Disclaimer: I do not own Relic Hunter – Relic Hunter e seus personagens não me pertencem. I do not own Teen Wolf – Teen Wolf e seus personagens não me pertencem.

Summary: Relic Hunter; Teen Wolf Universe; fusion; horror, adventure; Festival de Crossovers Casa-de-Ideas. De volta à cidade natal, Beacon Hills, o órfão Nigel se encontra à mercê de lobos, feiticeiros e caçadores. Ele descobre que os monstros que assombravam seus pesadelos sempre foram reais.

N.A.: Ok, segunda etapa da operação tirar as teias de aranha. Postando as fics que estavam acumulando poeira lá no LJ xD - Foi absolutamente difícil reunir os personagens de RH com os de TW (não senti a química, entende), então resolvi fazer uma fusion de Sydney Fox e Nigel Bailey no universo de TW, porque estou morrendo de saudades deles. O resultado foi que a história acontece em Beacon Hills em um período anterior ao do show TW. As famílias conhecidas ainda não se estabeleceram na cidade, o foco são os meus caçadores de relíquias. Espero um dia dominar a arte dos oneshots (sonhar não é pecado). BTW, esta é a segunda edição.

Advertências: sangue; violência.


Beacon Hills (T-PG13)

(1a parte)

Ao ler a carta e ficar sabendo que se mudaria para a cidade de Beacon Hills, pois herdara a casa do tio, Nigel não fizera muito mais que olhar ao redor da modesta quitinete que habitava e considerar que precisaria de uma gaiola para levar a sua gata. A notícia súbita da morte de Lonell Bailey foi um choque. Não apenas porque o tio jamais entrara em contato com Nigel nos últimos dezesseis anos, mas também porque o jovem homem sabia que agora, realmente, era o último de sua família.

Parte da momentânea apatia se dava ao fato de que Nigel nunca tivera interesse em voltar ao local onde vivera sua infância - se o tivesse, seria para visitar os túmulos dos pais e do irmão, o que ficara sempre em segundo plano por ele ter prioridades como comprar comida e pagar o aluguel. E parte, determinante, inclusive, porque depois dos intermináveis turnos no trabalho durante a terceira semana de insônia, não sobrava ao homem energia para pensar claramente nos prós e contras da compulsória viagem.

Depois de mais de uma década e meia e sem qualquer aviso, o jovem adulto era tragado de volta à pequena cidade da Califórnia onde seus pais moraram. A cidade que ele e o irmão inocentemente chamaram de lar.

Em sua memória não restavam muitos detalhes sobre o local. Ele tinha a clara sensação que os dias eram agradáveis e calmos, e as noites frias e assustadoras. Beacon Hills era o berço de acontecimentos estranhos, o lugar que acomodara e tomara sua família.

Os motivos para Nigel ter ficado longe lhe acompanhavam desde que deixara a cidade - às vezes não o deixavam dormir, e, às vezes, dominavam seus sonhos.

-x-

"Eu já disse que não sei onde ele está!" A voz apertada ecoou pelo pequeno depósito do mercado e posto de gasolina nos limites da cidade.

O sorriso nada amigável de Sydney Fox mostrou uma das presas no canto dos lábios - o branco em contraste com a cor avermelhada do batom: "Deve estar com problema de memória. Aqui, eu vou te ajudar a lembrar." A mão firme na garganta do homem apertou ainda mais, e ele engasgou lutando pelo ar. A mulher observou as garras dele arranharem o braço e a mão que o sufocavam; era inútil, e vergonhoso como aquele lobisomem era fraco. Ela soltou o aperto quando o viu revirar os olhos. Largou-o sem cerimônia no chão. As pernas dele não aguentaram o peso, mesmo já curadas.

Entre ganidos e tossidas, o fedor do medo corrompeu o ar. O homem-lobo segurou a própria garganta, constatando que o dano de garras feito ali não se curaria instantaneamente, como ele esperava.

Sem pressa, ela deu alguns passos ao redor daquela bagunça, esperando até que o licantropo se recuperasse o suficiente para falar. Parou diante de uma das caixas que espalhara no pequeno depósito usando o ser fremente como projétil; pôs um dos pés sobre uma delas e escorou os cotovelos no joelho. "Então, ele está na cidade vizinha?"

O lobisomem mordeu os lábios várias vezes, ainda encolhido no local onde caíra. O barulho de seus batimentos cardíacos e a respiração frenética ensurdeceriam um metamorfo recém-mordido. Sydney apenas moderou seus sentidos, satisfeita pelo que estava causando. Ele esfregou o suor da testa e balançou a cabeça. "Ninguém… ninguém sabe onde ele está…" Ela esticou o braço. Longos cabelos castanhos ondularam-se enquanto ela desembainhava, com um movimento vagaroso, o punhal do cano da bota. Voltou à posição anterior, escorada sobre a perna dobrada. O sujeito encolheu-se ainda mais, encarando a ponta reluzente do punhal. "Eu juro! Ninguém sabe!"

Ela balançou a cabeça, concordando. Teve certeza, pela leitura do corpo e pelo odor amargo do pânico exalando do licantropo, que ele não estava mentindo. Mas não fora somente pelas informações que ela viera. "O que você fez na noite passada?" Mudou de assunto, casualmente. Ele parou de tremer, seu coração, contudo, continuou acelerado. A transpiração na testa se ampliou até as costas, e o sujeito abaixou a cabeça gemendo. Ela se ergueu e caminhou até a câmara fria na parede atrás do sujeito. Abriu a porta reforçada, e o cheiro de sangue humano invadiu suas narinas, fazendo-a virar o rosto. "Você sequer limpou este lugar!"

"Eu- Foi a lua cheia! Eu perdi o controle!"

"Deu pra notar, ainda estão recolhendo os pedaços da vítima perto do lago." Ela fechou o refrigerador. "Fique de pé." O lobisomem cambaleou, mantendo a cabeça baixa. Ela retirou do bolso um pequeno frasco e o jogou. "Beba."

Ele estudou o líquido de cor lilás que apanhara e arregalou os olhos. Abriu a boca, gaguejando. "P-por favor, eu não tive culpa, foi a lua!" Pânico brilhou no azul neon de seus olhos, ele se encolheu com submissão, implorando clemência.

A mulher apertou o punhal entre os dedos - o nome Fox reluzindo na lâmina. "Você estraçalhou um caçador e jogou o corpo na reserva para que a polícia pense que foi um leão da montanha. Escolheu o território errado para violar as regras. Agora beba. A. Poção."

Ele contorceu o rosto, soltando um ganido. Abriu o frasco; ameaçou jogá-lo no chão, mas não o fez. Bebeu todo o líquido e deixou o vidro cair. Despencou de joelhos quase que imediatamente, espuma negra formando-se em sua boca. "Cadela dos caçadores… eles vão acabar com você… como fez comigo…" grunhiu, o maxilar travando.

"Estou contando com isso," ela respondeu.

A criatura passou a convulsionar, o veneno apoderando-se do organismo sobre-humano. Sydney deu as costas à cena e saiu do depósito. Ao abrir o portão lateral, encontrou a luz do sol da manhã e também o grupo de quatro homens armados, que entrou por onde ela passara carregando correntes e algemas. Um buick azul aguardava do lado de fora, próximo da saída, pronto para levar o lobisomem prisioneiro.

"Sydney!" Um homem de aproximadamente sessenta anos, grisalho, desceu do automóvel chamando pela mulher. Seguiu-a até o outro veículo estacionado na frente do Nelson's, o posto de gasolina do mercado ao qual o depósito pertencia. Antes de continuar atrás da morena rápida, ele conferiu que o estabelecimento permanecia vazio e ninguém testemunharia o carro azul escapando sorrateiramente pela avenida na periferia da cidade, recheado com os quatro homens e o licantropo. "Está ferida?"

A mulher viu o pedaço rasgado na manga de sua blusa, o único vestígio da tentativa fracassada do lobisomem de se libertar. Fez careta para o estrago. "Alistar, você sabe que não precisa se preocupar com isso." Ela abriu a porta do jipe. "E eu disse que não foram os Hale," mencionou antes de embarcar no carro.

"Oh." Ele fez a volta e entrou pela outra porta. "E quanto a Tate?"

"Ainda não há notícia." Ela exalou o ar, levemente irritada. Deu a partida no veículo. "Tenho duas horas pra fazer a minha corrida, trocar de roupa e irmos para o colégio."

-x-

A casa era enorme. Espaçosa daquela forma quando o local fora construído para dez pessoas e no momento não acomoda ninguém além de um homem e um gato. Pelas informações, tio Lonell há meses já não ficava ali, e sim internado no hospital da cidade. A demência não lhe permitira ficar sozinho, e a debilitação exigira acompanhamento constante nas últimas semanas que vivera. Nigel, como o familiar mais próximo, ou melhor, o único, chegou a ser mencionado pelo tio em um dos momentos de lucidez, pelo que as enfermeiras disseram. E agora ali estava ele, descarregando seus pertences que cabiam em duas malas: algumas mudas de roupas, livros e os poucos objetos que recebera no hospital.

O sobrado ficava numa área bonita, porém afastada, perto da reserva. Quando criança, Nigel estivera ali algumas vezes, correra por entre as árvores com seu irmão até os dois alcançarem o lago no centro da mata.

Ele também se lembrava de ter visitado uma casa no meio daquelas árvores, cheia de gente. Devia estar vazia agora. Seu pai e sua mãe iam lá constantemente, havia outras crianças e os passeios eram divertidos. Depois do acidente, quando apenas ele restara, a nova família - um dos primos distantes de seu pai em outra cidade - acabou não sendo tão receptiva.

Nigel devolveu a chave ao bolso. Escutou o rangido do assoalho cedendo sob seus pés quando ele passou pelo umbral. As janelas estavam com as cortinas abertas, e a claridade do dia aquecia a sala. Ele se sentiu seguro ali. Protegido.

"Não é tão mal assim," disse ao felino que aguardava na gaiola, do lado de fora da entrada. Mafdet não pareceu muito impressionada. Ele espirrou, escondendo o nariz na manga do casaco. Os móveis eram velhos e gastos, e o cheiro de poeira e remédios entranhado ali, com sorte, não seria permanente. "Pelo menos temos mobília, desta vez." Largou as malas e apanhou a gata.

A casa estava inteira, apesar do aparente abandono. Os degraus da escada para o segundo andar também fizeram barulho, e Nigel escolheu um dos quartos vazios para deixar suas roupas. No fundo do corredor, ao lado do banheiro, era claramente o quarto de seu tio. O aposento tinha ervas e talismãs nos quatro cantos, e um odor característico que deveria ser do velho Lonell Bailey. As fotografias espalhadas pela cômoda foram como um soco no estômago. Nigel observou as faces sorridentes da família por vários minutos, não reconhecendo a si próprio naquelas imagens com tanta alegria num rosto redondo e rosado.

Apanhou um dos retratos de sua mãe quando criança e levou a fotografia para o quarto que escolhera. Desceu as escadas depois disso, passando por Mafdet, que investigava todos os cantos empoeirados de seu novo lar, e foi revisar a cozinha. Na mesa, ainda repousava um jornal. Era de seis meses atrás, a manchete tratava da eleição do novo xerife, com a breve menção de ataques de animais que estavam sendo investigados.

As mãos de Nigel tremeram. Ele amassou as folhas e as jogou na pia. As noites de Beacon Hills continuavam perigosas.

Mafdet soltou uma miadela esganiçada esfregando-se em suas pernas, e o jovem Bailey exalou o ar. "Precisamos de comida."

-x-

"Eu sinto muito pelo seu tio, querido." A senhora que estava atendendo e apresentara-se como Marta Nelson, dona do mercado e posto de gasolina, terminava de empacotar as compras. Ela já sabia quem Nigel era antes mesmo de ele se apresentar ou ter a chance de perguntar pelo anúncio colado na porta sobre a vaga de operador de caixa. "Mark sempre fazia as entregas. Bailey era um bom homem, foi uma pena ter passado tanto tempo sozinho naquela casa." Nigel assentiu, em silêncio. "Bom, você vai ficar lá, agora. Não se isole como ele, as pessoas daqui são agradáveis se lhes der a chance. Quantos anos você tem?"

"Vinte e seis."

"A minha sobrinha Samantha tem quase vinte. Ela sempre passa por aqui, talvez vocês se vejam."

"E… quanto à vaga?"

"Oh, sim. Você já trabalhou nessa área?"

"Já fui carregador, e já trabalhei como operador de caixa."

"Somos a única loja que fica aberta vinte e quatro horas além da farmácia, no centro. Robert trabalhou por uma semana e foi embora sem sequer me avisar, e eu estou aqui, acabando com a minha coluna. Se está interessado, pode começar amanhã." Nigel sorriu, surpreso. Fora a entrevista de emprego mais rápida e fácil que tivera. "O trabalho inclui organizar o depósito, as prateleiras e cuidar do balcão à noite. Começa às dez." Ela sorriu. Observou o rosto do jovem. "Você está bem?"

Ele apertou o pacote de compras contra si e forçou o sorriso a retornar. "Estou. Obrigado."

"Chegue às nove para o Mark te mostrar como as coisas funcionam."

"Certo. Obrigado, senhora Nelson."

Ele saiu da loja, respirou profundamente e seguiu o caminho a pé pela avenida de volta para a casa. As coisas estavam indo bem, acabara de chegar e não estava mais desempregado. O mercado existia há tanto tempo, não devia ser perigoso. Certo?

-x-

A casa dos Newell era agradável e espaçosa. Sydney vivia ali desde que os pais se foram. A residência Fox ficava no mesmo bairro, mas a morena preferia morar junto de seus padrinhos em vez de sozinha e isolada. Ela tentara assumir a casa dos pais quando completara vinte e um anos, mas seus instintos pediam proximidade das pessoas que considerava família.

Uma licantropa alfa descontrolada seria destruição e morte certas na cidade. Sydney jamais se perdoaria se causasse algo do tipo. A lembrança de seus pais, Randal e Cíntia, era a âncora que a mantinha humana, impedia sua mente de ser arrastada pelo poder pulsante e animalesco em seu interior. Os Newell lhe davam a estabilidade e a calma que ela precisava para isso.

A mulher sentou-se ao redor da mesinha de centro na sala de paredes rosadas - decorada ao gosto de sua madrinha. Estavam no final da tarde, ela e o padrinho acabavam de chegar do colégio onde davam aula. "Ele não estava mentindo. Ninguém sabe onde Tate está," reclamou.

Alistar serviu mais uma colher de açúcar na xícara de chá e voltou a se acomodar no sofá. "Gerard quer caçá-lo além da cidade."

"Há muitos bandos nos territórios vizinhos. Sair às cegas é perigoso demais."

"Gerard ainda é um jovem impulsivo." Christine, a esposa de Alistair Newell, deixou o prato de bolo sobre a mesinha e sentou-se ao lado do marido. "Lis o está mantendo na linha, mas os Argent cansaram de esperar Tate aparecer. Com o Nemeton selado, os forasteiros diminuíram. É só uma questão de tempo até eles saírem por aí começando uma guerra procurando aquele lobisomem."

Sydney apoiou o cotovelo no braço da poltrona. "Eles vão morrer. E trarão mais inimigos à cidade."

Alistair apanhou um pedaço do bolo. "Lis acha que os Hale sabem de algo. Eles vão patrulhar a fronteira até encontrá-los."

"Os Hale não pretendem invadir Beacon Hills, quantas vezes eu terei que repetir? O beta que apareceu aquele dia foi um acidente. O alfa já se desculpou."

"Nós acreditamos em você, querida. Mas os Argent estão desesperados, você sabe." Christine serviu chá e entregou à morena. "Vamos acompanhar a patrulha que começa hoje há noite. Ao menos eles diminuirão a atenção em você enquanto estiverem ocupados com isso."

Sydney exalou o ar e aceitou a bebida.

-x-

A vizinha acenou quando viu Nigel pela rua - ele ter passado por ali mais cedo com duas malas e estar carregando compras no momento devia indicar que era o novo dono da casa. Ou ela simplesmente o confundia com outra pessoa. Ele equilibrou os pacotes em seus braços e abanou de volta. A velha senhora sorriu e retomou o cuidado das rosas da varanda.

Nigel seguiu seu rumo até a residência Bailey, que era a última antes da reserva. O telhado escurecido exigia limpeza e a tinta branca descascava das paredes – o homem esperava que uma pintura resolvesse esta parte, não tinha recursos para contratar um carpinteiro no momento; e sequer num futuro próximo. O jardim amplo não tinha flores ou árvores, e ele teria que encontrar uma forma de cortar a grama que circundava a casa de forma descontrolada. Arbustos baixos e densos aguardavam a poda, demarcando o terreno enorme e escapando pelas divisas para os lotes ao redor, que estavam vazios.

Ele listou mentalmente o que deveria checar antes do anoitecer; não queria ter surpresas ali sozinho durante a primeira noite na casa, no escuro, ao lado da floresta. Subiu pela entrada percebendo pequenas inscrições na madeira dos degraus e nas lascas do batente. Seu tio fora supersticioso, ele se lembrava disso.

Enquanto se empanturrava de sanduíches de presunto junto com Mafdet, o homem revisou a cozinha. Seria difícil contabilizar a gratidão que sentiu pela geladeira e pelo fogão funcionarem perfeitamente. Ao conferir também o gás, o telefone, as lâmpadas e tomadas, encontrou mais inscrições e velhos talismãs pelos cantos da residência. As teias de aranha que se acumularam em seus braços e seus cabelos o convenceram a aumentar a próxima lista de compras com utensílios de limpeza - a única coisa vagamente parecida que encontrara foi o que restava de uma vassoura velha e escabelada de cabo entalhado escorada na porta da pequena dispensa ao lado da entrada do porão.

Dito lugar estava escuro e frio, mas ao acionar o interruptor no topo da escada, o ambiente inteiro clareou-se e não pareceu assustador. Ele desceu devagar prestando atenção aos degraus velhos e barulhentos e estudou o local em busca da caixa de fusíveis e do aquecedor. À direita, no canto mais afastado, havia algo escondido sob uma lona escura e desgastada. O formato era quadrado, grande, e Nigel não hesitou em puxar o tecido para deparar-se, inesperadamente, com uma gigante estrutura gradeada.

As barras de ferro eram muito grossas e emergiam do cimento do chão, um cadeado pendia com a chave na fechadura e havia correntes com algemas presas ao interior da… jaula. Por que seu tio tinha uma jaula no porão? O jovem homem se afastou caminhando para trás, a realização de que caberia facilmente uma pessoa adulta ali, de pé, fizeram seu rosto empalidecer e suas mãos gelarem.

O homem chocou-se contra algo e soltou um grito. Antes de atender ao impulso de sair correndo escada acima, virou o pescoço para descobrir que apenas se afastara o suficiente da jaula para encontrar o aquecedor, do outro lado do porão. Ele exalou o ar e fechou os olhos, a mão esquerda sobre o peito. Respirou tentando se acalmar, viu Mafdet no topo da escada, seus pelos brancos estavam sujos e manchados, e lembrou que ainda precisava encontrar os fusíveis para depois tomar banho.

Uma hora antes do anoitecer, ele havia conferido tudo o que conseguira lembrar. Descobriu que a casa tinha um excesso de ferramentas de jardinagem e resquícios de uma estufa de plantas na garagem. A torneira da banheira não parava de pingar, e ele desistiu de tentar abrir um dos quartos que estava trancado no segundo andar - o primeiro depois da escada. Nenhuma das chaves que ele recebera junto com a brevíssima carta que atestava sua propriedade encaixava na fechadura.

Antes de dormir, Nigel deixou as luzes da sala acesas e apanhou a gata que descansava sobre o sofá. Mesmo com as janelas fechadas se ouvia o barulho das folhas ao vento e via-se através dos panos das cortinas os vultos escuros das copas das árvores cobrindo a lua na reserva.

Estava acostumado a ficar sozinho, mas não em um lugar tão grande.

O homem escolheu um dos livros da estante empoeirada, que tratava de símbolos mágicos e runas, e subiu as escadas. A visão dos aposentos fechados trouxe a lembrança dos tempos em que vivera na casa adotiva de seu parente onde tinha que ter muito cuidado para não acordar os demais e ser punido por sua inquietude durante a noite e o medo do escuro. Apagou a lâmpada do corredor, mas não a do quarto. Revisou pela memória se trancara todas as portas e finalmente acomodou-se na cama.

Suspirou e afagou a gata, desejando ter bons sonhos.

Se o sono viesse.

-x-

"Pouca gente aparece à noite. De vez em quando algum viajante." Mark, o rapaz que trabalhava no mercado de Marta, terminava de mostrar o local a Nigel. Já eram quase dez horas da noite, e dali a alguns minutos Bailey ficaria responsável pela loja sozinho. "A polícia passa pela avenida duas vezes durante a ronda. E a campainha toca quando alguém entra na loja. Vai ter bastante tempo pra organizar aqui atrás." Os dois passaram pelo acesso ao lado do balcão, que levava ao depósito nos fundos do mercado.

Nigel olhou ao redor, não vendo nada muito diferente dos trabalhos que tivera antes. "Não é muito grande, mas durante o dia não dá tempo de organizar esta parte, acaba sempre ficando pro funcionário da noite." O rapaz mostrou uma enorme porta blindada na parede adjacente. "Ali é a câmara fria. Aquela caixa ao lado serve pra segurar a porta aberta quando você precisar entrar."

Mark abriu o compartimento. Havia prateleiras nas três paredes recheadas de caixas. O ar gelado escapou serpenteando pelo chão, e algo ali arrepiou Nigel. Algo sinistro, algo além do frio. "Tome cuidado, a tranca não está abrindo por dentro," o rapaz avisou. Bailey assentiu rapidamente e afastou-se.

Explicados, o local e o restante dos procedimentos, o funcionário embarcava na bicicleta ao lado da entrada da loja. "Obrigado por me mostrar tudo." Nigel terminou de amarrar o avental com o nome Nelson's bordado no peito.

"Não foi nada. Tô feliz por voltar ao turno da tarde." Mark ia começar a pedalar, mas virou-se para o mais velho. "Só… não saia da loja." Nigel parou de sorrir. "Fique lá dentro até o sol sair." E olhou na direção do paredão de árvores do outro lado da avenida.

Bailey seguiu o olhar para a escuridão do início da floresta da reserva. As árvores eram altas e cheias, apenas as copas brilhavam iluminadas pelo que sobrava da lua minguante. Ele não quis imaginar como seria o breu das próximas noites sem lua naquele lado da estrada.

Mark pedalou e sumiu rapidamente pela noite. O novo funcionário voltou-se para a loja, tentou se reassegurar com as luzes fortes que escapavam das vitrines. Entrou ouvindo o barulho alto do sino no topo da porta e olhou ao redor. O mercado parecia inóspito com ele ali sozinho. Talvez da próxima vez pudesse trazer Mafdet.

-x-

"Do que adiantou tolerar isso até hoje? Ela nem pode sair da cidade." A voz de Gerard alcançou os ouvidos de Sydney assim que ela desceu do carro. Os veículos estavam estacionados no escuro além do acostamento da estrada, próximos da divisa arborizada de Beacon Hills e escondidos da visão de quem passasse pela avenida. Todos os caçadores já estavam nos limites do território prontos para a segunda noite seguida de patrulha.

Fox se aproximou e a conversa não continuou, mas o jovem Argent sabia que ela o havia escutado. Lis separou os grupos e Sydney ficou com os Newell, como sempre. Os demais seguiram mata adentro, e todos se apressaram em assumirem as posições pela extensão da reserva onde o beta dos Hale se aventurara da última vez.

Perda de tempo. Procurar um dos Hale não resultaria em nada e ela sentia que Gerard estava disposto a cometer uma loucura quando descobrisse isso. Lonell conseguira acabar com a fonte e o chamarisco dos horrores que era o Nematon e agora se completava um ano que os seres sobrenaturais já não eram atraídos à cidade. Mas os eventuais problemas ainda aconteciam. Se os Argent abandonassem o local e mexessem com outros bandos, não restaria ninguém para proteger Beacon Hills se um ataque começasse.

Ela sabia que não haveria ninguém, pois os Argent exigiriam dela o cumprimento do código antes de irem. A busca por Tate e os outros culpados era o motivo de ela ter continuado. Estava ali por mera tolerância, como Gerard dissera, por ser útil e pelo fato de ter sido mordida ainda criança. Se não pudesse mais ajudar na caçada, seguiria o código, e quando seguisse, quem assumiria o território?

A resposta não mudara nos últimos dezesseis anos. "Siga o código," era o que sua mãe lhe dizia. Só poderia aguentar firme e ver até onde chegaria. "Siga a correnteza," seu pai reiterava.

Sydney respirou profundamente. Observou o trecho de floresta pelo qual ela e os Newell seriam responsáveis aquela noite e confirmou, sem qualquer surpresa, que nada diferente acontecia ali… exceto aquele rastro fraco provindo de longe. Ela deu meia-volta e seguiu silenciosa por entre as árvores.

-x-

O sino tocou pela primeira vez quando Nigel estava agachado reabastecendo uma das prateleiras de comida enlatada no canto do mercado. Ele conferiu no velho relógio de pulso que passava da meia-noite. Ficou de pé e fez a volta nas estantes para seguir até o balcão. Viu uma mulher de cabelos longos e escuros se aproximar do balcão refrigerado com as bebidas.

Ela vestia roupas escuras e botas, apanhou uma das garrafas e olhou para Nigel. Seu rosto era bonito, com olhos castanhos. Acenou simpaticamente com a cabeça. "Boa noite."

Bailey fez o mesmo e caminhou para o balcão. Os dois encontraram-se no caixa, e ela inspirou profundamente com ar pensativo enquanto Nigel registrava o preço. "Está morando na casa do velho Bailey?"

As notícias corriam muito rápido naquela cidade. Ninguém o conhecia de onde ele viera, e, ali, Nigel só precisara se identificar uma vez no hospital quando chegara e agora todos já sabiam quem ele era. "Sim. Era meu tio. Sou Nigel Bailey."

"Sinto muito pelas circunstâncias, mas bem vindo à cidade. Sou Sydney Fox." Ela ofereceu um aperto de mão. "Moro junto com os Newell, perto do centro. Nós conhecíamos o seu tio, quando puder, apareça por lá, Christine vai gostar de te ver."

Ele aceitou o convite, genuinamente agradecido. Há muito tempo sua única companhia era Mafdet. Na cidade maior, que deixara, nunca lhe sobrara tempo para manter amizades. As mudanças constantes de emprego, de moradia, as recaídas não permitiam a ele aproveitar coisas simples como essa proposta de encontro com pessoas que conheciam sua família. Gostava da casa, não tivera pesadelos na noite passada, tinha um emprego e, possivelmente, uma vida social. Ter vindo para Beacon Hills fora bom. Deveria ter deixado ainda mais flores para seu tio e sua família na visita que fizera ao cemitério durante a manhã. Deveria ter feito mais esforço para vir antes, deveria ter procurado o tio mesmo que o homem não o tenha feito quando mais precisara dele.

Percebeu que estava se distraindo do trabalho e apressou-se em receber o valor da bebida, quase deixando cair o troco.

Sydney sorriu e foi para a porta. Ao abri-la, virou-se para ele. "Não sei se já viu os jornais, mas a reserva é perigosa. Não saia à noite," avisou. Fez um leve aceno e saiu.

Ele juntou as sobrancelhas. Ela estava sozinha na rua àquela hora. Quem sai para comprar refresco à meia-noite ao lado de uma floresta?

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O território a ser patrulhado era grande. Os Argent estavam próximos, e os demais caçadores espalhados a uma distância segura para terem reforço se avistassem algo, Sydney conseguiria identificar cada um deles em meio às árvores se precisasse. "Lá está ela! Eu disse que ela não abandonaria a patrulha sem nos avisar," Christine falou para Alistar adiante, entre os arbustos. "Onde você estava, menina?"

"Farejei algo diferente no mercado e fui conferir. O sobrinho de Lonell está trabalhando lá. Parece que ele vai continuar na casa."

Christine cobriu a boca com uma das mãos. "Lonell não o queria aqui. Não depois do que aconteceu."

"Eu disse que você gostaria de vê-lo. Talvez o convença a vender o sobrado e ir embora. Mas não sei, ele ficou animado quando eu mencionei a visita. Ele cheira a solidão." E também a canela e a sabonete barato.

"Ele não sabe que o pai era um beta, ou que o tio era um emissário. Já deve estar um adulto. Como ele é?"

Sydney deu de ombros. "Normal. Parece cansado. Vive sozinho com um gato." E ela já disse que ele cheira a solidão? Fora de cortar o coração a expressão que ele fizera quando ela mencionara o tio.

"Vamos fazer uma visita a ele amanhã antes da patrulha… Alistair, pare de comer, os sanduíches ainda têm que durar pelo resto da noite!"

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Nigel definitivamente não gostava daquela parte do depósito. Apanhou a caixa de resfriados o mais rápido possível e saiu da câmara quase correndo. Atravessou a porta que levava à loja e deparou-se com clientes. Era estranho não ter ouvido o sino tocar. Dois homens, um perambulando entre as prateleiras e o outro diante do balcão, e uma mulher perto da porta pareciam entediados.

Bailey largou a caixa e conferiu o preço da barra de chocolate que estava ao lado da registradora. Movimentos chamaram sua atenção para a rua, e ele reparou pela vidraça que mais dois homens estavam do lado de fora usando as bombas de combustível.

"Onde está Robert?"

Nigel voltou os olhos para o sujeito diante do balcão. "Desculpe, comecei a trabalhar aqui hoje."

O sujeito olhou ao redor e fez sinal com a cabeça para o outro homem, que abandonou as prateleiras e enfiou-se no depósito. Nigel abriu a boca para falar, mas foi puxado pela gola da camisa por sobre o balcão, ficando cara a cara com o cliente. O homem tinha dentes que pareciam presas. "Este lugar fede a caçadores, e você também. Pra onde levaram Robert?"

"Eu- eu não sei! Não sei do que está falando!"

O homem, que fizera aquilo apenas com um dos braços, esticou o outro e segurou com ainda mais força. "Se não sabe, vai servir de exemplo." Arrastou o homem menor por cima do balcão com facilidade incrível e lançou-o contra uma das estantes.

O móvel cedeu com o peso do atendente, que desmoronou junto com as mercadorias, latas e caixas espalhando-se. Ele tentou levantar, mas não conseguiu, pois foi puxado novamente pelo brutamontes até ficarem da mesma altura e seus pés não tocarem o chão. A gola começou a rasgar. "Seus amigos caçadores terão dificuldades pra te identificar", o sujeito disse, e arremessou Nigel contra o balcão refrigerado de bebidas.

Dessa vez Bailey ficou desnorteado. Levou vários segundos para buscar o fôlego, ajoelhar-se e equilibrar seu peso sobre as pernas. Não parou para acessar a dor ou o estrago que o vidro lhe causara, apenas ficou de pé e correu.

Ele não sabia se duraria, ou se teria qualquer chance, mas atravessou a porta, passou pelos dois homens que abasteciam o veículo cinza e seguiu para a estrada, sem parar.

Correu em direção ao centro da cidade. Perto do mercado havia apenas lojas, todas fechadas naquele horário, então ele teria que seguir por mais algumas centenas de metros até a área residencial, onde ficava a casa de seu tio. Pediria ajuda a algum dos moradores. Se tivesse sorte, os homens do posto não o seguiriam de carro.

Nigel avistou faróis vindos da direção oposta e agitou os braços. "So-Socorro!"Um estrondo absurdo, como um rosnado ou um rugido, reverberou atrás dele arrepiando-lhe por completo, fazendo-o quase perder o passo. E o choque que recebeu na lateral de seu torso foi tão forte que o carregou na direção das árvores.

Com o impacto, sentiu garras e braços ao seu redor, mas não era possível. Eles o seguiram de carro e foi o barulho do motor que ele ouviu? Foi atropelado? Mas por que pareceram rugidos?

Bailey rolou pelo declive até alcançar as árvores, sem ar. Lampejos inconsistentes de momentos do acidente que sofrera com os pais numa noite assim invadiram sua mente. O barulho de pneus freando, vidros quebrados, sangue, gritos, rugidos, monstros. Tudo se misturava, exatamente como em seus pesadelos. Figuras medonhas de olhos brilhantes tomavam forma das sombras e mutilavam sua família.

Ele se debateu e percebeu que estava ali no chão da mata sem saber quanto tempo levara até recobrar a consciência, ou se ficara, de fato, inconsciente em algum momento. As folhas secas fizeram barulho sob suas costas, suas mãos. Elas fizeram barulho adiante. Nigel fixou o olhar naquela direção. Vultos distorcidos o cercavam e ele se encolheu até perceber que eram as sombras dos troncos das árvores. Tentou controlar a respiração, entender para onde ficava a estrada, mas o ruído aconteceu de novo e uma das sombras estava mais perto. Nigel piscou várias vezes, tentando limpar a vista, não confiando no que via, mas estava ali: um par de olhos vermelhos reluzia na sua direção.

A cor era selvagem, voraz; e diferente de qualquer coisa deste mundo. Eram olhos que ele conhecia. Os olhos de seus pesadelos. Mas ele estava acordado.

Ele ficou paralisado pelo pânico, e a criatura chegou ainda mais perto. Não era um ser humano, como indicava a silhueta, não podia ser, não com aqueles olhos. Não com a fisionomia que Nigel enxergou, iluminada brevemente pela luz fraca da lua que penetrou a copa das árvores naquele momento.

Nenhum grito lhe escapou da garganta quando novamente o estrondo de um rugido balançou a floresta, ainda mais alto, provindo do ser à sua frente. Bailey colou as costas no tronco mais próximo, procurando um abrigo inexistente. Uma mão agarrou seu braço esquerdo, e ele gemeu ao ser arrancado do chão com violência, sentindo algo errado no ombro com o aperto doloroso.

Deu de cara com outro ser igualmente assustador, de olhos azuis brilhantes, que o segurava. Aquilo rosnou, e o homem percebeu que outros além do que tinha olhos vermelhos estavam ali na mata ao seu redor. As garras passaram para seu pescoço, cortando-lhe quase totalmente a respiração, as pontas afiadas rompendo-lhe a pele. Ele se retorceu com o que restava de forças. A criatura chocou-o uma vez contra o enorme tronco da árvore e sua visão voltou a borrar. Ao fundo, ele teve a impressão que uma delas parecia um homem, mas como confiar em seus olhos? Risadas ressoaram, a garganta não foi libertada e, sem fôlego, foi fácil a Nigel perder o foco. Sua mente confusa e desconexa soube que estava diante do fim.

Ele desejou que alguém encontrasse Mafdet na casa e cuidasse bem dela. A gata era surda, então não adiantava chamar seu nome, e ela adorava passear, então a pessoa teria que ter paciência e não perdê-la de vista…

- continua