Abri os olhos com o raiar do sol ofuscante incidindo sobre as minhas pálpebras. A dor cessou.
Tudo estava mais claro, mais nítido, ao abrir os olhos observando o presente acabei por me aperceber que todo o meu passado era baseado em meras recordações que estavam agora foscas, completamente desfocadas. A dor tinha sido agoniante, pior que tudo que alguma vez havia imaginado. Era impossível descreve-la. Impossível.
Mas uma coisa, eu, conseguia dizer. O que eu preferia naquele momento, naquele momento de dor.
Acho que ter os pulmões a queimar por mais ar, enquanto te estás a afogar; a agonia de acordar dentro de caixão e estar a aterrorizada sabendo que vais morrer estando sufocando a cada segundo que passa; embebendo-te em ácido; dilacerando-te a pouco e pouco; passando-te com um ferro a ferver em cima calmamente; ou acorrentando-te á maior e mais dolorosa fogueira de todos os tempos não era suficiente para descrever aquela dor. Claro que não. Nem tudo junto era um terço daquilo que eu havia sentido. Só desejava realmente morrer.
Tinha perdido a noção do espaço e do tempo.
Olhei para o meu relógio de pulso. "17 De Outubro de 2003 - 19.38 H"
Haviam passado 3 dias desde que eu estava inconsciente, desde que eu estava naquele sono de morte. Apesar de tudo não me tinha surpreendido. Ou tinha? Talvez fosse cedo, pensei ter passado uma eternidade sentindo a cada segundo que o relógio avançava, a dor pormenorizada, aquela dor que me queimava por dentro.
Além disso não me lembrava muito do que na realidade se tinha passado.
Olhei, observando o cenário á minha volta, era-me familiar mas definitivamente nunca aqui tinha estado antes!
Era tudo realmente belo, mesmo muito bonito e acolhedor.
Já se sentiam as gotas de orvalho a cair, considerava que devia estar um frio de rachar mas não me fazia diferença nenhuma, estava óptima e os meus sentidos nunca em toda a minha vida tinham estado tão apurados, eu conseguia ver, ouvir, sentir e cheirar tudo na maior perfeição. Parecia que as gotas de orvalho desciam em cámara lenta do céu até ao local onde eu estava, era tudo tão perfeito.
Esta clareira era magnífica! As árvores a rodearem tudo em plena simetria, o vento cortava a minha cara da mesma maneira que embalava as folhas em tons de Outono, fazendo-as dançar ou mesmo cair acompanhando e completando a outra manta de folhas que cobria o chão húmido.
Haviam vários caminhos pelo interior das árvores alguns deles eram entrecortados por um fino riacho feito de águas claras e limpidas, a uns bons metros de distância eu conseguia ver bem minúsculos grãos de pólen a flutuar, descendo ás águas do pequeno riacho. O musgo de um verde vivo e brilhante predominava incrustado nos troncos de árvores espalhados por todos os lados, era tudo tão belo. Começou a chover ligeiramente.
Das duas, uma, ou eu estava a sonhar ou eu estava morta e finalmente tinha encontrado o paraíso. O meu paraíso pessoal.
Um perfume fresco invadiu as minhas narinas e rapidamente me levantei num salto.
- Wow! Que foi isto? - Perguntei-me
Nem sequer tinha pensado em me levantar e já estava de pé . Foi tudo demasiado rápido. Algo se estava a passar e eu não tinha a mínima ideia do que era, estava muito, muito confusa. O vento passou como um raio fazendo esvoaçar o meu cabelo e trazendo aquele perfume consigo, um cheiro delicioso.
Aquele cheiro delicioso que me fez rasgar a garganta.
Lembrei-me que já não comia nem bebia nada há três dias, durante o meu estado de inconsciência, desde que me tinha mandado daquele penhasco.
Só tinha recordações a passar na minha cabeça atrav és de um vidro baço, muito fosco. Mas eu sabia que eram reais. Eu sentia-o.
Aquele vulto me suportando em seus braços gelados e fortes, sugando-me da água que, eu, já tinha a certeza que me tinha levado para todo o sempre.
A minha mente me havia proibido de acessar a outros dados, pós salto. Talvez fosse demais para uma só pessoa. Fui andando lentamente por entre as árvores, não sabia bem o que fazer ou para onde ir, mas também pouco me interessava no momento.
Avistei uma queda de água, a poucos metros daqui, precisava de beber água e tomar um banho, estava-me a sentir suja.
Continuei o meu percurso, novamente com calma, afinal não estava com pressa e assim podia ir a apreciar a paisagem, que era a mais bonita que os meus olhos inocentes alguma vez tinham visto.
Minutos mais tarde tinha chegado á cascata, mais uma ilusão maravilhosa no meio de todo este cenário magnificente. Estava a anoitecer mas apesar disso a minha visão continuava da mesma maneira apurada de quando estava com a claridade da luz do dia. Apesar de não ter estado sol, esteve um dia simples, claro, limpo e sempre muito bonito e fresco.
Tirei a roupa, deixando somente a roupa interior e entrei para aquela cascata inundada de vida.
A temperatura da água não se diferenciava com a da minha pele, mas não podia estar morna, muito menos quente, estávamos em pleno Outono e durante a noite quase fechada.
Não tinha noção do quente e do frio, eu devia estar doente, quase de certeza.
Banhei-me nas águas calmas durante praí uma hora ou mais. Pouca diferença fazia do tempo que perdia agora que não tinha o que fazer nem para onde ir.
Estava convicta que deveria estar morta, era a única explicação.
Talvez eu agora tivesse encontrado a minha própria felicidade. Por muita diferença que fizesse da dos outros, esta era a minha. Só me faltava uma coisa, aquilo que eu mais queria, o meu motivo de estar aqui neste momento, o meu irmão mais novo que nunca cheguei a conhecer e que sempre amei.
*FLASHBACK*
- Charlie, acabou-se não vamos ficar com a criança e ponto final! - Acordei com os gritos da minha mãe vindos do corredor do outro lado da porta do meu quarto.
-Calma Renée! Não devemos tomar conclusões precipitadas! É assim tão grave o bebé ter um cromossoma a mais?
-Não venhas com facilidades para cima de mim! O Dr. Wilson disse que o bebé não vai ser uma criança como as outras, vai ter deficiências e não temos condições para cuidar de uma criança com graves problemas como estes!
-Deve haver uma maneira... - A minha vontade era sair do quarto a correr e suplicar minha mãe para não ser tão desumana, mas mantive-me quieta como se ainda continuasse a dormir.
-Charlie, não temos tempo nem muito menos condições já te disse. Não há volta a dar. Podemos ter empregos fixos, mas são salários muito baixos. Não dá .
- É essa a tua decisão final?
-Sim.
-E a Bella?
-A Bella por mim não vai saber que alguma vez pode ter um irmão, é melhor para ela e para todos. Ela ainda é uma criança.
-E o que tencionas fazer com o bebé ?
- Com quatro meses já tem um coração a bater, nunca poderia assassinar um ser humano. Vamos dá-lo para adopção. - Notava o tom de sofrimento na voz da minha mãe, podia ter só 8 anos mas eu compreendia bem o que se passava.
-Se assim queres, assim será . - Sim, esta foi a palavra final do meu pai.
*FIM DO FLASHBACK*
Nunca mais ouvi uma palavra deles sobre esse assunto até á 4 dias atrás. Passados 10 anos a minha boca esteve fechada até que a costura rebentou. Eu explodi por dentro, completamente. Eles não sabem o que foi passar 18 anos de solidão, sem ter com quem falar, com quem desabafar, sem saber a quem pedir um conselho. A minha vida não era nada fácil. Raramente via o meu pai sempre ocupado com assuntos policiais, de trabalho. A minha mãe na minha infância pouco carinho me deu, sempre ocupada com "O Espigueiro" - a creche dela; a tomar conta dos filhos dos outros.
Amigos? Eu? Não é uma pergunta considerável, o mais próximo disso era a minha prima Ângela que via uma vez de dois em dois anos, com sorte. Já não aguentava mais atirei-me de um penhasco, foi uma sensação incrível.
Eu pensei brevemente nos cliches, de como devia ver a minha vida a passar na frente dos meus olhos, eu não tinha vontade de lutar. Era tudo tão claro, quase mais definido do que qualquer memória. Os meus ouvidos estavam cheios da água gelada. Mesmo com os meus pulmões a queimar por mais ar e com as minhas pernas congeladas pela água fria, eu estava feliz. Eu havia-me esquecido do que era a verdadeira felicidade. Felicidade. Isso fazia toda a coisa de estar a morrer ser bem suportável. A corrente ganhou nesse momento, lançou-me abruptamente contra alguma coisa dura, talvez uma rocha invisível na escuridão.
E agora estou aqui, sem saber como. Eu digo e repito, estou provavelmente morta e achei o paraíso. Visto que é tudo tão bonito, e arejado.
Levantei-me da rocha em que me tinha sentado, acabado por ter ficado seca e vesti-me.
Estava tudo muito claro apesar de o dia ter acabado, o céu estava iluminado. A lua estava grande, redonda e iluminava toda a escuridão que a noite pudesse causar. As pequenas estrelas acompanhavam a luminosidade da lua, parecia que dançavam á volta dela. Era a lua cheia mais bonita que tinha visto, parecia tão brilhante, tão pura quase que nos reflectia. Era um espelho da alma, demonstrava ser tão forte e era tão frágil como um pequeno vidro que pudesse partir a qualquer toque de uma mão delicada, era como eu. Uma lua de vidro.
Estava com sede, tentei beber a água da nascente perto da cascata mas não acalmou o calor na minha garganta. Ela continuava a arder como o fogo em álcool.
Continuei o meu caminho para o nada, com os pensamentos a boiar na mente.
Mais uma vez na minha vida eu estava sozinha. Mas aonde? Se eu estivesse viva, como que eu ia conseguir sobreviver? Da pesca? Definitivamente não. Caça? Se tentasse era um outro suicídio. Não queria passar por tudo outra vez, e desta vez não ia escapar.
Achei estranho mas não estava cansada, muito pelo contrário estava bem desperta. Mas eu tinha que dormir ou amanhã ia perder o dia para tentar arranjar uma saida, e apesar de eu conseguir ver estranhamente a 100%, era sempre uma mais-valia caminhar em pleno dia.
Procurei um sítio para ficar e acabei por me aninhar num manto de folhas que estava perto das rochas junto do riacho que corria pelo meio das árvores. Deitei-me, e fechei os olhos. Tentei adormecer mas o sono não vinha. Estava completamente impossível de adormecer, mas eu não desistia fácil, e além disso tornava-se extremamente agradável o som da água a correr, os mochos transmitiam-se entre si em gritos roucos, que se assemelhavam ao ruído de tecido sendo rasgado mas não era desagradável, muito pelo contrário.
O som do vento tambem se distinguia no meio de todos os outros sons, era muito leve e de certa maneira macio, este transportava poeiras, e folhas iam caindo na infinita floresta coberta de uma pano verde e variadas cores de Outono.
Levantei-me enquanto o dia se levantava comigo, eram cerca de seis horas da manhã , e eu não tinha dormido um segundo que fosse, contudo continuava como se o sono não me fizesse falta alguma, como se fosse desnecessário. Acho que conseguia considerar isso pelo lado positivo.
O cheiro delicioso tinha voltado a invadir o meu ser. Não me aguentei e corri atrás dele. Sem nenhum esforço eu corria a uma velocidade incrível, fiquei parva para a minha vida. Eu corria praticamente velocidade da luz pelo meio das árvores, parecia que ia acabar por embater numa mas não, eu distinguia todos os seus pormenores como se estivesse parada em frente a elas só para as apreciar.
O cheiro estava cada vez mais próximo, e eu sabia que era esse que me ia satisfazer.
Aproximei-me rapidamente até os meus olhos alcançarem a sua fonte.
Eu consegui ver, fiquei chocada.
Era um alpinista, a fonte do delirante cheiro.
Olhei para o chão e deparei-me com uma poça de água que reflectia os meus olhos arregalados e rubros como sangue.
