A dádiva dos deuses
Nota: História escrita para Semana Saint Seiya Lost Canvas, um desafio promovido pela comunidade Saint Seiya Super Fics Journal.
Não podia ficar com ele. Não tinha nem como se alimentar. Depois de seu marido ter sido morto na estrada por bandidos, enquanto transportava mercadorias, infortúnios choveram. O último fora o parto. Como faria para criá-lo? E o pior... ouvira os soldados dizerem que a guerra estava começando, e que a segurança do Santuário seria em breve reforçada; não só para invasores, como também para seus próprios residentes. Desertores seriam decapitados.
Ela não era tão ignorante a ponto de ficar e esperar a guerra. Sabia que, há mais de duzentos anos, todos os servos tinham sido mortos, apesar dos esforços dos cavaleiros. O mais prudente era arriscar-se na deserção. Mas, se fosse capturada, a pena de morte seria estendida ao seu filho.
Precisava encontrar um local deserto. Havia soldados demais circulando e guardando os limites do Santuário. Eles perceberiam. Por muito tempo rondou, procurando o lugar mais seguro. Lembrou-se de uma região cuja entrada era proibida, onde diziam haver um imenso campo de rosas. Contaram-lhe que ali era a morada de um cavaleiro de ouro extremamente benevolente.
O tal campo de rosas não era protegido por nenhum soldado, e qualquer um podia invadi-lo facilmente. Ela teve de segurar a respiração por causa do nauseante perfume das rosas. Andou alguns metros e agachou-se. Nunca se imaginara cometendo tamanho crime. Mas tinha de desertar, e o bebê só diminuía suas chances de sobrevivência.
Num segundo, passou-lhe na mente desistir da ideia. Talvez os servos não fossem atingidos pela guerra. Talvez ela encontrasse um jeito de criar aquele menino, mesmo desempenhando suas obrigações. Se oferecê-lo não fosse um crime...
Tirou do pescoço o velho pingente, presente do marido. O bebê agarrou-se ao cordão, como se o arrancasse das mãos de Átropos. Ela colocou o pequeno no chão, com cuidado, ergueu-se e deu as costas. Agora devia fugir. Tomou impulso e correu, com a sensação de ter saído de casa sem levar tudo que precisava. A ânsia de vômito aumentou, e ela atribuiu o mal-estar ao arrependimento que crescia a cada segundo. Começou a sentir dor de estômago.
Aquilo devia ser um sinal dos deuses. Não. Não devia abandoná-lo. Talvez a guerra não levasse os servos. Ela podia dar um jeito, trabalhar com ele nas costas, implorar pela ajuda de alguém... Havia muitas saídas. Afinal, diziam que um filho era uma dádiva dos deuses.
Parou.
Ofegante, olhou para trás. Não estava muito distante, pois podia ouvir o forte choro do bebê. Ele estava pedindo para viver. Não podia simplesmente abandoná-lo ali, se ele tinha mais vontade de viver do que ela mesma. Começou a voltar, sentindo ainda mais dor. Achara que a dor fora um sinal. Por que, então, ainda a sentia? Se ela já estava arrependida e voltava para dar alento ao filho, por que o mal-estar continuava? Continuou caminhando, achando que melhoraria ao ver o rosto do bebê, mas teve de parar para vomitar. Viu, com assombro, que era sangue.
Toda a força desapareceu das pernas. Golfou mais uma vez, sobre as mãos, uma grotesca massa avermelhada. Tinha a impressão de ter vomitado o próprio estômago. Desabou para o lado, sem compreender. Ela tinha se arrependido... então por quê? A dor no estômago tinha se espalhado para o corpo inteiro. Vomitou pela terceira vez e engasgou-se com o lanço. Não conseguia enxergar direito. E teve certeza: os deuses tinham dado o veredicto.
Enquanto isso, no campo de rosas, Rugonis de Peixes recebia a dádiva dos deuses.
FIM
