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_Há quanto tempo está aí? –Akane aproximou-se o interrogando, as sobrancelhas curvadas espertamente, um sorriso maroto brincando nos lábios. Ela ainda estava corada do exercício e se enxugava na toalha pendurada no pescoço.
Heero se enervava com aquela expressão dela todas as vezes. Ele estalou os lábios e deu de ombros, enfiando as mãos nos bolsos e voltando a olhar para o vidro.
Era como uma vitrine e ela era a joia. Ele não sabia como ela se chamava, mas cada movimento dela identificava-a de modo que ele a reconheceria mesmo de longe, em qualquer lugar. Era como se o ar em redor dela não oferecesse resistência, era como se ela comandasse a gravidade. E qualquer que fosse a luz que batesse nela, conferia ares angelicais e sublimes à figura esbelta e delicada.
Ela ouvia o professor falar e assentia quando se aproximou dos dois um homem loiro em roupas muito elegantes e comportamento soberbo que sorriu para ela enquanto lhe dava a mão e era apresentado. Este homem estivera bem ali, ao lado de Heero, durante os minutos que faltavam para a aula acabar e furtivamente entrou no espaço.
Akane a seu lado falava com alguém, pacientemente esperando que ele terminasse sua observação. Como ele via que o assunto entre o trio dentro da sala ia se prolongar, tocou a irmã no ombro e murmurou:
_Já pegou suas coisas? Vamos embora.
Ela despediu-se da amiga com que conversava e jogou a bolsa de ginástica sobre o ombro, seguindo o rapaz para a saída.
_Ela é a senhorita Darlian. –e Akane explicou quando entraram no carro.
Ele a olhou de soslaio, mas não manifestou reação. Akane seguiu com o sorriso felino.
_O nome dela é Relena e ela é a primeira bailarina. –abrangeu, tentando fazê-lo comentar algo.
Ainda assim, Heero não disse nada. Akane o ficou olhando, curiosa e divertida, mas decidiu mudar de assunto, ligando o rádio.
_O Duo está no seu turno também?
_Não.
_Ah. –e pareceu aborrecida. Foi a vez de Heero abrir um sorriso, porém muito mais discreto que o dela, quase imperceptível.
_Você veio para cá para estudar balé, não para arranjar namorados. –e provocou, fazendo-se severo.
_Ah vá, Heero. –ela deu pouca importância à reprimenda. –E você vai ao conservatório me buscar, não ficar de paquera. –e alfinetou por fim, apertando os olhos com malícia.
Dessa vez, ele franziu a testa, bastante contrariado. Estacionou o carro na frente do alojamento e bufou:
_Boa noite.
_Tchau. –e mandou um beijinho pelo ar.
Fazia só duas semanas que Akane chegara à cidade, junto de centenas de outros estudantes do conservatório estadual recém-aprovados. Mesmo assim fora tempo suficiente para ela aprender sobre todas as pessoas na vida do irmão, que não eram muitas, é verdade. Era uma boa coisa Duo estar em um turno diferente ao dele, porque de certa forma limitava o acesso que Akane poderia ter ao rapaz. Heero preocupava-se com a possibilidade contato entre os dois visto que pelo jeito Duo também tinha gostado dela. Para poder buscar Akane nos finais de tarde, Heero precisou trocar seu turno e agora trabalhava das 8 às 4, enquanto Duo, aquele que era considerado seu melhor amigo, fazia seu antigo turno das 3 a meia-noite. Era melhor assim, pelo bem dos dois. Heero não sabia se queria Akane envolvida com um bombeiro. Ela também tinha de seguir uma disciplina pesada no conservatório.
Estava demorando a Heero se acostumar com o horário novo de trabalho, embora a mudança não tivesse tão brusca. É que ele não sabia o que fazer com suas noites repentinamente livres. Tinha alguns dias que depois de deixar Akane, ele voltava para o quartel e acabava ficando por lá até o dia seguinte. O seu turno anterior era o melhor, fazia o dia render, mas pela moça, abria aquela exceção. Seu pai tinha sido bastante enfático sobre o que esperava dele agora que Akane morava na mesma cidade.
Ela também não pedia nada mais a não ser aquela carona. E conhecendo-a bem, sabia que logo arranjaria companhia para voltar para casa. Aí talvez ele conseguisse permissão do chefe para retornar ao turno antigo.
Naquele fim de tarde, voltou para seu apartamento ainda pensativo sobre a primeira bailarina. Mesmo ali que tinha o nome dela, não se sentia mais próximo dela, pelo contrário, intrigou-se mais. É claro que já tinha ouvido aquele sobrenome na TV, pelo visto ela era parente do Ministro de Relações Exteriores. Ela com certeza era de uma família muito boa, muito rica. Sim, ela era nada menos que a primeira bailarina do conservatório estadual.
Ele sentou-se na cama com seu velho laptop um pouco embaraçado sobre o que estava prestes a fazer, embora, ao mesmo tempo, soubesse que não era algo errado. Digitou o nome dela no Google para investigá-la.
As fotos dos balés eram muito bonitas, todas captavam o espírito etéreo que a envolvia. Havia o perfil dela no site do conservatório com todas as informações técnicas que exibiam um grande potencial, dando todas as pistas de que ela se tornaria uma bailarina renomada. Na foto do perfil, ela olhava para ele com doce confiança e um sorriso principesco.
Heero suspirou e sacudiu a cabeça, perguntando-se aonde aquele contemplar o levaria. Olhou as horas e decidiu pedir comida chinesa e assistir alguma coisa no Netflix. Que tédio.
No resto da semana, ele preferiu esperar Akane do lado de fora. Era melhor não alimentar aquela sensação estranha que tinha toda vez que via a senhorita Relena dançando, sorrindo ou falando com os instrutores. Entretanto, aquela segunda-feira estava chovendo e ele não conseguiu parar na frente do conservatório. Equipado com dois guarda-chuvas, foi buscar Akane lá dentro e acabou, como sempre, parado diante da janela do estúdio.
O grupo de bailarinos estava praticando um exercício em conjunto que parecia muito demandante. Heero se fixou na força que o corpo de cada bailarino demonstrava, admirado com o controle e a resistência de cada um. E a expressão em suas faces era de uma concentração tão profunda que em si só parecia sustentá-los ali. Poucas vezes em que ele estivera ali vira o grupo dançar realmente.
Quando o exercício acabou, o professor chamou a atenção de todos e deu alguma informação que causou muito contentamento. Relena apareceu entre um grupo de bailarinas, sorrindo ao receber congratulações. Depois, as meninas se dispersaram, ainda alegres, e Relena foi abordada pelo professor junto de mais um ou dois bailarinos, provavelmente importantes como ela, e ficaram discutindo algo com bastante seriedade. Akane apareceu minutos depois, pronta para ir embora, e Heero entregou-lhe o guarda-chuva.
_Nós vamos montar "O Pássaro de Fogo" de Stravinsky este ano! Vão ser abertas audições para todos os membros da escola! –ela anunciou muito animada.
_Que bom. Tenho certeza que vai conseguir um papel. –ele murmurou de modo neutro, olhando-a com bondade.
Akane não parava de sorrir. Era tudo o que ela desejava – participar de um balé e exibir toda a sua técnica.
Heero voltou-se para roubar um fito de Relena parada com as mãos na cintura, uma escultura em homenagem à graça e beleza, ouvindo a palestra do professor, e pela primeira vez, ela o notou. Os olhos de vidro dela se prenderam aos dele, curiosa e pensativa, e depois retornaram para concordar com algo que o homem dissera.
Ele respirou fundo e saiu com Akane, ouvindo-a tagarelando sobre "O Pássaro de Fogo".
Entraram no carro fechando os guarda-chuvas desajeitadamente e depois de fechar a porta, Heero olhou Akane e indagou:
_E como vão as amizades na classe?
_Vão bem, o pessoal que entrou comigo é bastante simpático. E agora que fui selecionada para as aulas avançadas, junto dos bailarinos principais, estou conversando bastante com uma russa…
Heero assentiu.
_O nome dela é Cynthia, mas todo mundo a chama de Tint. Ela acha que tenho chances de ser uma das treze princesas enfeitiçadas.
_Tomara. –ele não demonstrava entusiasmo, mas isso não queria dizer que ele não dava importância ao que estava acontecendo. Por outro lado, ele não conhecia nada da história daquela dança.
_Ah, Tint inclusive disse que podíamos sair sábado para comemorar a novidade. Ela conhece várias baladas boas. Você acha que Duo poderia conseguir uma folga para ir, se eu o chamasse?
Heero a olhou estreitando os olhos.
_Ane, você está saidinha demais como sempre. –reclamou, um pouco impaciente.
Ela deu de ombros, nada ofendida.
_Tint é uma bailarina principal, ela tem bastante contato com a Relena… talvez ela a convença de ir também… –e comentou, sabendo bem o efeito que a informação teria nele. Acompanhou como ele assistia Relena todas as vezes que entrava no conservatório. Se ele cooperasse com ela, com certeza o ajudaria a conseguir a garota.
Ele entendeu a sugestão da moça e bufou. Estacionou o carro e apresentou:
_Não tem como Duo conseguir uma folga assim, em um sábado, ainda mais de repente…
_Bem, fale com ele, que eu falo com a Tint. Também, não é garantido que Relena vá. Ela tem muitas responsabilidades e uma rotina rígida… e um temperamento bem pacato também. –e sorriu simplória. Beijou-o no rosto antes de descer:
_Obrigada pelo guarda-chuva. –e saiu de uma vez, batendo a porta e correndo para o pórtico.
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_Foi muita sorte ser o Quatre que estava de folga hoje! Ele era o único que trocaria comigo! –Duo comentou contente ao entrar com Heero na casa noturna que Tint indicara. Heero respirou fundo, mal disfarçando seu aborrecimento com a coincidência que a fortuna concedera a Duo. Ainda preferia Akane longe de seu colega, mas, por outro lado, ele também estava ali por causa de uma paquera e não tinha mais base para repreender ninguém.
_Não sei se esse lugar tem saídas de emergência o suficiente. –Duo brincou, embora olhasse o arredor com um pouco de escrutínio.
Aquela boate não era exatamente barato, mas também não era luxuoso. Era bem frequentado, com pessoas bonitas e bem vestidas.
_Vamos pedir para ver os documentos de inspeção. Se estiverem vencidos, já podemos fechar o lugar.
_Heero causando total na balada.
Os dois trocaram sorrisos astuciosos.
_Bem, parece que o fogo é ali… –e Duo logo avisou, apontando Akane e Tint que acenavam.
_Se comporte, ouviu? –Heero alertou, severo.
_Sim, senhor.
_Trouxe um capacete extra?
_Isso quer dizer que posso levar sua irmã para casa?
_Não se empolgue.
_O que é isso? Não confia em mim?
_Não.
Duo fez uma careta cômica de decepção.
_Cara, depois de tantos anos… quantas vezes salvei sua vida?
_Isso não vem ao caso.
Duo riu, despreocupado então, desfazendo a cena. Sentiu que apesar de toda a pose, Heero estava ansioso. Ele podia não ser caloroso, mas se preocupava com Akane e também queria causar uma boa impressão na moça que o interessava. Duo respeitou o amigo e não brincou mais, especialmente com coisas tão sérias.
Aproximaram-se de Akane e Tint que os cumprimentaram com beijos no rosto. Antes de apresentar Heero aos amigos reunidos ali, Akane cochichou para ele:
_Relena está no banheiro. –e piscou um dos olhos excessivamente sombreados de preto.
Heero pareceu surpreso e não se moveu. Akane deu uma risadinha antes de seguir com as apresentações. Depois, deixou-o para conversar com Duo. Parecia radiante por vê-lo ali e Heero sabia que então era tarde demais para impedir qualquer coisa.
Assim, suspirou, colocando as mãos no bolso, um pouco deslocado. Ficou pensando em que diria a Relena e em como agiria perto dela. Tint tentou puxar algum assunto, um olhar cheio de interesse saliente, entretanto, de repente sua atenção foi desviada para um rapaz de aparência um pouco doentia, melancólica, que a olhou com certa censura e conversou com ela em russo. Os dois se afastaram imediatamente e Heero voltou a ficar sozinho em meio a tantos jovens que se divertiam.
Ele não saiu do lugar e nem procurou uma bebida. Estava dirigindo. Sua unidade não cuidava de acidentes de trânsito, mas mesmo assim ele sabia que devia dar o exemplo.
Relena voltava do banheiro e percebeu que o lugar estava bem mais cheio do que na hora em que chegara e então não conseguia mais localizar todos seus amigos. Entretanto, notou logo o rapaz parado onde antes seu grupo tinha se reunido. Ele mantinha uma pose apresentável de postura perfeita, e exibia um olhar indecifrável que corria por todo o espaço, como se ele não descansasse nunca, atento e pronto.
Parou em seu caminho, pensativa. Aquele era o rapaz por quem todas as bailarinas estavam suspirando. Quando ele aparecia no vidro do corredor da sala de prática, era possível perceber uma leve mudança no ar, todas queriam dar o seu melhor. Relena riu e hesitou um pouco em seus passos. Era curioso pensar no acesso especial que ele tinha conseguido ao interior do conservatório para esperar a irmã. Ela não tinha ainda tanta liberdade para conversar com Akane e tudo o que sabia era o que ouvira as outras meninas falarem.
Mesmo sem seu uniforme de camisa branca e calça azul-marinho, ele parecia marcial e remoto ali, muito sério. Aproximou-se com lentidão, preocupada em como ele a receberia, visto que era fácil notar que seu humor era bastante diferente ao de Akane. Ele sentiu sua presença a alguma distância, ela abriu um sorriso polido e estendeu a mão, falando o mais alto possível:
_Muito prazer, eu sou Relena Darlian.
_Heero Yuy. –e ele não relaxou nem um instante. Relena respirou fundo, indecisa sobre o que pensar dele.
_Sim, você é o irmão da senhorita Yora.
_Sim.
Relena assentiu também, sentindo-se hipnotizar pela firmeza do olhar que ele lhe dirigia. Ao mesmo tempo, começou a perguntar-se porque eles tinham sobrenomes diferentes.
Heero pareceu perceber a sua dúvida, pois mencionou com leve acanhamento:
_Mas não somos irmãos de verdade. Nossos pais, quero dizer, meu pai e a mãe dela se casaram e nós fomos criados juntos.
_Ah, entendo. –sorriu, esclarecida. Achava interessante o jeito que ele a vigiava. Era um olhar comprido que misturava admiração, respeito e receio. Ela não fazia ideia de como ele conseguia expressar tanto somente com um olhar e sentia-se tentada a investigar aquela mistura tão heterogênea de sentimentos.
E era isso. O assunto entre os dois terminou, e enquanto Relena sustentava seu sorriso perfeito, mas vazio, Heero a fitava, controlando sua ansiedade. Ela estava mesmo ali e ele não podia deixá-la ir embora, mas também não era bom com conversas.
_Quer beber alguma coisa? –fez a primeira pergunta idiota em que conseguiu pensar.
_Obrigada, mas não devo. –e deu um sorriso mais condescendente.
_Certo. –ele respondeu facilmente, contente em apenas ser notado por ela. Não estava aceitando uma derrota, por outro lado imaginava que não saberia como progredir e manter o interesse dela.
Relena o ficou olhando de volta, certa das intenções dele, e sem entender a si mesma, mudou de ideia:
_Talvez… uma garrafa de água? Está quente aqui… –correu a mão pelos cabelos em gesto de desassossego e achou que Heero gostou da decisão dela. Assentindo, o rapaz saiu prontamente para buscar o que ela pedira.
Enquanto só, Relena perguntou-se o que podia estar havendo com ela. Não poderia estar interessada nele, poderia? Por que tinha arranjado um motivo para mantê-lo mais tempo consigo? Namoros não eram bem-vindos, não naquele momento, com tantas oportunidades em vista, e tampouco eram bem vistos pelo seu professor. Suspirou, preocupada, notando o acelerar de seu coração ao ver Heero retornar com duas garrafinhas de água.
Ele caminhava com confiança, sempre de postura bem estruturada, e embora não fosse bailarino, ela via como ele era ágil. O corpo dele era atlético, os braços exibiam músculos talhados a perfeição. Ela suspirou fundo e agradeceu ao receber a garrafa. Para si, a situação estava ficando desconfortável, mas os outros jovens estavam entretidos demais para vir salvá-la.
_Você é bombeiro, certo?
Ele só assentiu.
_Então, o que você faz na companhia?
_Sou tenente. No meu turno, eu supervisiono cinco bombeiros no trabalho com o caminhão auto escada. –a forma de ele falar era técnica, mas não por isso complicada.
_Imagino que seja muita responsabilidade. –ela murmurou, admirada, pensando em tudo que aquilo queria dizer.
_Tanto quanto ser uma primeira bailarina. –ele comentou, tentando brincar, falar algo lisonjeiro. Não achou que soou bem, não combinava com ele falar assim, mas estava se desafiando a conquistá-la aquela noite.
Por algum motivo, a cada nova palavra, Relena ficava mais e mais sensível à voz dele, que era controlada e um pouco rouca e bastante palpável. Não era só o olhar dele que a absorvia então.
_O que é isso… o que eu faço não pode salvar uma vida. –ela murmurou, rebatendo a declaração que julgou exagerada, e riu sem graça.
Ele sorriu discretamente e meneou a cabeça. Divertiu-o vê-la embaraçada.
_Mas em seu mundo, é muito importante. –considerou, tentando diminuir o disparate que tinha criado, soando mais como ele mesmo.
_Pode ser. –ela divertiu-se pensando assim como ele propusera. Era um elogio pouco impactante, mas suficiente. –A arte também tem seu valor. Talvez não salva vidas, mas as transforma em algo melhor. –e romanceou, sem descartar a ideia dele. Ficou sorrindo, absorta, curtindo sua própria conclusão.
Se minutos antes se achava desconfortável na presença dele, então a atenção que ele lhe dedicava começava a fazê-la apreciada. Fazia tempo que ninguém a olhava assim com tanto cuidado. Bebeu um gole de água e decidiu prosseguir a conversa:
_Sua família é daqui?
_Não, somos do interior. Vim para cá cobrir uma licença e nunca mais voltei para casa. Já faz seis anos…
_Sua carreira deve ser bem difícil de seguir, mas muito recompensadora… tenho certeza de que você leva seu trabalho muito a sério.
Ele não ousou falar algo, evitando dar indícios de pretensão. Heero não estava acostumado a ouvir tantas perguntas pessoais e nem gostava de falar de si com estranhos, mas com ela era bastante fácil. Ela parecia realmente dar importância ao que ouvia. Ele nunca pensou que uma simples conversa poderia causar tanto contentamento.
De repente, um lampejo de travessura riscou o olhar dela:
_Mas você nunca relaxa? –e fazia menção à postura alerta e perfeita dele. Usara aqueles instantes de latência na comunicação deles para estudá-lo um pouco mais.
Heero franziu a sobrancelha, incomodado:
_Assim como você. –e a surpreendeu por provocá-la de volta.
Ela sabia que muitos anos de balé acabaram fazendo com que ela sempre parasse de um jeito que a punha pronta para sair dançando a qualquer momento, as costas tesas e o pescoço elevando levemente sua cabeça. Olhou para baixo curiosa com a posição de seus pés, mas os tinha naturais e relaxados. E gargalhando, deu-se conta de que eles tinham muito em comum. Estava ficando difícil resisti-lo.
_ Até que foi boa ideia deixar Tint me arrastar para cá. –e o lampejo maroto seguia faiscando nos olhinhos azuis. –Acho que nós dois estamos trabalhando demais. –e admitiu, esperando não ser levada a sério. A verdade é que ela esperava mesmo travar uma conversa despretensiosa, ser simplesmente ela, nada mais.
_Faz tempo que você dança também, não é? –e ele murmurou seu comentário, pensando na explicação de ela tão naturalmente manter sua postura de princesa.
_Sim, vinte anos… sempre foi minha paixão.
_É muito tempo. –ele não conseguiu evitar chocar-se. Malmente demonstrava, entretanto, admirou-se muito da dedicação dela.
_Pois é, mas ainda não me cansei nem um pouco! Espero conseguir continuar por mais vinte… –e era um pouco ilusório desejar assim, mas sempre haveria a possibilidade de tornar-se professora depois que seus anos dourados de palco terminassem.
Heero a fitou com muita firmeza, ela já estava se acostumando com a força do olhar dele, e depois de alguns segundos, ele indagou:
_E você sabe dançar outra coisa?
Ela sorriu, sentindo-se amigavelmente afrontada por ele.
_Bem, confesso que faz muito tempo que não tento.
_Está disposta a arriscar?
Ela mordeu o lábio, gostando do jeito sério e arrojado dele instigá-la.
_Eu não tenho nada a perder. –respondeu.
Ele diria depois para qualquer um que não conseguia se reconhecer naquele momento, falando com ela daquele modo, cheio de liberdade, tranquilo e afetuoso. Entretanto, não tinha porque se arrepender se passara um pouco do limite que definira para si.
Relena parou para prestar atenção à música que tocava e observou os outros presentes. Tint estava no meio da pista, totalmente entregue ao ambiente. Ela era marcada por ser bastante adaptável, era seu estilo pessoal este, e Relena de repente preferiu perder toda sua precisão e técnica refinada para demonstrar tanta confiança improvisando ao som de uma batida eletrônica. Olhou Tint como uma referência, porém não era aquilo que realmente precisava para motivá-la a dissolver sua insegurança. Voltando sua atenção ao rapaz consigo, encabulou-se ao ver ele lhe estender a mão.
Era uma ação corajosa, mas era por atos ousados que ele vivia todos os dias. Deu-se conta de repente que não se importava mais com que futuro teria com ela, pois o presente era recompensador o suficiente e exatamente o que ele queria. Quando ela colocou a mão sobre a dele, apertou-a e a puxou para mais perto. Não chegaram a se encostar, porém se envolveram por uma estranha energia, um ritmo por si só, e a sensação da respiração descompassada dela acariciando seu pescoço fez com que ele tivesse certeza do que fazia.
Ela sorriu discretamente, olhando baixo, sentindo o ritmo com seu corpo, aos poucos contagiando o rapaz consigo a seguir a música também. Não quis soltar sua mão e quebrar aquela conexão, mas também não se permitia tocá-lo mais.
Heero a fez virar algumas vezes, fazendo-a rir. Não se considerava bom dançarino, nunca se importara em praticar, e apenas se deleitava em como era fácil estar ali com ela, não se preocupando com o que os outros poderiam pensar.
Aos poucos, a música agitada foi dando lugar para uma mais suave e intimista.
_Podemos parar, se quiser. –ele murmurou, ela praticamente leu seus lábios.
Relena negou com a cabeça sem desenhar expressão em seu rosto. Quando teve de pôr as mãos nos ombros dele, ela percebeu como Heero era alto. Se ela se colocasse na ponta de suas sapatilhas, ainda não conseguiria colocar seus olhos nos dele. O modo como ele baixava o rosto para poder mirá-la deixava o coração dela desestabilizado. Sentia uma deliciosa tensão, que caminhava pelo seu corpo, eletrizante e poderosa, e sabia que olhá-lo e ser olhada daquela forma tão dedicada logo não seria mais suficiente.
Tinha dançado com muitos parceiros, sabia bem qual era a química de quando corpos se movem no mesmo compasso, mas pas de deux nenhum fora capaz de fazer seus sentimentos sintonizarem com os da outra pessoa. Sem dúvida, algo especial começava ali, de improviso, incrível demais para ser verdade, mas ela acreditava, sem hesitar, encantada por nunca ter experimentado nada semelhante antes.
Heero viu o sorriso inebriante que ela de repente abriu para ele e bebeu-o todo, puxando-a pela cintura, enfim juntando seus corpos, e insaciável, bebeu também de seus lábios, beijando-a audaciosamente, testando destemido o que ela estava sentindo.
Quando mais tarde ela fosse confessar sua aventura para alguma colega mais discreta, sabia que a única coisa que poderia dizer é que se deixara levar totalmente, respondendo ao magnetismo daquele rapaz que a atraíra desde a primeira vez que o viu.
Não tinha sido somente as outras bailarinas que ficaram afetadas pela presença de Heero. A figura dele tinha sido mais enigmática que excitante para ela, mas não menos cativante, e agora, presa nos braços dele, ouvia a música distante, afogada pelo rufar de seu coração seguindo a batida que o beijo ditava.
No começo, ele tocou os lábios dela com cuidado, sentindo a macieza e calor, imprimido neles todo seu interesse. Queria que seu gesto fosse significativo, não impulsivo, e esperava que a sinceridade de seu desejo estivesse perceptível. Sentindo que ela não punha resistência, mas prendia-se ao seu pescoço, colocou mais intensidade no beijo, cuidando de aproveitar a sensação.
Relena sentia o encantamento cada vez mais forte. Agora ela poderia dizer o que era paixão, agarrando-o ali e sendo beijada como nunca antes. Em pouco tempo ela foi roubada de tudo o que tinha, entregado tudo em troca daquele prazer tão imprevisto e surpreendente. Queria nunca ter de parar, nunca ter de soltá-lo, nunca precisar respirar.
Com dificuldade eles emergiram do beijo, totalmente sem fôlego, e cada um espreitou no olhar do outro o quanto estavam admirados pela força da atração e pela facilidade de afinidade. Ela abriu o mesmo sorriso maravilhado outra vez, ofegante, e ele a fitava como se estudasse o mais lindo mistério.
_Quer sair daqui? –como praticamente tudo o que ele dizia, a pergunta saiu decidida, um tanto autoritária.
_Eu quero. –e a resposta dela saiu fácil, como se ela já tivesse decidida disso há muito tempo.
Heero havia memorizado rapidamente o caminho da saída, e apanhando a mão dela outra vez, a guiou, desviando das pessoas que preenchiam o lugar. Seu passo não era apressado, só dinâmico, e ela o seguia na mesma velocidade, acostumada com movimentos céleres.
Quando chegaram ao lado de fora, foram recebidos por uma deliciosa brisa fresca e um envolvente silêncio. O contraste dos ambientes surpreendera. Até a luz da rua iluminava mais suas figuras do que os canhões coloridos da pista de dança. Eles se entreolharam, gostando da nova atmosfera, e por um instante ficaram expectantes ali.
_Quer comer alguma coisa? –ele resolveu perguntar.
_Que horas são?
_Meia-noite e dez.
Ela hesitou, como se tivesse que tomar uma decisão difícil.
Abrindo um pequeno sorriso com um brilho de generosidade no olhar, ele murmurou:
_Dieta?
O rosto ela franziu com um riso sem graça antes de ela assentir, abraçando-se.
_Me desculpa…
_Tudo bem. Eu entendo.
Mas ela bufou, um pouco frustrada.
_Então quer que eu te leve para casa?
_Pode ser.
Foi bastante natural confiar nele. Ela ergueu seu olhar até o rosto de Heero enquanto caminhavam pela calçada e o barulho mais alto eram os sons de seus saltos. Admirava-o e curtia os efeitos daquela intensa e instantânea fascinação, pensando como poderia amarrar-se a ele.
Por sua vez, a Heero fora muito fácil estar à vontade com ela. Atrás daquele vidro na sala de prática, ela parecia mesmo uma joia proibida para ele, e estava contente por ter conseguido se aproximar dela e comunicar o que sentia com tranquilidade. Era a primeira vez que se sentia tão seguro com alguém e não o incomodava o fato de eles conhecerem-se tão pouco. Sabia que teriam tempo para isso.
_Meu carro está ali. –ele indicou, a voz grave.
O ar ao redor era úmido, como que carregado de gotículas de água flutuantes desde o céu, criando um clima fresco, amaciando um pouco as luzes dos postes.
Um pequeno suspiro dela foi o suficiente para chamar a atenção dele. O fito de enlevo que embaçava os olhos dela o seduzia.
Ela mordeu o lábio com um pouco de força, sentindo que ele a observava com gula. Aquelas sensações eram forte demais para serem ignoradas e com uma leve inclinação de sua cabeça o convidou para o beijo. Seus olhos se entrecerraram e ela respirou fundo, reservando fôlego.
Segurando-a pelos quadris, ele a girou e encostou ao carro. Beijou-a com ardor, sentindo seus lábios, seus dentes, sua língua. Debruçado sobre ela, sensível a cada pequeno movimento do corpo dela e sua temperatura crescente, a puxava contra si, perigosamente.
Sem se intimidar, Relena enlaçou os ombros dele e abandonou seu peso sobre o automóvel, extasiada demais para sustentar o próprio corpo.
O beijo tinha sabor de eternidade, mas nunca parecia suficiente quando terminava.
Relena jogou a cabeça para trás e encheu o peito de ar e Heero beijou sua garganta.
_Ah… que loucura… –ela murmurou, risonha, e Heero não disse nada.
Com cuidado, ele a puxou e abriu a porta para ela. Minutos depois, estavam seguindo pela rua tranquila até uma das grandes avenidas que os podia levar a qualquer lugar.
Guardaram silêncio até que Relena lembrou-se:
_Não te disse onde moro…
_No alojamento… não é?
_Ah, não. Eu tenho um apartamento na frente da estação central.
Ele assentiu e fez as mudanças de percurso necessárias.
_Eu quero te ver outra vez. –ela comentou depois que ele estacionou em frente ao prédio.
Ele disfarçou seu entusiasmo e simplesmente pediu:
_Posso pegar seu telefone?
_Sim.
Ele entregou o aparelho celular para ela gravar o número.
_Acho que… nos vemos no conservatório… –e timidamente ela mencionou, devolvendo o telefone e tirando o cinto.
Ele assentiu, sorrindo carinhosamente somente com os olhos. Era uma expressão sem preço, ela queria saber como ele conseguia.
Relena desceu do carro arrastando um peso, já sentindo saudades. Definitivamente era loucura, mas também era muito real. Nunca tinha vivido algo tão sensual nem se sentido mais viva. Abaixou perto da janela dele e o beijou de raspão:
_Boa noite.
_Durma bem, Relena.
Ela assentiu, arrumando o cabelo atrás da orelha, e deu as costas para entrar no prédio.
Boa noite!
Espero que gostem desse novo projeto.
Mil beijos para a Lica que me ajudou com a sinopse!
13.12.2015
Revisado e corrigido em 07.01.2016
