Isso foi há muito tempo. Séculos atrás, quando ainda éramos jovens.
Quando Asgard era o reino dos reinos, com seu belíssimo palácio Valaskjálf, de ouro e prata, com seu exército invejável e um rei chamado Odin. Sim, os livros de história falam dele, da época dourada desse reino. Mas penso que eles sempre contam meias verdades, as que interessam, dependendo da origem desses livros, em quais reinos eles foram feitos. Para uns, Odin foi o grande estrategista, o líder sábio e caolho, que levou Asgard para a glória a base de muita disciplina e imposição. Já outros descrevem o antigo rei como déspota, violento, que explorava os outros reinos e enriquecia às suas custas. Aquele que odiava os jotuns e fez seu povo odiá-los também.
Eu leio todos esses relatos com lágrimas nos olhos. Eu, que vivi e vi de perto muitas coisas, mas eu era muito jovem quando tudo acabou. As coisas que eu sabia de política era por intermédio de meu amigo Loki, o segundo príncipe. Thor também era meu amigo, mas ele nunca compartilhava essas coisas comigo, ou com mulheres. Os asgardianos eram rigorosos quanto a isso.
Hoje eu sei, eles eram misóginos em sua maioria.
Exceto Loki.
Quantas vezes ficávamos em companhia um do outro, seja na biblioteca, nos jardins, compartilhávamos segredos. Éramos amigos desde crianças, crescemos juntos. Eu me lembro da primeira vez que eu o vi, meu pai tinha sido destacado como general do exército, o general Björn. Saímos da adorável vila de Simek e fomos morar no palácio. O encantamento por estar naquele lugar demorou a passar para mim, eu, que era apenas uma criança muito pequena. Quando passeei pela primeira vez pelos jardins comuns com minha mãe e minha irmã, vi uma figurinha interessante próximo ao lago com uma mulher que depois soube que era uma aia. Era um menino de cabelos negros e olhos muito verdes, vestido com uma túnica verde escura de mangas compridas e um colete de couro escuro por cima, usando botas marrons. Logo o achei muito bonito. Desvencilhei de minha mãe e fui correndo até ele, meu vestido de renda esvoaçava ao vento juntamente com meus cabelos loiros.
-Sigyn!
Não a obedeci, e cheguei até o menino e agarrei seu braço, para ter total atenção dele. Às vezes, anos mais tarde, ainda fazia isso. Seria normal que ele me empurrasse, chorasse por sua aia, ou qualquer outra coisa agressiva ou temerosa, mas não. Ele só me olhou com seu olhar infantil e sorriu. Eu também sorri sem tirar a minha mão em seu braço e, engraçado, lembro-me da sensação até hoje, da sensação de conforto. Em algumas culturas, isso seria interpretado como marcação, eu o havia marcado, de alguma forma, como meu. Mas, ai, não foi da forma como eu realmente queria. Nunca foi.
Em nossas andanças pelos jardins, eu e Loki tínhamos quase sempre a companhia de Idunn, a guardiã das maçãs douradas. Ela era antiga, porém sua aparência era bem jovem. Dizem que ela conheceu o pai do rei Odin, Borr, e também conheceu o pai deste, isso segundo Loki, que ouviu de seu pai esse relato. Idunn costumava ser bem alegre, desregrada, e atraía todos os homens com seus belos cabelos compridos e loiros que iam até sua coxa, levemente ondulados, com alguns fios puros como a neve. Fandral, amigo de Thor, na época tentava obter alguma exclusividade, e só conseguia risos dela.
Thor, irmão mais velho de Loki, foi também nosso companheiro de brincadeiras quando criança. Ele era mais velho que a gente, portanto esse tempo não durou muito. Eu gostava muito dele, o primeiro príncipe era lindo. Era muito difícil não olhar para ele, sua aparência era magnífica, seus cabelos loiros, olhos muito azuis, ele era grande e quando alcançou sua maioridade, seu corpo era extremamente forte. Além disso, Thor era muito alegre, adorava festas e era amado por seus amigos e seu povo. Seus feitos, e esses incluíam caçadas, emboscadas, qualquer coisa, eram comemorados em festejos que duravam dias. Ele obteve um martelo de poder que só ele podia empunhar e lembro-me que Loki ajudou na obtenção desse instrumento, mas quem se importava? Meu amigo nunca era lembrado... Thor era o campeão de Asgard, o guerreiro mais valoroso e temido. Seu lado furioso era conhecido por todos os nove e raros eram os adversários à altura.
Loki era o oposto de Thor, tanto na aparência quanto nas atividades. Meu amigo amava ler, estudar, e vivia na biblioteca do palácio. Ele tinha um conhecimento vasto sobre cultura e história de outros povos, sabia vários outros idiomas, entendia de política e dos protocolos vigentes. O segundo príncipe vivia nas reuniões do Conselho, observando toda dinâmica entre eles, e quando alcançou a maioridade pode também opinar diante de todos. Em geral, gostavam muito de suas intervenções, eram sempre inteligentes e perspicazes. Odin estava lá, também, percebendo o crescimento de seu caçula, mas de certa forma ele não gostava do que via. Era para Thor estar ali, aprendendo, se destacando. Loki não seria o futuro rei. Nunca.
Meu amigo também era um perito em magia. Um feiticeiro. Sua mãe, a rainha Frigga, o ensinou desde pequeno as artes mágicas e, após esgotar seu conhecimento, contratou tutores de diversos reinos para ensiná-lo, e Loki teve muitas aulas, além daquelas dos tutores de disciplinas regulares de Asgard. Eu soube que Odin se opôs veementemente, visto que essa atividade poderia rotular seu filho como ergi, ainda mais que o garoto se recusava a fazer treinamento físico, mas sua esposa, aos poucos, o convenceu de uma forma que não fiquei sabendo como. Chegou um tempo em que os tutores de magia também não souberam mais o que ensinar. Sua mãe, então, o levava em todas suas viagens, e nelas ele pôde ir às bibliotecas dos reinos e fazer anotações do que era interessante.
Eu não pude ir com ele nessas viagens, mesmo com a rainha se responsabilizando, e morria de saudades do meu amigo. Quantas vezes eu ficava perto do caminho da Bifrost, olhando e aguardando. Em seus retornos, Loki sempre trazia algo para mim. No começo foram doces, ou algum livro diferente, um tecido típico, mas depois foram joias, sempre magníficas. Até hoje tenho um lindo anel de esmeralda e ouro, que ele deu em minha maioridade, pois lhe arroguei um significado profundo.
A rainha Frigga não entendia nossa amizade. Às vezes eu via que ela achava que éramos namorados, às vezes ela percebia que ele não me amava. Loki me dava presentes caros, mas não me amava. Eu era a parceira dele, a confidente, a melhor amiga, a única amiga. Loki não era popular, não tinha amigos, só a mim e a companhia de Idunn, às vezes. Mas ela não contava, ela era de todos.
Quando éramos pequenos, Loki e Thor eram inseparáveis, e eu estava no meio dos irmãos. Eu via o amor nos olhos de Thor, ele era fascinado por Loki. Tudo que seu irmão caçula fazia era ótimo, era fenomenal. Havia outros amigos, como Fandral, Sif, que tinham a idade de Thor e viviam ali, nas brincadeiras. Com o tempo o primeiro príncipe foi se voltando para eles e, depois de alguns anos, pendeu abertamente para Sif. Nessa época pude ver um Loki extremamente ciumento: Thor já não olhava tanto para ele. As brigas que se seguiram, Loki versus Thor, Sif e Fandral, foram escandalosas, com direito a castigo por semanas por parte de Frigga e das famílias dos outros. Loki havia usado um de seus feitiços contra Sif e seus belos cabelos loiros tornaram-se castanhos escuros. Não me lembro do porque, mas não havia como reverter a magia.
Mas isso não foi o fim da amizade deles. Ainda.
Um pedido de desculpas por parte de Loki à Sif, insistência de Frigga, amenizou um pouco as coisas. E Thor retornou para Loki, tentando estabelecer novamente a camaradagem entre eles. Suspeito que a mãe deles tenha ajustado isso. Cresceram, tornando-se jovenzinhos. Thor ia para o campo de treinamento e Loki ia para seus estudos, mas sempre se viam nos intervalos. Eles corriam para me procurar e ficávamos os três debaixo de alguma árvore, se o tempo estivesse bom. Idunn corria em nossa volta, desejando boas sortes e cantarolava bênçãos. Outras vezes andávamos a cavalo, disputando corridas. Era divertido.
Teve um momento que tudo deu errado novamente.
Nunca vi Loki tão aborrecido até aquele momento. Ele não queria mais saber de Thor. Eu via seu irmão olhando para ele com olhar triste, mas sem se aproximar. Soube que Loki o proibiu de falar com ele novamente, de ir ao seu quarto, de se aproximar. Até então os irmãos várias vezes, ou quase sempre, dormiam no mesmo quarto (o de Loki), compartilhavam a cama, e isso a pedido do mais novo. Ele tinha muitos pesadelos e só Thor conseguia acalmá-lo. Os irmãos também tomavam banho juntos, dispensando os serviçais, e isso a pedido do mais velho. Ainda aproveitavam e ficavam na escrivaninha de Loki fazendo as lições que os tutores de Asgard passavam. Thor sempre precisava de ajuda e seu irmão o ajudava (revirando os olhos, mas no fundo se alegrava com isso).
Foi nesse período, também, que meu amor por Loki explodiu por todos os meus poros.
Eu também era uma jovenzinha e minha mãe começou a falar sobre meu pretendente, Theoric. Eu tinha ânsias só de pensar e fingia que me importava para não aborrecê-la. Porque só um nome fazia meu coração bater forte, pulsar para fora do meu corpo, e eu quando o via tentava disfarçar. Como já disse, ele não me amava, mas naqueles tempos eu ainda tinha ilusões. Aqueles cabelos dele, um pouco compridos, negros, levemente ondulados, sua pele muito branca, parecendo creme, os olhos verdes profundos, grandes, expressivos, seu corpo esguio e bem ajustado. Ele era vaidoso e sempre estava bem arrumado. Várias vezes eu me perdia olhando sua boca, vermelha, lábios finos. Que gosto teria? Um dia dei um beijo nele, ele estava com a cabeça em meu colo e eu o beijei. Ele sorriu, mas se afastou. E não disse nada.
Houve um momento crucial, quando Odin decidiu reter a magia do filho mais novo. Ele não gostava o quanto Loki ficou poderoso. Ainda mais sabendo o que ele aprontava, criando clones de si mesmo e enganando as pessoas. Trocando os sabores das comidas nos banquetes. Alterando o hidromel para suco de frutas. Fazendo com que alguns guerreiros, dos quais Loki particularmente odiava, ficassem sem roupa no meio do salão. Teve uma vez que meu amigo fez com que um deles tivesse visões de invasão em Asgard e soasse o alarme, em pânico. Loki ficou meses de castigo, mas eu podia visitá-lo e constatar um indisfarçável sorriso de triunfo em seus lábios.
Após reter sua magia com pulseiras douradas, em uma reunião tensa com o rei, a rainha e o príncipe Thor, eu vi meu amigo mago realmente com medo. Pela primeira vez. Loki não acreditava, parecia nem conseguir respirar direito. A magia era parte do seu ser, e ele se sentia desnudo, empobrecido, roubado. Loki chorou várias vezes em meu colo, esbravejou contra os céus, implorou a sua mãe, e nada. Odin foi implacável: quando ele mostrasse amadurecimento e participasse da vida guerreira, ele teria sua magia de volta.
Pode-se dizer que tudo o que aconteceu depois determinou o que existe hoje. Mas sabe-se que o destino não é feito de fatos isolados, às vezes uma crise tem raízes profundas, ignorada por seus governantes e, quando se dão conta, o mal já está feito. E não há nada que possa reverter suas consequências.
