24 de agosto
Muito bem. Pode ser que isso seja interessante.
Sim, estou fazendo um diário. Algo que Shun vem me dizendo para fazer já há algum tempo. Mas o motivo de eu ter finalmente aceitado não tem tanto a ver com ele.
Eu estava organizando meu apartamento e comecei a esvaziar umas caixas que tinham muita coisa velha guardada. Estava separando para ver se havia algo que podia jogar fora, porque o espaço aqui é pequeno e eu tenho a incrível capacidade de acumular tralhas que nem sei de onde trago.
Enfim, ao revirar esses pertences antigos, encontrei uma pequena bolsa, velha e surrada.
Consegui reconhecê-la na mesma hora. Era da minha época de aspirante a cavaleiro.
Definitivamente, aquela não foi uma época muito feliz em minha vida e o esperado era que eu tivesse vontade de jogar fora aquela bolsa. Contudo, se há uma coisa que aprendi, ao longo desses meus vinte e nove anos, é que o passado não pode ser descartado. Independente do que ele tenha sido, independente do que ele represente, ele sempre será uma parte minha. E o que sou hoje é reflexo direto de tudo que vivi.
Não sem esforço, consegui aprender isso.
De qualquer jeito, como hoje sou consciente disso, abri a bolsa. Queria ver o que ainda havia guardado lá.
Foi como voltar ao passado. Não foi fácil; sensações excruciantes iam tomando conta de mim à medida que eu ia retirando os objetos ali de dentro.
Porém, o que mais me chamou a atenção foram algumas poucas folhas, amareladas, amassadas, meio rasgadas, até pelo estado em que foram armazenadas. Umas poucas folhas que sobreviveram ao tempo e até mesmo à minha memória.
Estavam no fundo da bolsa. Foram a última coisa que retirei de lá.
Era estranho; enquanto ia desamassando cuidadosamente aqueles papéis, eu sentia uma descarga de energia percorrendo todo o meu corpo. Sentia uma curiosidade crescente, ao mesmo tempo que era envolvido por uma sensação nostálgica. No fundo, eu sabia o que encontraria ali; entretanto, desconhecia o efeito do que as palavras ali registradas causariam em mim.
Não havia muito escrito naquelas folhas. E nem precisava.
Há momentos em que o silêncio pode dizer mais que qualquer palavra. As lacunas deixadas são significativas. Acredito piamente nisso; afinal, tenho o costume de me fazer entender não tanto pelo que digo, mas pelo que deixo de dizer.
Enfim; os papéis que retirei daquela bolsa continham poucas e esparsas palavras. Não vinham dentro de qualquer ordem, não estavam realmente formando um texto coeso ou coerente.
Eram palavras aleatórias? Sim. Desprovidas de significado? Definitivamente não.
Cada uma delas despertou em mim sensações, dores, pensamentos antigos e que descobri ainda muito vivos. Não posso dizer que foi muito agradável passar por todos os sentimentos que me acometeram no momento em que as li, mas admito que foi interessante.
Busco muito o auto-conhecimento. É minha forma de controle. Controle sobre mim mesmo. Sei bem do que sou capaz se não estiver no controle de mim mesmo. E não desejo, nunca mais, regressar àquelas trevas que, no fundo, sei existirem nas profundezas da minha alma.
Como forma de me conhecer um pouco mais, passar por essa experiência foi bem válido. A cada palavra que eu lia, eu era capaz de sentir o que se passava comigo naquele momento. Até porque, convenhamos: o que se deu comigo naquela Ilha eu jamais serei capaz de esquecer. São memórias que ficaram marcadas, literalmente, a ferro e fogo.
Todavia, descobri que essas memórias, apesar de estarem em mim, não eram conscientemente percebidas. Devo ter tentado esquecê-las, em um processo desesperado por que passei, quando abandonei aquela maldita Ilha.
Bom, acabei de revivê-las. Uma avalanche de sentimentos se apoderou de mim, como eu disse. Mas não foi ruim.
É interessante me reencontrar tantos anos depois. Comparar presente e passado, ser capaz de me analisar e conhecer um pouco mais.
Como eu disse, muito válido.
E o mais incrível é que tudo isso foi possível a partir da leitura de palavras soltas, como "Supere", "Resista", "Aguente"...
Algumas delas foram escritas com carvão ou pedras que, umedecidas, riscavam. Eram raras as vezes em que eu tinha um lápis ou algo do tipo à mão. Essas folhas mesmo não me tinham sido fácil de arranjar. Aliás, quem as conseguiu foi Esmeralda, com algum custo. Por isso, evitei pedir a ela novamente. Não queria que ela tivesse problemas por minha culpa...
Mas eu soube fazer aquelas poucas folhas valerem a pena. Eu sentia necessidade de me comunicar e escrever me dava a impressão de ter algum alento, apoio. Expressões como "Você consegue", "Um dia de cada vez" eram lidas por mim e, mesmo sabendo que o autor delas era eu mesmo, sentia algum conforto em ver aquelas letras trêmulas, às vezes enfraquecidas, às vezes nervosas, no papel.
Além disso, nos momentos de tristeza e solidão, aquelas folhas eram também amigas. Os papéis não eram muitos, o espaço era pouco e eu o economizava, por isso, só escrevi a palavra "Saudade" uma vez. Não precisava de mais que isso. Nessa palavra, eu concentrava a saudade que tinha de tudo o que havia deixado para trás. Saudade do meu irmão. Dos meus falecidos pais. Da pequena e curta infância, cada vez mais distante, cada vez mais parecida com um sonho que nunca tinha acontecido.
Saudade de sonhar, saudade de ser capaz de sorrir. Quando escrevi essa palavra, em carvão, eu me recordo bem. Eu me sentia muito só. Uma solidão tão grande que doía.
Esmeralda não podia me acompanhar sempre. Meu antigo mestre não gostaria de vê-la comigo, então nem sempre ela podia estar ao meu lado.
Shun deve achar que minha amiga fez-me companhia o bastante na Ilha da Rainha da Morte, ou o suficiente para eu não enlouquecer naquele lugar.
Eu permito que ele pense assim. Sei que isso faz bem a ele. Além disso, se ele souber da verdade, certamente se sentiria mais culpado. E eu não desejo isso ao meu irmão.
Porém, a verdade é que a solidão foi a minha maior companheira naquele lugar. Esmeralda foi importante, claro. Céus; tudo teria sido ainda pior, ainda mais impossível sem ela. Mas o nosso contato era tão escasso quanto a fertilidade das terras daquele lugar.
Eu fazia companhia a mim mesmo. Aprendi a me adaptar. Aprendi a ser meu próprio suporte e apoio.
As palavras que eu me deixava; eram a elas que eu recorria em momentos de desespero. Não queria afligir Esmeralda quando me via nesse estado. Ela era muito delicada, como uma flor que havia conseguido brotar em meio àquelas terras inóspitas. Eu não poderia jamais confrontá-la com a minha realidade que era bruta, disforme e feia.
Não; isso eu guardei para mim mesmo.
Reconheço que não foi o mais saudável a se fazer. Quando alcancei meu limite, explodi da pior maneira. Mas eu me dou um desconto. Vou aprendendo aos poucos. E, se de tudo por que passo, consigo tirar alguma lição, aceito.
Há palavras naquela folha que já estão ilegíveis. Apagadas devido ao tempo, devido às lágrimas que algumas vezes derramei.
Eu não gostava de chorar. Não só porque meu mestre dizia que lágrimas representavam fraqueza, mas porque eu sempre senti, desde sempre, que não podia chorar.
Quando meus pais morreram e tive de me responsabilizar pelo meu irmão, eu não podia chorar. Era como se as lágrimas fossem a representação concreta do meu medo. Medo que eu sentia. Ora, eu era uma criança! Como podia não ter medo?
No entanto, se eu demonstrasse isso, achava que tirariam Shun de perto de mim. Pensava que tinha de mostrar ser forte, para que acreditassem que eu era capaz de cuidar do meu irmão.
E eu mesmo precisava me convencer de que era capaz; por isso, mesmo quando estava sozinho, evitava chorar. Queria acreditar que era forte; tão forte quanto me mostrava para todos.
Só que naquela Ilha, naquele lugar, houve momentos em que não resisti. Senti tanto ódio de mim mesmo quando me vi incapaz de segurar o choro, que aquelas lágrimas desceram queimando pelo meu rosto. Eu me lembro bem; elas rolavam pela minha face muito ferida e eu limpava-as com pressa, quase com desespero, sentindo vergonha de me ver, a mim mesmo, naquele estado.
Naquela noite, eu escrevi em uma das folhas "Não chore". Hoje, entretanto, o tempo – junto das lágrimas que molharam o papel naquela ocasião, que me recordo de terem borrado a frase razoavelmente – tratou de apagar o "Não", restando apenas a palavra "chore".
Quase sinto vontade de rir diante disso. "Chore". Bem que eu gostaria.
Sei muito bem do quanto é bom e como faz bem chorar, libertar emoções. Escuto isso do Shun, dos meus antigos companheiros de batalhas, ouço de pessoas desconhecidas que opinam demais a respeito de tudo, seja na televisão, no rádio, nos jornais ou revistas... Todos sempre dizem que faz um bem enorme colocar tudo para fora; falando de como esse processo catártico é, até mesmo, saudável.
Não duvido. Deve ser mesmo.
O problema é que eu tenho uma dificuldade imensa em chorar. Simplesmente, não consigo. Já passei por momentos em que eu sabia que deveria chorar, mas não consegui. Acho que alguma coisa ficou travada em mim desde aquela época.
Agora mesmo, nem uma lágrima. Estou conseguindo relembrar tudo isso sem ao menos sentir os olhos úmidos. Até estou tentando me esforçar para ver se sai alguma coisa. Mas nada.
Nem me espanto tanto; naquele período, quando havia bem mais motivos para chorar, eu era capaz de ler e reler essas palavras com os olhos bastante secos.
Como as folhas não eram muitas e eu precisava economizar espaço, muitas vezes, por mais que sentisse vontade, eu não escrevia. Simplesmente lia as já escritas. O efeito era praticamente o mesmo.
Não me é difícil saber as que eu mais lia. Graças às marcas deixadas pelas minhas mãos, sempre sujas de terra e sangue, eu consigo enxergar onde segurava os papéis e rapidamente sou capaz de me ver relendo aquelas palavras, sabendo exatamente qual delas mais me chamava a atenção.
Do modo como coloco, fica parecendo um curioso e interessante episódio de flashback, mas nem é grande coisa. Já li a respeito: quando você executa uma atitude que efetuou, muitas vezes, no passado, é capaz de se lembrar do que fazia e sentia naquele exato momento.
Eu lia muito a palavra "Saudade". O "Não chore" não fica muito atrás...
Interessante como tão pouco é capaz de dizer tanto.
E eu gostei disso. Gostei de voltar a dialogar comigo de novo, como fiz naquela época.
Deixar palavras de mim para mim mesmo. Sim; isso me faz bem.
Por isso, acabei decidindo começar esse "diário". Shun sempre me disse que escrever era bom, que seria uma forma de desabafar. Como ele alega que eu não converso com ninguém, falou que seria bom usar desse método para não me perder dentro de mim mesmo.
Nesse ponto, ele deve ter razão. Sempre achei que conseguia manter-me focado, apesar de ser sempre acometido por tanto pensamentos. Agora, já não sei. É difícil me manter concentrado em uma linha única e fixa de pensamentos.
Eu acho que penso demais.
Também já li sobre isso. Pessoas que falam menos, pensam mais. Algo a ver com o fato de não expressarem tudo verbalmente, então acabam colocando em seus pensamentos tudo aquilo que não dizem.
Eu não me incomodo por pensar demais. Até gosto. É uma espécie de conversa comigo mesmo.
Gosto do silêncio para pensar, refletir. As pessoas, muitas vezes, são barulhentas demais.
Acho que estou parecendo extremamente arrogante. Bem, eu devo ser mesmo. Todavia, devo ressaltar que não me considero tão auto-suficiente a ponto de me julgar superior às outras pessoas – embora, na maior parte das vezes, eu seja mesmo. Sempre fico impressionado em ver como há gente tola nesse mundo. E o pior é que quando penso não ser possível essa gente se superar, eu me deparo com tolices ainda maiores.
Mas não é que eu não precise, vez outra, das palavras de alguém que não seja eu mesmo. Só que, nessas horas, tenho claras preferências por ir direto aonde sei que vou encontrar palavras que realmente me acrescentem.
Adoro ler. Esse é um dos motivos.
Os livros me acrescentam. Ensinam. Confortam.
E tudo em silêncio. Não poderia ser melhor.
Além disso, proporcionam-me fugir. Porque, sim, às vezes, eu sinto que preciso fugir.
Às vezes, sinto não sei o quê, que me faz sentir a urgência de fugir não sei para onde, não sei exatamente de quê ou de quem.
Apenas tenho que escapar.
Minha válvula de escape são os livros que leio, os novos mundos que se descortinam a cada página.
No entanto, não só os mundos artificiais me possibilitam essa segura rota de fuga. O mundo real também me ajuda a fugir desse desconhecido sentimento que, mais frequentemente do que eu gostaria, apodera-se de mim.
Aprendi a encarar este mundo como um lugar incrível, maravilhoso.
Bom que eu acredito nisso, já que quase dei minha vida tantas vezes para salvar tudo isso.
Eu realmente acredito que esse mundo tem muito a oferecer. Os livros que leio me mostram isso. Afinal, por mais artificiais que sejam, as histórias em que mergulho são projeções dessa realidade.
A profissão escolhida por mim também me mostra a beleza disso tudo.
Trabalhar como fotógrafo free-lancer é uma forma de captar esse mundo. É como se, a cada vez que eu tirasse uma foto, a cada imagem aprisionada pela minha lente, eu conseguisse roubar um pouco de toda essa beleza para mim.
Eu necessito disso. Preciso me preencher, preciso trazer, para dentro de mim, um pouco da beleza, da alegria, da vitalidade que existe na natureza e nos livros que leio. Dessa maneira, eu tento descobrir se há um pouco disso em mim mesmo.
Até hoje, não fui bem sucedido.
É engraçado, parando agora para pensar... estou chegando à conclusão de que eu passo minha vida fugindo constantemente de mim. Costumo ler para refugiar meus pensamentos em algum outro lugar que não seja eu mesmo. Trabalho como fotógrafo e acabo de me dar conta de que gosto de tirar fotos porque, observando o mundo que me cerca, dedicando-me a encontrar nele a beleza que muitos são incapazes de enxergar – e que me tornaram um excelente fotógrafo, porque a vida me ensinou perfeitamente como extrair do mais inesperado o que pode haver de mais belo – eu acabo encontrando uma excelente forma de fugir da minha pessoa. Eu me foco no que há fora, na vida dos outros, na realidade dos outros, em tudo aquilo externo a mim.
Vivo a realidade quando estou mais reflexivo. Quando olho para dentro do meu próprio ser.
Porque essa é a minha realidade. O meu mundo sou apenas eu.
É até melhor assim. Não é como se o meu mundo devesse ser compartilhado.
Pensando nisso agora eu até consigo rir. Shun se esforça tanto para se aproximar, para fazer parte. Enquanto isso, aqui estou eu, pensando justamente no quanto é melhor ele se manter afastado.
Mas é melhor mesmo. Para mim, para ele... para as pessoas em geral.
Eu não me vejo mais como uma ameaça. Há tempos sei que não sou.
Contudo, apenas sei que é melhor assim.
A ideia de fazer um diário é interessante. Meu mundo era um pouco desorganizado; colocar tudo por escrito ajuda a deixar tudo mais em ordem.
E eu aqui, querendo arrumar meu apartamento, pensando que isso faria com que a sensação de que algo estava fora do lugar desaparecesse.
Essa sensação está realmente indo embora, mas é porque colocar tantos pensamentos aqui está sendo de muita valia.
No entanto... não vou contar para o Shun. Não, eu não quero compartilhar isso. Se quisesse, tinha aceitado a ideia dele de fazer um blog para desabafar sobre o que se passa comigo.
Eu sei o quanto meu irmão gostaria de me conhecer mais a fundo, mas eu realmente não quero isso. Não; não é boa ideia. Ele não precisa disso, não precisa ter uma visão mais a fundo de mim. Não o ajudaria em nada. Não acrescentaria em nada à nossa relação. Quando muito, pioraria.
Melhor deixá-lo com a imagem que já tem de mim. Sinceramente, não sei que imagem é essa, mas tem funcionado bem todos esses anos, então que continue assim.
Esse diário será apenas para mim. Da mesma forma como ocorreu com as antigas folhas que escrevi nesse passado tão distante e que se fez tão presente hoje. O único leitor de todas essas palavras serei eu.
Quero poder oferecer isso para o meu eu do futuro. Reviver, relembrar. Esse é o meu mundo. É o que eu tenho, não é mesmo? Tenho a mim mesmo, então seria bom cuidar dessas recordações que, no final das contas, compõem quem eu sou. Podem parecer apenas palavras soltas, aleatórias. Mas, no final das contas, elas formam um mosaico que gera a minha identidade.
Sim, definitivamente. Foi uma boa ideia.
Aliás, acho que poderia facilmente atravessar a noite escrevendo aqui. Mas o Shun acabou de chegar.
Acho que ele descobriu que voltei para a cidade.
Eu dei uma sumida de pouco mais de uma semana. Meu aniversário foi semana passada e eu sei que o Shun estava planejando uma festa para mim.
Odeio festas. Odeio ter que interagir. Odeio ter que sorrir quando não sinto vontade.
Sempre encontro um meio de escapar dessas armadilhas sociais em que meu irmão tenta me envolver.
Meu aniversário, esse ano, caiu numa segunda-feira. 15 de agosto. Pensei que isso dificultaria as coisas para o meu irmão, já que seria difícil reunir todas as pessoas logo no início da semana.
Não sei por que ainda me engano. Quando Shun coloca algo na cabeça, não há quem tire essa ideia dele.
Descobri, sem querer, quando o escutei falando em segredo ao celular, sobre a festa-surpresa que ele estava armando para mim. A festa começaria domingo à noite e terminaria pouco depois da meia-noite, ou, ao menos, meia-noite em ponto, para não atrapalhar aqueles que tivessem de acordar cedo na segunda.
Aí, não foi preciso pensar muito. Era sábado à noite quando descobri os planos de Shun. Domingo pela manhã bem cedo eu já estava no meu jipe, indo para qualquer lugar bem longe daqui. Inalcançável.
Imagino que Shun só tenha se dado conta quando eu já estava distante o bastante. Não sei ao certo. Levei o celular, mas o deixei desligado. Foi só por precaução. Checava de vez em quando, vi que tinha várias ligações dele e dos nossos antigos companheiros. Imagino que Shun tenha feito todos eles me ligarem, na esperança de que eu atendesse pelo menos um...
Não atendi ninguém. Não havia por quê. Eu não queria ser encontrado. Simples assim.
Voltei hoje e fiquei no meu apartamento o dia inteiro.
Shun deve ter sentido que voltei. O cosmo dele estava procurando por mim, notei assim que regressei. Não me preocupei em me esconder. Sei que, se sumo por tempo demais, ele se preocupa em demasia. E não é isso que eu quero.
Sei o tempo necessário para desaparecer de modo a não preocupá-lo exageradamente, mas que, ainda assim, permita-me respirar.
Porque eu preciso respirar.
Aqui, eu nem sempre consigo.
Os livros ajudam. São uma lufada de ar nos meus dias.
As fotografias também auxiliam muito. Com elas, é como se eu conseguisse encher meus pulmões em sua capacidade máxima.
E agora eu descubro uma nova forma de continuar respirando...
Ok, preciso terminar por aqui. O Shun entrou, está mexendo nas minhas coisas pela sala e falando comigo sobre amenidades enquanto mexe desinteressadamente nos livros da minha estante. Finge não demonstrar interesse no que estou fazendo, assim como tenta não parecer chateado com meu sumiço. Sei muito bem que, quando ele fica assim, é porque está tentando criar um meio de começar a me dar uma bronca.
Meu irmão é realmente bonzinho demais. Até para se zangar, ele precisa descobrir o melhor momento de começar a brigar com a outra pessoa.
Já imaginava. Ele está indo para a cozinha. Disse que vai me preparar um café. Shun quer me fazer um agrado, para então poder colocar para fora sua frustração comigo. E ele sabe o quanto uma boa caneca cheia de café sempre me faz bem.
Só que eu não gosto do café que o Shun faz. Eu gosto de café forte e bem amargo.
Melhor eu mesmo ir fazer.
Eu devo isso a ele. O mínimo que posso fazer é escutar sobre toda a trabalheira que ele teve para organizar minha festa, em vão.
Enfim... é isso. Não sei se voltarei amanhã. Apesar de ser um diário, não creio que eu vá seguir à risca esse negócio de escrever diariamente.
Não é do meu feitio seguir regras, convenções.
Eu vou escrever quando der vontade. Talvez, fique dias sem aparecer aqui...
Talvez, apareça mais de uma vez ao dia.
Gosto disso. Não preciso me preocupar em corresponder às expectativas dos outros.
Isso é meu. Feito por mim, para mim.
Sem grandes compromissos. Sem grandes pretensões.
Apenas eu comigo mesmo.
E eu me entendo. Não vou me cobrar demais. Ninguém melhor do que eu mesmo para conhecer meus limites...
Olho no meu relógio de pulso. Já passa da meia-noite. Shun também sabe que o melhor momento de discutir qualquer coisa comigo é à noite. Preferencialmente, de madrugada. Eu realmente adoro o silêncio da madrugada.É tão mais fácil ouvir meus próprios pensamentos assim...
Se já passou da meia-noite, é dia 25 de agosto. Como funciona esse negócio de diário, então? Eu troco a data que coloquei lá em cima?
Certo, hora de desligar. Vou deixar como ficou. Shun está impaciente. Gritei daqui que estava indo para a cozinha preparar o café e ele quer saber o porquê da minha demora. Se eu enrolar um pouco mais, em instantes, Shun vai aparecer aqui e vai acabar querendo ler o que tanto escrevo.
Não disse? Lá vem ele...
Fecho por aqui, então.
Câmbio e desligo.
