Coração de Ymir

Capítulo 1

- Maia!

A mão de Ygnizem tremia na espada. A espadachim recuava lentamente, e seus passos falhavam no piso de metal recortado. Lá embaixo, um pedaço de cristal massivo pulsava uma luz pura e quente.

O Coração de Ymir.

A voz de Ygnizem soou esganiçada, apesar de tentar controlá-la.

- Armaia, sou eu. Ygnizem. Somos amigas, não se lembra? Maia...

A mercadora na frente da espadachim tinha os olhos parados, como se anestesiada, mas seus passos eram firmes e pesados. Em suas mãos, havia um grande machado, já tingido do sangue de Ygnizem. A vista da espadachim começava a escurecer.

Wickebain havia lhe avisado, mas ela havia guiado o grupo até ali mesmo assim. Ela guiou todos à suas mortes. Erend, Kavach, Laurell...

Ygnizem tropeçou, e seu corpo caiu. A voz de Wickebain soou em seus ouvidos uma última vez.

"É morder mais do que podemos mastigar."


Era mais um dia ensolarado na capital de Rune-Midgard. O mercado de Prontera estava movimentado como sempre, e ainda mais cheio aquele dia. Uma espadachim de cabelos azulados tentava forçar sua passagem por uma das ruas mais estreitas, seguida de um arqueiro e um noviço.

- Deuses, o que há com essas pessoas? Parecem formigas!

Erend desculpava-se pela grosseria de sua amiga conforme as pessoas passavam com olhares reprovadores após serem empurradas.

- Acalme-se, Ygnizem! Não é preciso empurrar dessa maneira...

Ygnizem bufou.

- Se os deuses limparem a rua para nós, eu pararei de empurrar, Erend!

Kavach deu um sorrisinho, mas estava sério. Estava acostumado com o silêncio das florestas de Payon, não com a balbúrdia dos grandes centros.

- Mas concordo com Ygnizem. Vamos encontrar um lugar mais calmo.

Erend suspirou, e o trio andou aos trancos e barrancos pelas ruas apinhadas até passarem pela loja de armas. Nesse ponto, Ygnizem sentiu um puxão em sua roupa.

- Ei!

Ao se virar, a espadachim viu uma moça de cabelos castanhos correr por entre a multidão. Apalpou seus pertences e percebeu que sua sacola de dinheiro havia sumido. Irada, ela berrou.

- Volte aqui!

Kavach e Erend viram a companheira partir em disparada atrás da pilantra, e se entreolharam incrédulos.

- Ygnizem!

O grupo correu pelas vielas de Prontera, passando por guardas que sequer os viram, já ocupados com um grupo de crianças peraltas que tentava nadar no fosso do castelo. Após alguns metros correndo por uma viela vazia, Ygnizem saltou sobre a ladra, e as duas se engalfinharam no chão.

- Me larga!

- Me devolve!

A ladra deu um safanão em Ygnizem, que caiu para o lado permitindo que a outra se movesse. A pilantra tentou correr, mas se deparou com uma flecha apontada para seu rosto.

- Parada.

Kavach apontava seu arco para a ladra, falando em tom calmo. A moça não moveu um músculo.

- Devolva o que roubou. Agora.

A bolsa de Ygnizem caiu no chão, e Kavach baixou o arco. A moça foi jogada contra uma parede, dessa vez pela espadachim, que a agarrava firmemente pelo colarinho da roupa.

- Você escolheu um péssimo dia para me roubar, garota imbecil.

- Tente - A ladra disse, e Ygnizem sentiu uma adaga pressionar seu estômago, ciente do perigo.

- Vamos, já chega! - Erend finalmente se pronunciou. - Não há necessidade de tamanha violência. Solte a garota, Ygnizem.

Com um olhar desaprovador, a moça se distanciou da ladra. Esta olhava para os três como um rato acuado. Erend lhe observava sério e benevolente.

- A senhorita poderia ter tentado roubar um alvo mais fácil, uma pessoa de idade ou um mercador distraído. Não seria difícil nesse mercado lotado. Porque tomar os pertences de nossa amiga? Ela não é uma pessoa com quem a maioria dos ladrões gostaria de trombar, como pode ver.

Ygnizem fuzilou Erend com o olhar, e Kavach sorriu, completando o raciocínio do companheiro.

- Uma ladra com princípios, não é? Algo raro.

- Princípios! - A ladra cuspiu no chão. - A Lady Sangrenta aí parecia ter zenys. Eu os roubei e fui pega. O que há de princípios nisso?

- Ora sua...

- Pst! - Erend silenciou Ygnizem. No momento em que o silêncio foi feito, um rugido alto foi ouvido.

- Isso foi seu estômago? - Kavach arregalou os olhos para a ladra, que respondeu corando. Ygnizem relaxou as feições, percebendo do que se tratava. Erend sorriu.

- Parece que precisa de algo mais importante que a prisão, senhorita.


A ladra que havia trombado com o trio de aventureiros devorava um pernil inteiro de porco selvagem a uma velocidade impressionante. Ygnizem mal tocava a comida, emburrada, porém Kavach e Erend pareciam se divertir com o apetite da outra.

- A propósito... Do que deveríamos chamá-la?

- Wickebain – Ela disse, entre mordidas. – Meus amigos me chamam de Wick.

- Você tem amigos?

- Não.

Ygnizem bufou. Kavach pediu outro copo de vinho.

- Por suas roupas, vejo que não é de Prontera. O que a traz aqui?

- Nada demais. Morroc é muito quente.

Erend riu.

- E o que um cara como você faz com a Lady Sangrenta aí?

Ygnizem lançou-lhe seu olhar característico, mas Erend ignorou.

- Eu e Ygnizem somos amigos de infância. Kavach aqui – Ele apontou o companheiro, que acenou com a cabeça enquanto tomava um gole de vinho – Juntou-se a nós em uma infeliz aventura na Floresta de Payon. Terríveis criaturas, os esporos...

Erend arrepiou-se, lembrando da alergia em um local extremamente inconveniente que o acompanhou por dias. Kavach acenou a cabeça em concordância.

- Você não vai querer saber.

Ygnizem interrompeu a conversa.

- Erend, posso ter uma palavrinha com você?

- Claro.

Ygnizem levantou-se da mesa e apontou com a cabeça um canto. Wickebain olhou os dois saírem sem entender, mas Kavach não pareceu se importar.

- Ela é sempre assim? – Wickebain perguntou, em tom de confidência.

- Sempre. – Kavach suspirou. – Mas não a culpo. Não depois do que aconteceu ao pai dela.

Wickebain parou de comer, pensativa.

- Mas não se engane. – Ele continuou - Ygnizem já salvou a todos nós muitas vezes. Seu temperamento é terrível, mas seu espírito é nobre.

- Você soa como um bardo.

Kavach riu, tomando mais um gole de vinho.


- Você está completamente louco?

Erend piscou, incrédulo.

- O que diabos está tentando fazer? Relatar nossas vidas para uma garota que acabamos de conhecer, e por um acaso, tentou nos roubar?

- Ygnizem...

- "A propósito, estamos à procura de um artefato poderosíssimo que poderá solucionar o desaparecimento do pai da minha amiga aqui. Você teria o visto rolando por aí?"

- Ela é especial, Ygnizem. Eu sei desde que a vimos.

A espadachim levantou uma sobrancelha.

- Você vai casar com ela?

- Não! – Erend disse, subitamente constrangido. Era contra seus votos. – Eu lhe digo, o destino a colocou em nosso caminho. Eu sinto isso.

O noviço recebeu apenas um olhar descrente da amiga.

- Apenas confie em mim, certo? Uma habilidade a mais no grupo nos ajudará. Ou você acredita que encontraremos o Coração de Ymir sozinhos?

- Pst! – Ygnizem olhou para os lados, mas ninguém estava ouvindo. Ela soltou um suspiro exasperado. – Pelo amor dos deuses, se aquela garota tocar em algum de meus pertences novamente, juro que a mato.

Erend suspirou, acostumado ao jeito da amiga. Pedir para que ela confiasse nele, ou em qualquer outra pessoa, era como pedir a um macaco que comesse peixe ao invés de banana.


Naquela noite, Ygnizem tomou um banho e deitou-se em sua cama, mas não dormiu. Ficou um bom tempo olhando para o teto, pensando, quando percebeu que tudo estava silencioso demais.

Levantou-se da cama e abriu a porta do quarto lentamente, espiando o corredor. Nada. Pegou sua espada do lado da cama e andou até a escadaria, onde também não havia nenhum indício de distúrbio. Mas a espadachim ainda sentia que algo estranho acontecia. Percebia que um instinto assassino permeava a noite.

BAM. Um estrondo estourou a viga de madeira a seu lado, e a moça jogou-se para o lado, protegendo-se do segundo estouro atrás de uma parede.

- Mate-a! – Alguém gritou lá embaixo.

Ygnizem ouviu passos rápidos subindo a escada, e ao mesmo tempo, uma flecha zuniu do seu lado para se alojar na cabeça do atirador. Kavach apareceu ao seu lado, protegendo-se de mais uma saraivada de tiros.

- O que diabos está acontecendo?

- Eu não sei! – Ygnizem disse, aproveitando a pausa para recarga do inimigo para correr pelas escadas e investir sobre ele.

O homem gritou, caindo com um grande corte em sua barriga, mas a espadachim havia sido descuidada. Ouviu uma arma engatilhar atrás dela.

Ygnizem viu o cano da arma apontado para sua testa. Vou morrer, foi o que passou por sua cabeça. Mas o homem gorgolejou sangue, e caiu antes que atirasse.

- O que seria de vocês sem mim, hã? – Wickebain exclamou, retirando suas adagas da carne do moribundo.

Ygnizem acordou de repente do susto, golpeando com o punho da espada o homem que vinha por suas costas tentando imobilizá-la. Wickebain defendeu o golpe de outro, lhe desferindo um chute no estômago que jogou o homem por sobre uma mesa, virando-a com grande estardalhaço. Kavach chutou a estranha arma que ele possuía para longe de seu alcance, apontando-lhe uma flecha.

- Parado.

Erend chegava correndo pelas escadas, enquanto Ygnizem pegava a arma que girou para perto dela. Os cinco invasores estavam mortos ou imobilizados.

- Isso é uma arma de Schwartzwald. – Ygnizem retirou a parte de baixo da estranha arma, derrubando balas no chão. – Uma pistola.

- Como você sabe?

- Meu pai era de lá.

- Hmm – Wickebain murmurou, pegando uma bala do chão e examinando com curiosidade.

- O que essa gente estava fazendo aqui? – Kavach observava os corpos. - É um longo caminho de Schwartzwald até Prontera.

- Não sei – Ygnizem disse, pensativa. Era impossível que soubessem que era filha de Seniar. Devia ser pura coincidência.

- Eles estavam levando tudo! – O estalajadeiro finalmente exclamou, ainda abalado com o tiroteio e o sangue. Ele estivera o tempo todo escondido atrás do balcão.

- Um assalto, apenas – Erend falou, como se tivesse lido os pensamentos de Ygnizem. O noviço começou a fechar os olhos dos mortos e rezar por suas almas. Kavach prendia os ainda vivos para que não fugissem até que os guardas ali chegassem.

Ygnizem virou-se para Wickebain, as duas ainda com suas roupas de dormir. A ladina estava ensanguentada, mas o sangue não era seu.

- Boa luta, aliás.

- Igualmente.

As duas moças sorriram. Mal sabia que começariam uma amizade que as acompanharia até a morte.