro motivo para ter vindo a Rússia.

O tibetano parou de repente, desconcertado, sem poder encará-lo. Como ele podia saber? Como descobrira?

Continua...

(1) Os Ovos Fabergé são obras-primas da joalharia produzidas por Peter Carl Fabergé e seus assistentes no período de 1885 a 1917 para os czares da Rússia. Os ovos, cuidadosamente elaborados com uma combinação de esmalte, metais e pedras preciosas, escondiam surpresas e miniaturas encomendados e oferecidos na Páscoa entre os membros da família imperial. Disputados por colecionadores em todo o mundo, os famosos ovos de páscoa criados pelo joalheiro russo são admirados pela perfeição e considerados expoentes da arte joalheira.

(2) Zakuski – São aperitivos: Como peixe salgado, carne fria, etc.

Mais um fic no ar! Eu juro que pensei fazer algo que não fosse U.A. mas não consigo resistir. É a minha primeira fic Mushakista, mas espero que tenham gostado deste primeiro capítulo. Ele ficou maior do que imaginei e a história me parece que vai ser bastante complexa também. E então, o que acharam? Fico me roendo toda aqui querendo saber se alguém gostou pelo menos um tiquinho para eu poder continuar. Aiai... Agradecimentos à Virgo no Áries, porque se ela não ficasse me pedindo todos os dias, certamente eu nunca começaria um fic assim (Sagitarianos só pegam no tranco mesmo heheh) e agradecimentos especiais à Akane M.A.S.T. pela betagem e paciência de Buda para me agüentar.