CAPITULO I

O trato.

— Eu jamais poderia fingir que sou você... —A voz trêmula de Lily morreu-lhe na garganta, sua incredulidade evidente.

— Por que não? — indagou Lilian com impaciência. — A Espanha fica distante, e Alvo Dumbledore nunca me conheceu pessoalmente. Ele nem sequer sabe que eu tenho uma irmã, quanto mais que somos gêmeas idênticas!

— Mas por que você não pode simplesmente lhe escrever de volta e explicar que não tem disponibilidade para uma visita no momento? — argumentou Lily, inquieta, esforçando-se para entender por que a irmã teria sugerido farsa tão absurda em resposta a um simples convite.

— Eu gostaria que fosse tão simples!

— Você vai se casar daqui a um mês — lembrou-a Lily num tom brando. — A meu ver, isso torna uma recusa educada bastante simples.

— Você não entende. Não foi nem sequer Dumbledore que me escreveu. Foi um certo vizinho dele, um maldito intrometido chamado Potter! —Lilian torceu as mãos bem-cuidadas num gesto tenso. — O homem está exigindo que eu vá até lá e fique por algum tempo...

— E que direito ele tem de exigir alguma coisa?

Lilian lançou à irmã um olhar quase assustado.

— Ele acha que, como nora de Dumbledore, sua única parenta viva... bem, que eu devo uma visita ao velho.

— Por quê? — Em outras circunstâncias, Lily teria en¬tendido a exigência, mas parecia algo um tanto excessivo levando-se em conta o primeiro e breve casamento de sua irmã cinco anos antes.

Enquanto trabalhara em Los Angeles, Lilian tivera um tór¬rido romance com o filho de um rico fazendeiro espanhol. Entretanto, ela ficara viúva apenas dias depois de ter-se casado. Apesar de jovem e aparentemente saudável, Ryan Dumbledore mor¬rera de um súbito ataque do coração. Na época, a Espanha estivera sofrendo graves enchentes. O país inteiro estivera num grande caos, com o sistema de comunicações seriamente afetado. Com o pouco que soubera sobre as origens do falecido marido, Lilian achara impossível entrar em contato com o pai de Ryan a tempo para o funeral. Daquele modo, fora realizado sem a presença do pai dele e, em seguida, ela voltara diretamente para Londres.

— Você nunca mencionou que ainda mantém contato com o pai de Ryan — comentou Lily, nos olhos verdes um brilho caloroso de aprovação.

Lilian corou visivelmente.

— Eu achei que manter contato era o mínimo que eu podia fazer, e agora que Dumbledore está doente...

— Ele está doente? — interrompeu-a Lily, mortificada. — É algo grave?

— Sim. Desse modo, como posso responder a carta dizendo que não visitarei um homem moribundo porque vou me casar outra vez?

Lily contraiu o rosto. Teria sido uma resposta das mais insensíveis, sem dúvida. Na verdade, do ponto de vista de Dumbledore, aquilo só serviria como uma cruel e horrível lembrança da morte prematura do único filho.

— Aquele homem, o vizinho dele, chegou a me enviar pas¬sagens de avião! Mas, mesmo que eu não estivesse prestes a me casar com Roger, não iria querer ir. — confessou Lilian numa súbita onda de ressentimento. — Odeio pessoas doentes! Não suporto estar perto delas. Eu seria totalmente inútil ten¬tando demonstrar simpatia e todo esse tipo de coisa!

Baixando o olhar, Lily conteve um suspiro, lamentando por saber que a irmã dizia a verdade. Quando a mãe de ambas ficara inválida, Lilian não se envolvera pessoalmente. Por outro lado, a ajuda financeira da irmã amenizara os problemas mais práticos daqueles longos e difíceis meses, quando a própria Lily fora obrigada a deixar seu emprego para cuidar da mãe. Lilian comprara-lhes um pequeno apartamento próximo ao hos¬pital onde a mãe de ambas estivera recebendo tratamento. No momento, o apartamento estava à venda. Lily fazia questão de pagar a irmã de volta depois de seu gesto tão generoso.

— Mas você poderia lidar facilmente com Dumbledore — argu¬mentou Lilian, sua ansiedade em persuadir a irmã gêmea a tomar seu lugar evidente. — Você foi absolutamente maravi¬lhosa com mamãe.

— Mas não seria certo enganar Alvo Dumbledore dessa maneira. Acho que você deveria conversar sobre isto com Roger...

— Roger? — Lilian gelou diante daquela menção ao homem que adorava e com quem logo iria se casar. — Ele é justamente a última pessoa que eu quero que saiba sobre isto! — Atravessando a sala, pegou as mãos da irmã, um ar de súplica em seus olhos. — Se ele soubesse quanto devo a Dumbledore, provavelmente acharia que teríamos que cancelar o casamento para que eu pudesse ir até lá e... e eu não suportaria isso!

Lily fitou-a em completa perplexidade.

— O que você deve a Alvo Dumbledore?

— Ao longo dos anos, ele tem... bem, tem me enviado muito dinheiro — admitiu Lilian, constrangida.

Lucy franziu o cenho, pois a irmã vivia com bastante conforto e nunca, que tivesse sido de seu conhecimento, ficara sem di¬nheiro nos anos mais recentes.

— E por que o pai de Ryan enviaria dinheiro a você?

— Bem, e por que não? — retrucou Lilian num tom quase agressivo. — É rico e não tem ninguém com quem gastar. Não fiquei com nada quando Ryan morreu!

Lily corou diante do óbvio aborrecimento da irmã com o fato.

Lilian deixou os ombros caírem, então, e soltou um longo suspiro.

— Ainda assim, apesar de todos os convites de Dumbledore, nunca fui visitá-lo. Quando ele tentou marcar uma data para vir até Londres para me ver, há uns dois anos, arranjei desculpas.

Lily estava chocada com tal confissão.

— Céus, mas por quê?

A irmã fez uma careta e estremeceu.

— Nunca fui a melhor pessoa do mundo, como você é! — disse, irritada, afastando furiosamente as lágrimas em seus olhos. — Por que eu iria até uma fazenda no meio do nada para visitar um velho? E por que eu iria querer o inconveniente de servir-lhe de cicerone aqui em Londres? Eu sempre tive algo melhor a fazer, mas realmente pretendi vê-lo algum dia... O problema é que agora seria um péssimo momento para isso!

— Sim. — Lily podia ver aquilo e não se perguntava mais por que a consciência da irmã a atormentava tanto.

— Roger não sabe nada a respeito de Dumbledore, e eu não gostaria que ele soubesse sobre o dinheiro. Não pensaria muito bem a meu respeito por só ter recebido e nunca dado nada em troca — confidenciou Lilian a contragosto, os olhos tornando a ficar cheios de lágrimas. — Há uma porção de coisas que Roger não sabe sobre meu passado. Mas deixei tudo para trás. Eu mudei. Recomecei minha vida quando voltei a entrar em contato com você e mamãe no ano passado, e não peguei um níquel sequer de Dumbledore desde então...

— Está tudo bem — sussurrou Lily, seus próprios olhos ficando marejados diante do desespero de sua irmã e de sua atípica franqueza.

— Ficará tudo bem se você for até a Espanha para mim. Sei que estou pedindo muito, especialmente levando em conta que não tenho sido assim tão sincera em relação a certas coisas. Mas realmente preciso de sua ajuda nisto. E se puder me fazer este único favor, juro que serei sua melhor amiga para sempre!

— Ouça, eu... — Envolta num abraço apertado de gratidão, Lily sentiu-se tocada, pois a irmã raramente demonstrava sua afeição.

Separadas aos sete anos de idade pelos pais, durante o di¬vórcio de ambos, as gêmeas haviam passado os quinze anos seguintes sem conviverem uma com a outra. Apenas recente¬mente Lily tivera a chance de reencontrar a irmã. E até agora, Lilian escondera-se atrás de uma reserva que destoava da na¬tureza mais emotiva de Lily. Os estilos de vida e interesses de ambas eram tão diferentes que fora um desafio encontrar algo em comum para começarem a superar o abismo que se formara durante aqueles anos de separação.

Mas agora, pela primeira vez desde que haviam sido crianças, Lilian abrira seu coração para Lily outra vez e pedira-lhe sua ajuda. A idéia de que a irmã infinitamente mais sofisticada e bem-sucedida precisava dela a deixava pasma, mas orgulhosa também. Antes a gêmea mais tranquila e dependente, Lily ficara arrasada quando a irmã mais impetuosa e dinâmica desaparecera de sua vida. Jamais superara em seu íntimo a dor da perda e da solidão, e o apelo de Lilian para que a ajudasse, o fato de estar precisando dela, tocava-a a fundo. Afastando incertezas mais práticas pairando num canto de sua mente, Lily sorriu, determinada a oferecer toda a ajuda a seu alcance.

Lilian recuou um pouco e estudou-a com o olho crítico de uma mulher que já trabalhara como consultora de moda e maquiadora e que se importava muito com a própria aparência.Ironicamente, poucas gêmeas idênticas poderiam ter pare¬cido mais diferentes uma da outra. Lily nunca usava maquiagem e mantinha os rebeldes cabelos cacheados presos. A saia de lã ia até os tornozelos, a camisa xadrez era prática e os sapatos baixos e confortáveis.

— Enviei uma foto minha a Dumbledor no ano passado e estava muito bem-vestida. Vou ter 

um bocado de trabalho para transformar você em mim — confessou Lilian com um sorriso irônico.
Lily apenas ficou sentada ali, ligeiramente atordoada, incerta de repente por ter concordado com algo tão absurdo quanto se passar pela irmã. Agora que eram adultas, simplesmente não podia se imaginar sendo como a irmã. Lilian tinha a aparência perfeita de uma modelo e, confiante, revelava mais do que escondia de seu corpo esguio e bem-feito. Os cabelosruivos, que havia alisado e clareado em dois tons, caíam-lhe feito um véu de seda pura pelas costas, impecáveis. Não havia um único centímetro em Lilian que não fosse perfeito, admitiu Lily, curvando as unhas roídas até o centro da palma da mão e endireitando os ombros.

Do lado de fora do bar, que não passava de um casebre com teto de zinco, um homem baixo, de chapéu e poncho, amarrou seu cavalo a uma estaca e entrou no recinto abafadiço. Reuniu-se aos camponeses e vaqueiros que estavam junto ao balcão e, numa questão de segundos, estava olhando boquiaberto para Lily com o restante deles. Num sofisticado tailleur rosa-claro, terrivelmente amarrotado, equilibrando-se nos sapatos de saltos altos, era uma visão raramente observada na remota região espanhola.

O calor e a umidade eram opressivos. Pressionando um lenço de papel de encontro à fronte para conter a camada de transpiração, Lily estudava a velha mesa à sua frente em silenciosa desolação. Lilian insistira que ela teria que se vestir com impecável elegância para impressionar a todos durante sua estada no país. Mas sentia-se terrivelmente desconfortável em sua bela rou¬pa emprestada. Além do mais, os malditos sapatos apertavam seus pés, como se fossem um instrumento de tortura. Usava os cabelos soltos agora, porém recusara-se a clareá-los ainda mais ou alisá-los, os cachos rebeldes relativamente domados.

No dia anterior, chegara de avião à Espanha e fizera uma conexão num vôo doméstico até Flores, onde pas¬sara a noite num pequeno hotel. Esperara ser levada de lá até a fazenda Dumbledore, mas, em vez daquilo, recebera a mensagem de que iriam buscá-la no vilarejo de Santa Angelica. Tão logo o táxi corroído pela ferrugem deixara a cidade de Flores, a paisagem ficara cada vez mais árida e a estrada se transfor¬mara rapidamente numa trilha de terra incrustada de raízes. A jornada incrivelmente longa em meio a uma nuvem constante de poeira levara-a, enfim, a um agrupamento de casebres, quase todos abandonados, no meio de uma vasta clareira sombreada pelo que se parecia bastante com um vulcão. De acordo com o guia que comprara no aeroporto, provavelmente era... Agora, Lily estava exausta e ansiava por um banho. Sem mencionar o temor que ia aumentando a cada minuto.

E se Dumbledore percebesse que não era Lilian? E se, inadvertidamente, ela dissesse ou fizesse algo que acabasse expondo a farsa de ambas? Seria simplesmente imperdoável se a encenação fosse descoberta. Um homem velho e doente por certo não precisava de mais aborrecimentos. Mas qual teria sido a alternativa?, perguntou-se, pesarosa. Lilian não teria ido à Espanha, e a idéia de Alvo Dumbledore morrendo sem um único parente para confortá-lo enchia seu coração de compaixão.

Percebendo que o grupo barulhento de camponeses junto ao balcão ficara em silêncio de repente, ela ergueu os olhos. Um homem bastante alto, que parecia ter saído direto de um western de produção italiana, no papel do frio assassino, estava parado agora na entrada do bar, os pés em botas de esporas um tanto separados. Intimidada por um olhar faiscante lançado de debaixo da aba do chapéu preto que sombreava os traços do rosto dele, Lily engoliu em seco e desviou os olhos.
O dono do bar não demorou a servir uma bebida gelada ao recém-chegado. Um murmúrio baixo de cumprimentos respeitosos rompeu o silêncio. O homem esvaziou o copo de um só gole e pousou-o no balcão. Adiantou-se, então, com perturba¬dora elegância felina até o canto mais afastado onde Lily es¬tava sentada.

— Lilian Dumbledore? — disse num tom inquiridor.

Lily fixou o olhar no cinto de couro com incrustações prateadas que lhe contornava os quadris estreitos. Então, não gostando do jeito ameaçador com que ele se aproximava em sua direção, empurrou sua cadeira para trás e levantou-se de¬pressa. Nem mesmo os saltos altos ajudaram muito, levando em conta o seu metro e sessenta e cinco de altura. Ele, por sua vez, devia ter quase um metro e noventa, sua figura imponente. Perguntando-se se precisaria recorrer a seu livro de frases em espanhol para tentar se comunicar, ela observou-lhe o maxilar de ar agressivo e tornou a engolir em seco.

— Veio me buscar? — arriscou em seu próprio idioma. — Eu não ouvi um carro chegando.

— Isso deve ser porque eu cheguei a cavalo.

Por um instante, a maneira correta como o homem falou o idioma dela, apesar do sotaque, pegou-a de surpresa e, então, um riso nervoso escapou-lhe dos lábios. Ele só podia estar brincando. Não se aparecia a cavalo para se buscar uma pessoa com bagagem. Jogando a cabeleira ruiva para trás e lutando contra sua natural timidez com todas as forças, disse num tom de desculpas:

— Poderia me mostrar alguma identificação, por favor?

— Lamento não ter nenhuma a lhe oferecer. Sou James Potter e não estou acostumado a que duvidem disso.

Lily esforçou-se para sustentar o olhar do homem arrogante, que a observava como se tivesse acabado de insultá-lo.

— Bem, senõr... Potter, eu não estou acostumada a sair na companhia de homens estranhos e...

— Es verdad? Você conheceu Ryan num bar em Londres e dormiu com ele na mesma noite. Saber disso não me leva a acreditar que você seja uma mulher particularmente cautelosa — declarou ele com um nítido tom de menosprezo na voz possante.

Lily gelou no lugar, o olhar fixo naqueles lábios cheios e bem-desenhados, de ar tão másculo. Estava chocada. Não podia crer que o homem tivesse feito comentário tão ofensivo. O rubor espalhou-se imediatamente por suas faces.

— Como ousa? — retrucou num sussurro, os lábios trêmulos de indignação. — Isso é uma completa mentira!

— Ryan e eu crescemos juntos. Está perdendo seu tempo bancando a santa para tentar me convencer. Guarde seu char¬me para Dumbledore. Você vem comigo... ou vai ficar aqui?

— Não vou a lugar algum com você! Podem mandar outra pessoa qualquer da fazenda para vir me buscar — informou-os, por entre os dentes.

— Não há mais ninguém lá, señora. — E com aquela resposta ríspida, James Potter simplesmente girou nos calcanhares e deixou o bar com o mesmo ar confiante com que entrara.

Mal tendo se recobrado do choque por ter sido tratada com tanta rudeza e com total falta de respeito, Lily lançou um olhar aos homens junto ao balcão, que, agora, conversavam entre si. Mortificada com a suspeita de que um deles poderia saber o bastante de seu idioma para ter entendido os indelicados comentários que o outro homem fizera, apanhou a pesada mala, as faces afogueadas, e retirou-se do bar.

James Potter estava à sua espera.

— Você é o homem mais rude e detestável que já conheci! Por favor, não torne a falar comigo, a menos que seja absolu¬tamente necessário.

— Você não poderá levar essa mala. — Inesperadamente, ele tirou-lhe a mala e colocou-a no chão, onde a abriu.

— O que pensa que está fazendo?

— Será uma longa cavalgada e não quero perder tempo. Você não precisará de todas essas roupas pomposas na fazenda. Separe os itens que foram mais necessários e eu os colocarei nos alforjes. O dono do bar guardará sua mala até que você volte.

— Uma longa cavalgada... — repetiu Lily, mortificada. — Está realmente esperando que eu... monte num cavalo?

— Dumbledore vendeu sua caminhonete.

— Mas... um c-cavalo?

— Dentro de poucas horas estará escurecendo. Sugiro que você vá até detrás do bar e troque essa roupa por outra mais prática para a jornada.

Dumbledore vendera a caminhonete?, pensou Lily, sem entender a razão daquilo, já que se tratava de um homem rico. Sem mencionar que qualquer grande fazenda precisaria ao menos de um veículo, Mas o que entendia de fazendas, afinal?, perguntou-se, admitindo a si mesma seu completo desconhecimento sobre o assunto. Obviamente, James Potter não pos¬suía nenhum veículo motorizado tampouco, e vira por si mesma como eram precárias e escassas as estradas em Petén.
Soltou um suspiro trêmulo. Nunca estivera em cima de um cavalo em toda sua vida.

— Não sei montar...

Potter deu de ombros com um ar de impaciência. Afastou a aba do chapéu para trás, enquanto a observava sem o menor traço de compaixão, o sol iluminando-lhe o rosto bronzeado pela primeira vez.

Lily descobriu-se com a respiração em suspenso. O homem era tão extraordinariamente bonito que não conseguiu parar de encará-lo, uma espécie de fascínio dominando-a.

Os olhos dele eram de um intenso tom do verde, delineados por cílios espessos de ébano, e totalmente inesperados naquele rosto bronzeado. As maçãs do rosto eram salientes, de ar altivo; o nariz reto, arrogante. Sobrancelhas espessas e negras en¬cimavam os olhos brilhantes, o conjunto de traços marcantes realçado por lábios cheios com ar de pecado. Era tão bonito que ela teve a impressão de estar hipnotizada enquanto o observava.

Ambos se entreolharam. Lily sentiu um arrepio subindo-lhe pela espinha, o coração disparando. Ele, então, desviou o olhar, e um súbito constrangimento tomou-a quando se deu conta de como estivera se comportando. Deveria estar escolhendo al¬gumas peças de roupa da mala, não encarando-o como se fosse uma adolescente embevecida. Mortificada por sua reação atípica, agachou-se ao lado da mala e esforçou-se para se concentrar.

— Não sei montar — tornou a dizer.

— A égua é dócil.

Lily percebeu que suas mãos tremiam enquanto remexia todas as roupas de grife que a irmã lhe emprestara. Corava a cada vez que pegava uma peça de lingerie. e voltava a escondê-la, sabendo que ele a observava. Parecia um astro de cinema, porém tinha as maneiras de um rufião. Mas, provavelmente, era o único modo como sabia se comportar, tendo nascido e sido criado naquela região remota, cercado de gado e mato, disse a si mesma. Tirou da mala uma calça azul-clara e uma blusa de seda branca, não exatamente práticas, mas o que Lilian tivera de mais informal para incluir. Ao menos o mocassim de couro que encontrou seria um bem-vindo alívio para seus pés.

— Não posso me trocar sem ter privacidade — anunciou num tom seco.

— Você não é inibida... por que fingir? Dois meses depois da morte de Ryan você já estava mostrando tudo o que tinha no pôster central de uma revista masculina!

Lily fechou os olhos, horrorizada. Sabia tão pouco sobre a vida da irmã gêmea durante aqueles anos em que haviam estado separadas... E aquele homem odioso parecia ter grande satisfação em fazer alegações ofensivas. Como sabia tanto sobre Lilian? Sua irmã teria conhecido Ryan num bar e dormido com ele na mesma noite? Lily estremeceu por dentro, sabendo que era uma puritana, mas incapaz de conter a vergonha que sentia pela irmã. Teria Lilian posado nua para uma revista antes de ter resolvido fazer o curso de maquiadora profissional?

Mas, de qualquer modo, despir-se diante das lentes de uma máquina fotográfica não era mais uma escolha tão chocante quanto costumara ser no passado, lembrou a si mesma, tentando se tranquilizar. Atrizes famosas faziam aquilo agora, desinibidas e orgulhosas de seus belos corpos. Como aquele vaqueiro rude ousava difamar sua irmã?

— Acho que lhe pedi para me dirigir a palavra apenas quando for indispensável — declarou num tom glacial.
Atrás do bar, trocou-se rapidamente e, quando voltou, James Potter submeteu-a ao tipo de olhar masculino que ela não estava acostumada. Mas Lilian gostava de atrair a atenção dos homens e se vestia de acordo. Portanto, a calça azul era justa, acentuando as curvas dos quadris e coxas, e a blusa branca era um tanto transparente e decotada. Sem ter a confiança da irmã, no entanto, ela corou instantaneamente diante daquele olhar insolente.

De repente, não conseguia pensar com clareza, o ar parecia quase lhe faltar, o coração disparando no peito. Baixou o olhar, então, e, grata por aquela distração bem-vinda, franziu o cenho para o lugar onde havia deixado sua mala antes.

— Onde está minha mala? — murmurou.

Sem o menor aviso, James deu um passo a frente e cobriu-a com um poncho de lã áspera.

— O que está fazendo? — gritou, contrariada. Ignorando-lhe a reação, ele colocou-lhe um chapéu de palha na cabeça.

— Respeite o sol, ou acabará com queimaduras na pele.

— Onde está minha mala? — repetiu ela com exasperação.

— Já a deixei aos cuidados do dono do bar, depois de ter colocado algumas peças para você nos alforjes. Não temos mais tempo a desperdiçar.

— Você mexeu nas minhas coisas pessoais? — Lily quase tremia de indignação agora.

— Vamos — disse ele, impaciente. Indicando a égua amar¬rada a uma árvore, instruiu: — Segure as rédeas de Chica, apoie o pé esquerdo no estribo e, depois, impulsione o corpo e suba até a sela.

Cerrando os dentes, Lily colocou o pé no estribo, movida por pura determinação, mas, quando tentou erguer a outra perna, a égua mudou de posição e ela acabou perdendo o equi¬líbrio, caindo de costas.
Uma mão forte pegou a sua e colocou-a de pé com espantosa facilidade.

— Gostaria de ajuda, señora?

A expressão sardônica nos olhos de James não passou despercebida a Lily, o que a deixou mais furiosa.

— Eu teria conseguido se a égua não tivesse se mexido! E montarei sem sua ajuda, nem que seja a última coisa que eu faça!

— Como quiser... mas eu não gostaria de vê-la machucada.

Tornando a segurar a rédea, ela sentiu-se tomada por tanta raiva agora que poderia ter impulsionado o corpo o bastante para subir no topo de uma colina. Segundos depois, viu-se no alto da sela e ergueu o queixo, triunfante.

— Atarei uma correia longa na égua para guiá-la. Você não estará em perigo algum — informou-a James num tom frio.

Lily limitou-se a menear a cabeça de leve, seu nervosismo voltando quando a égua se mexeu ligeiramente. Com o corpo tenso, segurou-se com força à sela, enquanto o observava atan¬do a outra ponta da correia ao imenso garanhão negro que resfolegava poucos metros além.

— Espero que consiga controlar esse monstro... que ele não saia desgovernado com você na sela...

— Nunca um cavalo fugiu ao meu controle, señora — as¬segurou-lhe James Potter com aquela exasperante ex¬pressão de arrogância no rosto.

Mas por que estava sendo tão hostil e rude? Afinal, ela estava ali para visitar Dumbledore, como ele exigira. Apesar daquilo, a nítida impressão que tinha era de que Potter a desprezava. Bem, desprezava Lilian, mas como estava se passando pela irmã... Aliás, mesmo não sabendo, ele tinha sorte pelo fato de ela não ser Lilian. Aquela altura, sua irmã já teria estado a meio caminho do aeroporto. Tinha um temperamento forte; sem mencionar que adorava conforto. Além do mais, acos¬tumada como estava a ser objeto de admiração masculina, jamais teria tolerado a hostilidade com que ela própria fora tratada em seu lugar

Ironicamente, previra que Lily seria tratada como uma princesa desde o momento em que chegasse na Espanha. Ao que parecia, as cartas de Alvo Dumbledore haviam-no mostrado como um cavalheiro à moda antiga, dono de uma necessidade instintiva de ser protetor em relação a qualquer membro do sexo feminino. Mas Dumbledore era décadas mais velho do que seu vizinho, Potter, que não demonstrara um pingo sequer da antiga galanteria latina. E por quê? Evidentemente, via Lilian como uma mulher leviana só porque dormira com Ryan no primeiro encontro de ambos. O que, afinal, o homem achava que era um romance tórrido? Ora, sua irmã deixara-se levar pelo ímpeto da paixão e do amor! Como ele ousava recriminá-la?

— Como está Dumbledore? — perguntou Lily de repente.

James lançou-lhe um olhar, sua expressão fechada.

— Você finalmente se lembrou dele?

Ela corou.

— Dumbledor está tão bem quanto se poderia esperar nessas circunstâncias. — Com aquela resposta evasiva, Potter montou no garanhão, impossibilitando-a de lhe fazer mais perguntas.

Enquanto os animais deixavam o pequeno povoado a um trote lento, Lily observou o homem de costas, seus ombros largos, sua postura irretocável no cavalo. Ele montava como se fizesse parte do garanhão, altivo, imponente. Ela, por sua vez, esforçava-se para relaxar os músculos, mas o pavor de cair da égua tornava aquilo impossível.

— Vá mais devagar! — pediu freneticamente minutos depois, quando os animais começaram a trotar mais depressa e achou os movimentos bruscos de seus quadris de encontro à sela rústica incômodos demais.

Potter puxou as rédeas e virou-se.

— Qual é o problema agora?

— Se eu cair e quebrar uma perna, não serei de muita ajuda a Dumbledore!

— Logo vai escurecer...

— É o que você não pára de prometer — resmungou ela, convencida de que estava ardendo em chamas debaixo do poncho. — Mal posso esperar para que esse sol se ponha.

— Lamento muito que este meio de transporte não esteja sendo do seu agrado, señora.

— Oh, pelos céus, chame-me de Lily! Esse jeito formal de se dirigir a mim não tem cabimento já que o está aliando a péssimas maneiras!

James Potter gelou no lugar, o maxilar enrijecendo.

— Já pude perceber que você não gosta de mim e nem me aprova, e eu detesto hipocrisia!

— O seu nome é Lilian. Por que eu a chamaria de Lily?

Horrorizada com seu deslize acidental, Lily baixou a cabeça, subitamente grata com o fato de os falecidos pais terem decidido colocar os nomes nas filhas gêmeas de Lilian e Lily.

— A maioria das pessoas me chama de Lily agora. Lilian foi para a época da adolescência — mentiu ela, esforçando-se para não demonstrar o nervosismo.

— Lilian — disse ele com o rosto desprovido de emoção e pressionou os joelhos de encontro aos flancos do garanhão negro.
Lily lutou para manter-se na sela da égua enquanto percorriam a interminável planície coberta de relva. A vastidão era assustadora. Apenas o céu e aquela vegetação rasteira, e o calor opressivo e implacável do sol. A certa altura, perdeu a noção do tempo, sentindo-se sem energia até para um gesto simples como erguer o pulso debaixo poncho para consultar o relógio.
Durante uma pausa para beberem água, Lily sorveu um longo gole do cantil que Potter lhe estendeu e, depois de devolvê-lo, deixou-se cair pesadamente sobre a crina sedosa de Chica, a exaustão dominando-a.

Com o que, por certo, foi um impropério qualquer em es¬panhol, Potter desceu de sua montaria e colocou as mãos na cintura de Lily.

— Solte as rédeas.

Surpresa, ela abriu os dedos tensos e viu-se sendo tirada da égua por um par de braços fortes.

— O que, afinal...

— Você irá comigo em El Lobo — anunciou James, sentando-a na sela do garanhão. Juntou-se a ela tão ágil e rapi¬damente que nem sequer lhe deu chance de argumentar.

Abalada pelo íntimo contato de coxas fortes contornando as suas e do braço que a enlaçava pela cintura, Lily engoliu em seco. Mas, ao menos, sentia-se segura com ele. Sua tensão foi se dissipando, dando lugar a um estranho calor que a percorreu por inteiro, um calor que nada tinha a ver com o sol abrasador. Sobressaltou-se de repente com a chocante constatação de que seu corpo estava reagindo sexualmente e por vontade própria à máscula sensualidade de James Potter.

— Relaxe, sim?

— Você está me apertando demais — queixou-se ela, horrorizada e constrangida com o efeito que o homem estava lhe exercendo.

— Você não está em perigo algum — declarou ele num tom manso. — Não sinto a menor atração por mulheres fúteis.
Lily sentiu a raiva e a indignação afogueando-lhe as faces.

— Oh, você é realmente o homem mais odioso que já conheci. Mal posso esperar para me livrar de você! Quando chegaremos à fazenda de Dumbledore?

— Amanhã...

— Amanhã?— indagou Lily, estupefata.

— Dentro de uma hora, acamparemos para passar a noite.

— O quê? Mas... eu achei que íamos chegar logo...

— Perdemos tempo, señora.

— Eu não fazia idéia de que a fazenda ficava tão longe — confessou Lily num tom desolado.

Cavalgaram em silêncio até o pôr-do-sol. Quando, enfim, desmontaram perto de um córrego, ela sentia-se atordoada pela exaustão, cada músculo de seu corpo dolorido.

Olhando para James, que parecia inabalável feito uma rocha, amaldiçoou a própria fraqueza. Perdera bastante peso enquanto sua mãe estivera doente, e ainda no mês anterior fora acometida por uma forte gripe. Depois de dois dias seguidos viajando, quase não lhe restavam forças e estava longe de se sentir bem. Não lhe ocorrera, nem a Lilian, que a fazenda de Dumbledore pudesse se situar num local tão remoto e de difícil acesso.

As terras baixas guatemaltecas haviam parecido muito menos vastas no mapa do que eram na realidade e, afastada da familiaridade da vida na cidade grande e de sua cuidadosa rotina, ela sentia-se terrivelmente vulnerável. A irmã gêmea podia conhecer várias partes do mundo, mas aquela era a sua primeira viagem ao exterior. Liberdade fora a única coisa que sua mãe afetuosa mas possessiva recusara-se a dar-lhe.

Sentindo as pernas trêmulas, sentou-se na relva, enquanto James dava de beber aos animais no córrego. Ele, então, aproximou-se e atirou um cobertor a seu lado.

— Você deve estar com fome.

Lily sacudiu a cabeça, fatigada demais para sentir fome. Lentamente, como um brinquedo ficando sem pilha, ela deitou-se na relva.

— Estou com sono — murmurou com um bocejo. Surpreendendo-a mais uma vez, James estendeu-lhe o cobertor e, em seguida, ergueu-a nos braços, deitando-a sobre ele.

— Durma, então — disse, seco.

James Potter era um homem de contradições fasci¬nantes, pensou Lily, sonolenta. Dono de um orgulho ferrenho e de um frio controle, com o qual continha sua hostilidade em relação a ela. Mas, ao mesmo tempo, era honrado demais, ao que parecia, para submetê-la a desconfortos desnecessários.

Com sua silhueta delineada pelos últimos vestígios do pôr-do-sol que ainda coloriam o céu, ele permaneceu parado diante dela, como uma grande e intimidante sombra negra.

— Você parece o diabo — sussurrou ela, em meio ao seu torpor, numa tentativa de fazer um gracejo.

— Não tomarei a sua alma, señora... mas tenho toda a in¬tenção de destituí-la de tudo mais que você possui.

Palavras vagas pairaram no vazio que ia envolvendo a mente de Lily. Não faziam sentido. Com um breve suspiro de alívio, ela mergulhou num sono profundo e sem sonhos.