Capítulo I – A bela e a fera
O vento quente cortava a estrada como se fosse uma navalha. Era difícil manter a montaria no curso certo, já que a todo instante uma nova rajada de poeira dificultava a visão e empurrava-a para a beira da estrada. O sol brilhava impiedoso sobre as planícies desérticas de Durotar, desanimando todos os viajantes que ousavam atravessar aquelas paisagens. Por isso, quando viu os portões de Orgrimmar se erguendo como um gigantesco monumento de aço e ferro no meio daquelas terras alaranjadas, Kassyeh quase chorou de alívio.
A viagem tinha sido mais extenuante que qualquer outra que fizera. Sua falcoztruz, Lola, mal conseguia manter o mesmo ritmo de viagem, também sofrendo os efeitos do calor e das muitas batalhas pelas quais passara. E aninhado em seu colo, tentando não cair da cela a cada golfada do vento, estava seu tigrinho de Hibérnia, Hotch, com certeza o ser que mais sofria com a situação. O coração da elfa sangrenta se apertou. Apesar de também estar ferida e cansada, Kassyeh temia muito mais por Hotch e Lola do que por ela mesma. Por isso, bateu os pés levemente do lado de sua montaria, quase pedindo desculpas por aquele gesto.
- Só mais um pouquinho Lola... – murmurou para a falcoztruz – Estamos chegando...
Lola soltou um piado como se compreendesse o que sua dona dizia e apressou a cavalgada até os portões de Orgrimmar.
Foi uma alegria imensa ver os mesmos rostos de sempre no portão. Era quase como se sentir em casa. Cumprimentou-os mais animada do que realmente estava e eles responderam com entusiasmo. Com certeza o faziam para animar todo viajante que chegava exausto depois de atravessar a planície.
A cidade estava cheia, como sempre. Cidadãos e soldados se misturavam naquele mar feito de areia e aço, cada um seguindo seu próprio caminho, ainda que a bandeira tremulante da Horda acima de suas cabeças lembrasse a todos que, independente do que cada um queria para si, havia algo muito maior pelo que lutar.
Mas não era naquilo que Kassyeh pensava naquele momento. Saiu da rua principal em busca da sua já conhecida hospedaria, pronta para um descanso bem merecido. Logo que chegou do lado do estabelecimento, uma pequena orquisa correu em sua direção, com um sorriso ansioso na face.
- Kassyeh! – exclamou ela – Que bom que você voltou!
A menina era pequena e rechonchuda, com os longos cabelos negros trançados ao redor da cabeça. Suas presas eram delicadas e mal apareciam entre os lábios. Kassyeh sabia que ao se tornar uma soldado, aqueles belos e espessos cabelos seriam cortados fora de um jeito que não atrapalhassem a luta. As orquisas eram bem mais práticas que sua raça nesse aspecto.
- Então Saba, - começou Kassyeh desmontando cuidadosamente com Hotch no colo enquanto passava as rédeas de Lola para a menina – Já entrou na Academia Militar?
- Sim, sim! – respondeu Saba com empolgação – Eu sou a menorzinha da turma, mas já mostrei muito bem que serei uma grande guerreira! – a menina se impregnou quando falou isso – Eu lido melhor com os lobos que todas as outras!
- Ah, isso é muito bom. Então vamos fazer assim: eu lhe dou essa moeda de ouro para você cuidar da Lola e, se você caprichar, deixo você cavalgar ela um pouco.
Os olhos da menina brilharam de emoção ao pegar a moeda dourada. Kassyeh sabia muito bem que a maioria dos que paravam ali jogavam poucos cobres ou nenhum para a menina que sempre se esforça para dar o melhor de si pelos animais que guardava. Com aquela moeda de ouro, Saba poderia comprar um equipamento melhor que suas rivais, quando chegasse a hora. E apesar de adorar dizer que seria guerreira, todos sabiam que a empatia que sentia pelos animais acabaria direcionando a pequena para a profissão de caçadora.
- Muito, muito obrigada Kassyeh! – gritou Saba em sua vozinha aguda – Vou tratar da Lola melhor do que trataria a montaria do Grito Infernal! Vou dar água, comida e limpar todas as penas dela!
- Confio em você, Saba! – disse rindo enquanto a menina desaparecia em direção ao estábulo da hospedaria, onde ficavam as montarias dos viajantes.
Sabendo que Lola estava em ótimas e pequenas mãos, entrou na hospedaria.
Gryshka, a estalajadeira, estava logo no começo da hospedaria, varrendo vários cacos de vidro que se espalhavam pelo chão. Ela levantou a cabeça e sorriu para Kassyeh quando esta entrou.
- Olá querida. – disse Gryshka – O mesmo quarto de sempre?
- Sim, claro! – respondeu mais depressa que o normal, já sonhando com uma cama. A estalajadeira riu.
- Imagino que Saba já esteja com Lola... – comentou a orquisa enquanto procurava uma chave dentro do avental.
- Está. A propósito, sua filha está cada dia mais forte! – se fosse em sua cidade natal, Luaprata, o melhor elogio para uma menina élfica seria primorosa ou encantadora. Entre os orcs, porém, era muito mais elogioso dizer que seus filhos eram fortes ou robustos. Um detalhe que ela aprendeu de uma forma não muito agradável anos atrás.
- Obrigada. – agradeceu a mãe orgulhosa – Aqui está sua chave. E não esqueça a bebida!
Ela pegou a chave, murmurou um agradecimento e foi logo em direção a Morag. O taberneiro, marido de Gryshka e pai de Saba, não precisou perguntar nada. Encheu um copo com um líquido transparente e de cheiro forte e serviu para Kassyeh. A elfa não pensou duas vezes, e entornou o líquido tentando não derramar nada nem fazer careta. Seria uma ofensa. Depois que a bebida desceu rasgando pela garganta, ela agradeceu timidamente e recebeu um sorriso discreto do taberneiro. Era outro costume que ela aprendera em suas idas a Orgrimmar: em todas as hospedarias eles lhe davam aquela bebida logo na chegada. Diziam os orcs que era para relaxar o corpo e ajudar a descansar.
Claro que na pequena elfa aquilo funcionava como um porrete na cabeça.
Quando chegou ao quarto, já quase não se aguentava em pé. O cansaço, as feridas e a bebida já estavam lhe colocando no limite. Porém, ainda teve tempo suficiente de acomodar Hotch numa das cadeiras do quarto, pendurar sua capa no aparador da porta e tirar as botas. Depois disso, caiu na cama, e sem nem mudar de roupa, embarcou num sono profundo.
Acordou muito tempo depois, com Hotch lambendo seu rosto vigorosamente enquanto os primeiros raios da manhã entravam pelas frestas da janela.
- Já acordei, já acordei... – murmurou ainda zonza de sono e afastou o animalzinho de seu rosto – Sei que você está com fome...
Contente por ter acordado sua dona, Hotch ficou placidamente esperando enquanto Kassyeh pegava sua mochila e revirava em busca do petisco preferido dele.
- Aqui – disse tirando um pedaço de queijo e jogando-o para Hotch – Se acalme com isso enquanto tomo banho. Depois comemos mais.
Hotch deu um rugido de aprovação e atacou o queijo. Dirigindo-se ao banheiro, Kassyeh foi tirando a roupa pensando que deveria ter tirado aquele vestido rasgado e sujo de sangue e poeira antes de deitar. Agradecia imensamente a ideia genial que Gryshka tivera em sua hospedaria: providenciar banheiros privados e colocar mimos para todas as raças que passavam pela cidade. Ao lado de uma perfumada loção de banho élfica, havia uma barra verde-esmeralda muito apreciado pelos orcs, um escovão com cerdas bem duras trazidas direto do Penhasco do Trovão, um frasco cheio de ervas que os trolls adoravam e um frasco com um líquido escuro que ela não fazia ideia do que era, mas que os goblins diziam que não viviam sem.
- Acho que os Renegados não são chegados a água... – ponderou pegando a loção de banho.
Os goblins haviam feito muitas mudanças em Orgrimmar e uma delas era o incrível sistema de abastecimento de água que a cidade agora possuía. Antes, dizia Gryshka, era necessário encher e secar banheiras para os hóspedes. Agora, bastava mexer em uma alavanca que chamavam de torneira e a água jorrava em abundância. Em Luaprata era diferente: a água jorrava através das torneiras por magia. Bastava passar a mão no globo de luz e a banheira se enchia imediatamente.
Mas a diferença pouco lhe importava, estava feliz por se ver livre dos resquícios de sua viagem. Embaixo da água que caia como chuva de verão, Kassyeh esfregou o corpo vigorosamente notando que as áreas roxas de sua pele já clareavam. Isso era ótimo, porque a última coisa que queria era que ele se preocupasse.
Será que ele chegaria logo?
Suspirando, terminou seu banho, enrolou-se na toalha felpuda com o nome 'para elfos' e voltou ao quarto.
Não imaginava o que a esperava por lá.
- Ora, ora, quem eu encontro aqui...
Kassyeh pulou de susto, mas reconhecia muito bem aquela voz.
Outra elfa sangrenta estava sentada displicentemente em uma cadeira próxima a mesa onde estavam as coisas de Kassyeh. Ela vestia um corselete de couro de cor púrpura com um longo decote e calças, também de couro, trançadas da cintura até o pé que deixavam entrever mais do que muitos achariam apropriado. Um arco longo e uma aljava de flechas pousavam ao lado de um estranho animal, que parecia a mistura de um lagarto com um bode e um escorpião, totalmente branco e que brincava alegremente com Hotch. A elfa se levantou.
- Luxuriah! – gritou Kassyeh antes de se lançar nos braços da irmã.
O abraço foi mais apertado do que Kassyeh lembrava. Sua irmã com certeza estava muito mais forte do que a última vez que se viram, em Luaprata. Estava muito mais bonita também. Apesar de serem bem parecidas com o mesmo rosto e cor de cabelo, Luxuriah tinha a pele num tom mais escuro que o seu, um corpo bem mais voluptuoso e que fazia jus ao nome que recebera dos pais.
- Você está esquelética. – disse Luxuriah depois de largar a irmã e analisá-la atentamente – Espero que não esteja pulando refeições.
- Ah... – Kassyeh corou e se sentiu envergonhada – Às vezes a viagem não permite... Você sabe...
Luxuriah a encarou com aquele olhar penetrante que fazia Kassyeh se sentir a elfa mais culpada de Azeroth. Como irmã mais velha, Luxuriah sempre fizera questão de cuidar das irmãs mais novas com um zelo que nem mesmo uma mãe taurena teria. E sabia meter medo melhor que muito Renegado que existia por aí.
- Você não deve descuidar de sua alimentação. – disse Luxuriah em tom firme e se dirigindo para o vestido que a irmã deixara no chão do quarto – Nem com seus equipamentos. Kassyeh! – exclamou depois de dar uma olhada melhor – Isso está um lixo! Como você sobreviveu?!
- Não está tão mal assim... – disse na defensiva, mas sabia que a irmã tinha razão.
Suas vestes não passavam por um conserto há muito tempo e as costuras já soltavam. Estava tão deteriorado que se podiam ver os raios fracos de magia passando de um fio para o outro. Seu cajado também não estava num estado bom. A lua prateada que sempre fora brilhante estava piscando sem energia, e um dos adornos já caíra. Suas botas e luvas estavam em frangalhos. A capa praticamente não existia mais e o cinto estava com a fivela precariamente pendurada ao tecido.
- Por que não consertou logo? – inquiriu Luxuriah com a preocupação estampada na face.
- Queria chegar logo aqui. – respondeu sem pensar e se arrependeu sinceramente depois.
Luxuriah franziu o rosto.
- Ah, claro! Tinha que ser culpa dele! – esbravejou assustando seu ajudante lagarto e Hotch, que correu para debaixo da cama.
- Claro que não! – retrucou Kassyeh fervorosamente – Eu queria descansar e evitei qualquer conflito quando meus equipamentos ficaram ruins!
Desejava ardentemente que a irmã se convencesse, mas não foi o que ocorreu.
- Então porque aqui? – continuou a outra segurando a roupa da irmã como se fosse ela a culpada de tudo – Por que não voltou a Luaprata?!
- Eu gosto daqui!
Para sua surpresa a irmã caiu em uma gargalhada.
- Kassyeh! Eu te conheço! Eu praticamente te criei! Eu sei que você está aqui esperando por ele!
Kassyeh sentiu o rosto corar. Ambas sabiam que aquela era, pelo menos, uma parte da verdade.
- E se for? – falou em voz de desafio – Qual o problema?!
- Ele é um orc! – exclamou a outra com o rosto em fúria.
Kassyeh se ressentiu pela forma como Luxuriah dissera aquela frase. Parecia estar se referindo a um monstro, ou pior, a um humano. Era como se tivesse cometendo o maior crime do mundo. Mas não era assim. Ele poderia ser um orc, mas era uma das melhores criaturas que Kassyeh já conhecera na vida. E se apaixonar por ele nunca estivera em seus planos. Quem imaginaria que aquela pequena elfa, quieta, que passava dias e dias lendo os livros de magia e treinando em meio às moreias de mana iria se interessar por um imenso orc guerreiro? E mais improvável ainda, qual a chance de ele também se interessar por alguém tão diferente? E mesmo assim acontecera. E por isso nunca gostara da forma como ele era visto por sua irmã.
- Luxuriah... – disse mantendo a voz calma – Você tem que aceitar isso. Eu não vou desistir dele. É a mesma coisa sempre, mas entenda que não desisti antes, e não desistirei agora.
A elfa comprimiu os lábios, descontente com o que ouvira. Só que não pretendia se conformar.
- Que tipo de futuro vocês tem hein? – inquiriu - Casar e ter filhos? – completou com tom de zombaria.
Foi um golpe baixo. Luxuriah sabia que o sonho de Kassyeh sempre fora ter muitos bebês, tantos quanto fosse possível. Amava crianças. Tocar naquele ponto a deixou irritada.
Durante um breve momento, Kassyeh ficou em silêncio. Por um momento, Luxuriah pensou que depois desses anos conseguira chegar ao ponto crucial para sua irmã. Sempre evitara tocar naquele ponto, mas agora era diferente. Precisava levá-la de volta a Luaprata.
Por fim, Kassyeh falou com a voz impregnada de toda a candura que a elfa possuía:
- Eu não me importo com isso. – admitiu por fim - Não me importo. Só quero ficar com ele.
Estava muito mais grave do que a caçadora supunha. E riu desdenhosamente do que acabara de ouvir.
- E por isso você entrou nessa vida não é? – continuou - Enfrenta perigos, atravessa o oceano, bate de frente com a Aliança, para quê? Por que ele enfiou isso em sua cabeça!
Foi a vez de Kassyeh rir.
- Claro, como se você nunca tivesse feito nada perigoso!
- É diferente Kassyeh! – disse exasperada - Eu faço isso por você e pelas meninas! Vocês não precisam sair pelo mundo correndo perigo! Você deveria ficar em Luaprata! Lá é o seu lugar! Lá é seguro!
Sem acreditar no que ouvia, Kassyeh encarou a irmã antes de falar suavemente:
- Você melhor que ninguém deveria saber que Luaprata não é tão segura assim.
Houve um momento de um silêncio pesado e profundo. Kassyeh sabia que tinha passado dos limites, sabia que o que dissera causara uma dor enorme no peito da irmã. Enquanto o remorso corroia seu coração, viu Luxuriah dobrar cuidadosamente seu vestido e por numa de suas mochilas. Ela não a olhou quando falou com a voz baixa, porém firme:
- Estarei lhe esperando lá embaixo.
E saiu.
Kassyeh sentou na cama e deixou que as lágrimas lavassem seu rosto. Não deveria ter dito aquilo. Sabia o quanto tudo machucava Luxuriah. Sua raiva nunca poderia ser motivo para magoar a pessoa que ela mais amava no mundo. A irmã fora seu mundo e o das irmãzinhas menores desde sempre e sabia que tudo que ela dizia era pensando em seu bem, ainda que exagerasse. Por isso, vestiu-se rapidamente com um de seus vestidos de linho simples, calçou uma sandália de couro confortável, pegou todos seus equipamentos e, chamando Hotch, saiu do quarto e se dirigiu ao andar de baixo.
A irmã estava muito bem sentada na esteira no chão, do lado oposto a um tauren visivelmente embriagado. Quando o tauren começou a fazer propostas para lá de indecentes a Luxuriah, o estalajadeiro o colocou para fora a pontapés. O motivo da expulsão não era sua hóspede, que não parecia ter notado a existência do tauren em questão, mas da menina orquisa que brincava alegremente com o lagarto de Luxuriah.
- Oi Kassyeh! – exclamou Saba – Viu aquele tauren boca-suja? Minha mãe disse que se eu repetisse uma palavra só daquelas, ela me mandava pra Ventobravo!
- Nossa, então é melhor ficar de boca fechada! – exclamou Kassyeh fingindo medo.
- Sim, sim! Nunca falarei nada daquilo! – e vendo por cima do ombro que a mãe não estava prestando atenção, murmurou – Mas que foi engraçado, foi!
As duas caíram na risada enquanto Kassyeh se sentava em frente à irmã, na esteira de palha e se acomodava na mesa pequena. Luxuriah bebia uma taça de vinho e parecia mais interessada em seus dedos que na presença da outra.
- Desculpa... – murmurou Kassyeh depois de um instante de silêncio – Eu não deveria ter falado aquilo.
- Tudo bem. – respondeu a outra. – Também não deveria ter falado dos bebês. Talvez você tenha elfinhos-orc no futuro. – disse irônica – Uma nova raça em Azeroth.
Kassyeh tentou encará-la, mas a irmã ainda olhava para os dedos.
- Você está com raiva de mim.
- Não, não estou.
- Está! – insistiu Kassyeh.
Luxuriah finalmente a encarou. E o que ela viu não foi raiva, mas uma tristeza que não soube definir muito bem.
- Você sabe que eu nunca fico com raiva de você. – e revirando os olhos acrescentou – Fico com raiva daquele orc!
Kassyeh suspirou. Voltaram ao velho ponto de sempre.
- Você não gosta de orcs, Luxuriah? – perguntou Saba que estivera vendo a cena.
- Claro que gosto! – respondeu Luxuriah rapidamente dando um belo sorriso pra menina – Não gosto de um orc específico.
- Sei de quem. – Saba soltou uma risadinha - O namorado da Kassyeh!
Não teve como conter a risada diante do comentário da menina. A forma que ela falara tinha sido tão engraçada, que todo o clima tenso se dispersou. Era praticamente impossível ficar com raiva perto de Saba e Kassyeh agradecia muito a presença da menina que visivelmente relaxava Luxuriah.
- Não incomode as hóspedes Saba! – ralhou Gryshka servindo duas tigelas fumegantes de um cozido com um cheiro apetitoso à mesa das elfas – Elas estão com fome e querem comer em paz!
- Tudo bem Gryshka. – disse Kassyeh sorrindo – Adoramos Saba. Ela pode ficar.
Saba abriu um sorriso imenso, mas a mãe foi irredutível.
- Vá por água pros animais! – ordenou acrescentando um prato cheio de pães à mesa.
Resmungando, Saba se retirou da hospedaria. Luxuriah fez um gesto para seu lagarto ir junto e ele obedeceu rapidamente. Aparentemente o bicho também adorava a pequena orquisa. Hotch até iria também, se não estivesse mais interessado no prato de sua dona que tentava alcançar com as patinhas em cima da mesa.
- Calma! – ralhou com Hotch – Eu ponho pra você!
Abriu um dos pães e pôs bastante cozinho e serviu ao animalzinho. Quando voltou a atenção para sua irmã, viu que ela olhava a tigela com uma expressão estranha, como se ponderasse se deveria comer ou não.
- Qual o problema? – perguntou Kassyeh pegando outro pão.
- O que é isso? – perguntou apontando para a refeição.
- Cozido de javali. – respondeu a outra.
Luxuriah fez uma careta.
- Ah Luxuriah! É bom! Leva javali, ovo de pinote e creme de leite de zevra. Tem folha-prata e erva telúrica e também pimenta-do-mato. É uma delícia! Prove! Sabia que o próprio Grito Infernal vem comer às vezes aqui só pra provar desse prato?
A outra parecia não se convencer.
- E esse pão? – disse pegando um pão – É escuro...
- Trigo selvagem. – informou Kassyeh – Muito saudável. Vem lá da terra dos taurens.
- Você parece bem inteirada da comida daqui. – alfinetou Luxuriah.
- Porque diferente de certos elfos eu consigo comer coisas além de pão de centeio-lunar e néctar doce. – devolveu Kassyeh.
Elas riram. Era bom estar juntas de novo. A discussão de instantes atrás já parecia esquecida.
- Certo, certo, vou experimentar. – decidiu Luxuriah – Cadê a colher?
Kassyeh balançou a cabeça, incrédula.
- Irmã, você já viajou bem mais que eu e não aprendeu os costumes dos outros povos da Horda? Os orcs não usam talheres. Eles comem com as mãos ou usam o pão. Veja.
Pegou um pedaço de pão e mergulhou na tigela. Trouxe uma boa quantidade de carne e verduras junta ao pão e comeu graciosamente. Vendo que não tinha jeito, Luxuriah seguiu a irmã. Comeram alguns momentos em silêncio, enquanto matavam a fome mais imediata e Kassyeh percebeu que a irmã não reclamou um só momento da comida.
- Está bom? – perguntou.
- Comestível. – retrucou a outra.
Ou seja, na cabeça da elfa caçadora a comida estava ótima, mas como era feita em Orgrimmar, cidade que no momento Luxuriah odiava por ser a terra natal do orc que em sua concepção tirara a irmã da segurança do lar, não iria admitir que tinha gostado, mesmo que fosse a melhor coisa que já provara na vida.
Sabendo que tinha que começar uma conversa leve para tirar o foco dos motivos de sua estadia na capital da Horda, Kassyeh perguntou sobre algo que deixava ambas felizes.
- E as meninas? – quis saber ansiosa – Como estão?
Elas tinham duas irmãs mais novas. Na ordem de nascimento Luxuriah e Kassyeh eram mais velhas, com poucos anos de diferença entre as duas. Depois, vinham Ashrial e Karensky, respectivamente. Enquanto as mais velhas tinham traços mais perecidos com o pai, com os cabelos escuros, as meninas mais novas tinham os cabelos loiros da mãe. Ashrial adorava caçar com Luxuriah, e tinha uma habilidade muito boa com o arco, enquanto Karensky sempre se identificara mais com Kassyeh, no amor pelos livros e pelo herborismo. Sentia muita falta de ambas e lembrava que tinha prometido à caçula levá-la na Feira de Negraluna assim que ela tivesse idade suficiente de viajar.
- Ashrial saiu de casa. – respondeu Luxuriah secamente.
O susto foi tão grande que Kassyeh deixou seu pedaço de pão com cozido cair no chão que logo foi abocanhado por Hotch. O tigrinho já devorara sua porção, mas não parecia satisfeito.
- E você deixou? – perguntou chocada.
Luxuriah lançou um daqueles seus olhares penetrantes.
- Depois que ela viu você saindo, que moral eu tinha para impedir?
- Ei, ei! – protestou – A culpa não é minha! Eu nunca incentivei nada! Caso você não lembre, quem a ensinou a atirar com o arco foi você! E Ash sempre disse que iria antes mesmo de eu ter essa ideia!
- Mas quando eu tentei impedir, ela citou você! – e afinando a voz imitou – "Se Kass foi, eu vou também!".
Não pode evitar sentir um pouco de orgulho. Sempre soubera da vontade de Ashrial em sair pelo mundo e viver as mesmas aventuras que Luxuriah chegava contando. Sabia que seu momento de rebeldia quando saíra de Luaprata facilitou a saída da outra, mas não deixava de compartilhar a preocupação da primogênita pelo bem-estar da menor.
- Onde ela está agora? – quis saber.
- Terra Fantasma. – respondeu Luxuriah franzindo o cenho – Está aprimorando a pontaria e ajudando a acabar com aquela mácula em nossas terras.
O Flagelo ainda afligia os elfos sangrentos e todo cuidado era pouco para que os mortos-vivos não entrassem em suas terras.
- Bem, pelo menos Karen não ficou totalmente sozinha. Com quem ela fica quando Ash não está lá?
- No templo. A sacerdotisa está dando aulas a ela.
Agora o mau humor de Luxuriah estava muito bem explicado. As irmãs que ela passara a vida protegendo estavam abrindo suas asas e voando. Aquilo a deixava desnorteada. Com certeza esse fora o motivo dela estar em Orgrimmar. Se não podia protegê-la, pelo menos se certificaria que estava bem. Kassyeh sentiu-se mal por estar causando aquela tristeza e sabia que as irmãs menores também o sentiam. Por isso, pegou a mão da irmã e apertou forte, olhando-a dentro dos olhos, como se quisesse se certificar que ela entendesse seu amor.
- Nós vamos ficar bem Lux. – disse suavemente – Sei que não era isso que você queria para nós, mas entenda. Queremos ser um pouco como você é, e como papai e mamãe foram.
Por um momento Kassyeh pensou ter visto lágrimas se formando nos olhos da outra, mas Luxuriah recuperou sua compostura no mesmo instante.
- Tudo bem, tudo bem. – disse retirando a mão – Mas ainda acho Tewdric uma péssima escolha para você!
Durante três dias Kassyeh apresentou Orgrimmar para a irmã. Luxuriah era uma aventureira muito mais experiente que ela, mas conhecia muito mais os Reinos do Leste que Kalimdor. Em Orgrimmar só estivera antes uma única vez e fora de passagem. Mesmo assim, todos pareciam conhecê-la. Como saíra de casa cedo para sustentar as irmãs, Luxuriah já possuía uma fama consideravelmente alta na Horda. Já tinha lutado até mesmo ao lado de Thrall e também de Garrosh Grito Infernal, apesar de não gostar de gabar-se disso.
Por isso, as andanças pela capital rendiam a Kassyeh muitos momentos engraçados ao ver conhecidos de sua irmã cumprimentá-la alegremente por, além de ser uma lenda, ser cunhada de outra. Tewdric tinha uma fama tão grande quanto a de Luxuriah e isso a deixava irritada. Não pelo reconhecimento que ele tinha, mas pelo fato de todos se referirem a Kassyeh como namorada dele.
- Fama é pré-requisito para ser membro da família? – gracejara um elfo sangrento conhecido de ambas que aportara por lá dois dias depois de Luxuriah – Em Luaprata só se fala de Tewdric, o orc famoso namorado da Kassyeh.
- Cala a boca agora... – sibilou Luxuriah – Se não quiser ficar sem língua.
Depois disso ele não aparecera mais na frente delas.
As andanças pela cidade também rendera muita negociação com os goblins. O estado dos equipamentos de Kassyeh os horrorizava e eles exigiam um preço absurdo pelo conserto. Depois de visitar mais de cinco estabelecimentos diferentes, conseguiram um preço que acharam justo pelo serviço.
- Depois dessa nunca mais deixo isso acontecer... – murmurou Kassyeh desolada.
Luxuriah limitou-se a dar um sorriso do tipo 'eu sempre tenho razão'.
No final dos três dias, vendo que a irmã estava realmente bem e decidida a ficar por ali, Luxuriah deu de ombros.
- Tenho que ir. – disse afinal – Mas volto logo. Tenho umas coisas para resolver no Penhasco do Trovão.
- Que coisas? – quis saber a outra.
- Coisas que me pediram sigilo. – respondeu enigmática – Volto em alguns dias. E depois mocinha, te levo para passar uns dias em casa. As meninas estão com saudades e elas devem ser mais importantes que aquele orc!
Kassyeh riu.
- Está certo, quando você voltar, vou passar uns dias em casa.
Satisfeita, Luxuriah deu um beijo na testa da irmã, montou em sua mantícora e acenou para Saba antes de levantar voo.
Apesar de saber que a irmã estava indo para um lugar amigo, Kassyeh não pode deixar de sentir um aperto no coração. Alguma coisa na expressão de Luxuriah lhe dizia que alguma coisa estava errada. Sabia muito bem que não era qualquer missão que tirava aquela elfa de Luaprata, principalmente agora que Ash estava na Terra Fantasma. Devia ser algo muito forte para que ela deixasse Karen aos cuidados da sacerdotisa e cruzado o oceano. E esse motivo não era somente Kassyeh.
Essa preocupação continuou nos dias seguintes. Enquanto perambulava pela capital, Kassyeh se perguntava o porquê da demora de Tewdric. Tinha enviado uma mensagem para ele dizendo quando estaria ali, e a resposta que obtivera é que ele não demoraria muito. Mesmo que já tivesse esperado muito mais tempo por ele antes desta vez, talvez por causa da visita da irmã, a espera estava muito mais angustiante.
Tentou se distrair levando Saba para passear sempre que podia, negociava as ervas que colhera no caminho e as poções que conseguira preparar com os recursos escassos de cada região pela qual passara. Admirava os itens de elite que resplandeciam nas vitrines goblinas e pensava quando iria vesti-las. Não seria uma má ideia comprar alguns equipamentos novos, ainda que não pudesse usar aqueles que brilhavam maravilhosamente, pois o goblin que ficara encarregado de consertar os seus lhe disse com a voz estridente:
- Claro que ainda não estão prontos! – sua voz também era impaciente – Você viu o estrago que fez neles mocinha? Você devia ser presa por isso!
- Não há realmente nenhuma previsão de quando eles ficaram prontos? – perguntou chorosa.
- Não! E nem haverá enquanto você vier aqui atrapalhar meu trabalho! Agora vai! Vai! – mandou sacudindo os enormes braços em direção à porta.
Saiu desolada da loja com Hotch em seus calcanhares. Parecia que tudo estava dando errado para ela. Caminhou tristemente pelas ruas descendo em direção à hospedaria, pensando que deveria se deitar na cama e continuar esperando. Aquilo a deixava muito irritada! Para completar o dia estava excepcionalmente quente, mesmo para os padrões do deserto de Durotar. Apesar do vestido branco de linho com alças finas que usava, tinha a impressão que iria torrar se ficasse um pouco mais de tempo ao ar livre.
Quando apressou o passo, sentiu o vento se tornar um pouco mais forte que antes. Por um momento se sentiu aliviada com o frescor, até que o vento se tornou em um turbilhão de poeira bem a sua frente. Assustada, deu dois passos em direção a uma parede e procurou um lugar para segurar. Se fosse realmente um redemoinho, estaria com problemas. Mas o vento foi ficando mais fraco, até que o barulho de patas aterrissando chegou aos seus ouvidos. Logo que a poeira baixou, viu a besta dourada com grandes chifres baixar as asas e se inclinar para frente. Seu coração acelerou.
Tewdric chegara.
Os guardas olharam feio para a montaria parada bem no meio da rua estreita. Apesar de não haver nenhuma regra sobre isso, normalmente a guarda desencorajava qualquer pouso no meio de ruas movimentas, incentivando que todo viajante usasse o campo de pouso ou os largos. Mas nenhum deles se atrevia a dizer qualquer coisa ao campeão da Horda.
Um enorme machado foi posto no chão antes do orc descer. Ele era muito maior que qualquer outro orc, mas Kassyeh sempre achara que era muito mais a postura imponente dele que seu tamanho propriamente dito. A armadura negra lhe dava um ar assustador e a expressão sisuda não ajudava a causar uma impressão melhor. Como já tinha visto-o no campo de batalha, sabia muito bem como sua presença afetava qualquer inimigo. Devia ser como ver a morte chegando.
Todavia, quando a viu, ele sorriu. Era o único motivo pelo qual sorria, além das batalhas. Kassyeh não pensou duas vezes. Correu em sua direção e pulou. Ele a segurou no ar pela cintura e a girou, como se fosse uma criança. Rindo alto, ela o abraçou. Tudo que sentira nos dias anteriores sumiu como mágica. Nada mais importava. Ele estava ali.
- E aí? – falou ele com sua voz rouca – Tudo beleza?
- Melhor agora. – disse sorrindo ainda pendurada em seu pescoço – Você demorou.
- Mals pela demora. Muitas coisas pra fazer.
Apesar dos braços fortes de guerreiro, o abraço de Tewdric era gentil. Segurava-a com todo o cuidado, como se tivesse medo de machucá-la. Ambos sabiam que ela não quebrava tão fácil, mas Kassyeh gostava da preocupação.
Hotch começou a rugir nos pés do orc pedindo também um pouco de atenção. A contragosto, Tewdric a pôs no chão e acariciou o pequeno tigre, que ronronou em agradecimento.
- Como você me achou? – perguntou curiosa quando ele pôs o tigre nos braços.
- Pelo cheiro! – disse ele antes de soltar uma risada como se fosse um grunhido – Seu cheiro é inconfundível.
Kassyeh fez uma careta, mas riu também.
- Não sei se fico lisonjeada ou chateada.
- Fique feliz, seu cheiro é o melhor que existe em Azeroth.
Sentindo as bochechas esquentarem, Kassyeh passou as mãos pelo cabelo, encabulada. E enquanto ele provocava Hotch, ela notou que havia algo diferente nele. Algo que não se encaixava.
- Você tem cuidado bem dele. – observou Tewdric ainda brincando com o tigre.
- Claro. Foi um presente seu. – e como se entendesse, Hotch rugiu, insatisfeito – Eu te amo acima disso Hotch, deixe de ser ciumento. – e continuando sua análise, descobriu o que tinha de errado – Você está bem limpo pra quem acabou de chegar de viagem.
Normalmente ele chegava sujo de areia e suor, com o sangue ainda fresco em seu machado e armadura. Só que naquele dia sua indumentária estava brilhante e reluzente, apesar dos inúmeros arranhões que se via.
Tewdric soltou outra risada/grunhido.
- Passei em Morag. – disse – Me ajeitei um bocadinho.
Kassyeh se aproximou e cheirou-o.
- Você passou loção élfica?! – falou surpresa.
Agora era ele quem parecia sem jeito.
- Achei que você fosse gostar. – disse coçando o pescoço como se a armadura o incomodasse.
- Bem, prefiro você cheirando a suor e sangue. – disse seriamente.
E era verdade. Às vezes aquilo lhe parecia meio doentio, mas gostava dele como ele era, um guerreiro. Não entendeu muito bem porque ele fizera aquilo, ela nunca reclamara de seu cheiro.
Diante da resposta dela, Tewdric a pegou pela cintura novamente e aplicou um profundo beijo em sua boca. O contato foi tão intenso que a mente da elfa simplesmente apagou. Era como se a magia mais poderosa passasse pelo seu corpo, fazendo-a se arrepiar completamente. Era impressionante o efeito que aquele orc tinha sobre seu corpo.
- E ainda perguntam porque tô com essa elfa! – disse ele alto, balançando-a pela cintura novamente – Prometo que da próxima vez vou voltar com sangue humano ainda fresco na roupa!
Rindo, Kassyeh deixou que ele a balançasse de um lado para o outro, como se fosse a coisa mais divertida que ele já fizera na vida. E provavelmente ficaria assim por muito tempo se um guarda acanhado não se aproximasse e pedisse com a voz mais delicada que um orc poderia fazer.
- Senhor Tewdric, sua montaria está atrapalhando o fluxo.
Havia uma fileira enorme de orcs, taurens, goblins querendo passar por aquela rua, mas a montaria dourada parecia não ligar a mínima para qualquer um deles, e continuava bloqueado o acesso. Apesar das reclamações baixinhas e murmúrios que ouviam, sabia que ninguém puxaria briga com aquele guerreiro.
- Quer ir para outro lugar? – perguntou Tewdric a ela, ignorando o guarda encabulado.
- Um lugar mais ameno. – pediu Kassyeh.
Pegando-a nos braços, Tewdric a pôs em sua montaria, colocou Hotch em seu colo antes de montar e alçar voo. As ruas de Orgrimmar foram ficando menor, até que eles estavam mais altos que qualquer prédio na cidade. Direcionando a montaria para o sul, o guerreiro a levou para as planícies desérticas de Durotar. Mas aquele lugar inóspito parecia o mais belo, agora que estava com ele. Não sabia ao certo aonde iam, mas pode visualizar o oceano à medida que se aproximavam de um pequeno monte, não muito longe da cidade, com uma frondosa árvore provendo a melhor sombra que Kassyeh já vira na região.
- Nossa! – exclamou ela quando desceu da montaria e viu o oceano abaixo deles – Que lugar lindo!
- Descobri esse monte por acaso. – disse ele dando uma tapinha na montaria, que rugiu e se distanciou – Achei que você ia gostar.
Ela tinha adorado. Sentaram ao pé da árvore e ele tirou um embrulho debaixo da capa. Kassyeh deu um gritinho quando viu o que era.
- Pão de mel! – disse animada pegando a guloseima – Você esteve em Luaprata!
- Rapidamente. – respondeu pegando um alforje de couro claro, onde Kassyeh sabia muito bem que tinha o melhor vinho que os elfos podiam produzir – Dei uma chegada por lá, entreguei uns bagulhos que o Chefe Guerreiro mandou, e dei uma checada nas suas irmãs. Acho que Luxuriah deve aparecer por aqui nos próximos dias, ela tinha saído quando eu cheguei.
Então ele se preocupara em ter notícias das irmãs para lhe dar. Às vezes Kassyeh não sabia como reagir às coisas que Tewdric fazia. Quando ambos se envolveram pela primeira vez, todos os elfos lhe diziam o quanto aquilo era um erro, e quanto ela iria sofrer com a violência inata daquela raça. Só que não fora assim. Alguns indivíduos, mesmo sendo da mesma facção, gostavam de julgar os orcs como monstros. Poucos davam a chance deles mostrarem que não são assim. As mães também amavam seus filhos com o mesmo furor, os machos protegiam suas famílias com a mesma fúria. A seu ver, a aparência era a única coisa que os diferenciavam. Tinham a mesma alma. Os mesmos sentimentos. E não importam o que dissessem seu pensamento não iria mudar.
Sempre soubera que seria difícil. Os costumes eram diferentes. A forma de mostrar o que sentiam também. Os elfos gostavam de proclamar seu amor com baladas e poemas, recitadas ao pôr do sol, tendo como fundo a bela Floresta do Canto Eterno. E apesar disso, quantas histórias sobre mentiras e desilusões amorosas não ouvira? Quantas colegas suas choraram rios de mágoas ao descobrir que toda a cantoria era falsa? Os orcs não diziam; eles agiam. E teve aprender a ver nos gestos o que ele não lhe dizia com palavras. Como também ele aprendeu que, como elfa, às vezes ela precisava ouvir. E dizer.
- Obrigada. – disse com a voz embargada – Por ir ver minhas irmãs.
- Ei! – protestou – Não disse isso pra te ver chorar! – ele sempre se alarmava ao ver lágrimas em seus olhos – Sorria, sorria!
Kassyeh caiu na risada.
- São lágrimas de alegria. – explicou ela limpando os olhos, pois sabia que aquilo o perturbava.
- Nunca vou entender isso de sua raça. – resmungou ele, mais calmo ao ver que nenhuma lágrima desceu. – Se você está triste, chore. Se está feliz, ria. É simples!
- Vou tentar me lembrar disso. – prometeu.
Satisfeito, o orc lhe estendeu o vinho. Kassyeh bebeu com gosto. Era ótimo sentir novamente o gosto da bebida e a suavidade com que ela penetrava no corpo. Era como estar em casa novamente.
- Delicioso. – disse provando mais um pouco – Luxuriah veio aqui antes de você. Ficou alguns dias e foi resolver uns assuntos lá no Penhasco do Trovão.
- Nossa, então eu realmente demorei. – raciocinou ele.
- Demorou. – Kassyeh franziu os olhos, fingindo que estava com raiva – Aposto que não estava com saudade de mim!
Mal terminou a frase e sentiu os braços dele em volta de sua cintura novamente. Tewdric a ergueu e depois a sentou em seu colo, envolvendo o corpo dela em um abraço apertado. O coração da elfa se acelerou da mesma forma que acontecia sempre que o tocava. Não entendia porque ele tinha esse efeito sem eu corpo. Em Luaprata fora inúmeras vezes cortejada, mas nenhum elfo a fizera se sentir daquela forma. Deixou-se ser embalada por ele e sentiu as mãos grandes e calejadas percorrendo seus cabelos.
- Senti sua falta a cada instante. – disse o guerreiro com a sua voz rouca – E seu cabelo está maior.
Kassyeh riu. Aquilo soara como uma reclamação. Certa vez um ally quase a capturara por causa da enorme trança que ela ostentava outrora. Tewdric precisara cortar o cabelo com uma faca para deixá-la escapar. Desde então, Kassyeh o mantinha curto.
- Achei que você não fosse perceber. – admitiu com os olhos fechados, pousando o rosto no peito dele.
Tewdric grunhiu descontente.
- Apenas os humanos não prestam atenção em suas fêmeas.
- Então... – murmurou ela afastando a cabeça do peito dele e o encarando – Eu sou sua fêmea?
A pergunta aparentemente o deixou aturdido.
- Sempre foi! – respondeu resoluto – Pensei que isso tinha ficado claro desde sempre! Você não me considera seu macho?
Pelo tom de voz dele, Kassyeh não sabia se ele estava assustado ou revoltado. Talvez ambos. Por isso tratou de acalmá-lo.
- Sempre te considerei meu. Por isso te dei o sol. – e puxou o cordão que ele mantinha em volta do pescoço, por baixo da armadura.
Os fios eram de prata, por onde passava raios de luz quase imperceptíveis. Um pequeno pingente em formato de sol brilhava levemente. Aquele era o símbolo do enlace em sua raça. E ali havia uma magia suave, porém poderosa. Qualquer coisa que acontecesse a Tewdric, ela sentiria. Como não ele era mago, não fazia sentido ela usar um, pois era um objeto construído com a força arcana do próprio indivíduo.
- Eu sei o que isso significa. E o uso com orgulho. – disse Tewdric segurando o pingente sol – Queria poder lhe dar algo, mas...
- Vocês se enlaçam de outra forma. – completou.
Eles se encararam por um momento. Os olhos verdes dela brilhavam de expectativa. Nunca adentraram naquele assunto. Ele sempre fugia. Kassyeh sabia que não era por não querê-la, era porque não o agradava o que tinha de fazer.
- Eu não posso fazer isso com você! – exclamou dando vazão aos seus pensamentos.
Ele se levantou e a colocou no chão. Parecia que queria raciocinar sem ter o contato da pele dela para lhe provocar.
- Por que não? – quis saber Kassyeh – Você me disse que sou sua fêmea!
- Eu não posso lhe marcar! – disse andando de um lado para o outro e sacudindo os braços - Poderia arrancar sua perna com minhas presas! Eu posso lhe aleijar! Você não entende?
A forma como o orcs demonstravam o seu compromisso nos relacionamentos era bem diferente que os elfos. O macho tinha que marcar sua fêmea. Isso era feito na parte interna da coxa direta da orquisa durante o contato íntimo. Não se podia usar nenhuma poção de cura para fechar o ferimento; a cicatriz deveria permanecer. No máximo, as orquisas usavam um unguento para auxiliar na cicatrização. No orc, a mordida era no peito. Mas como as presas do macho costumavam ser bem maiores, as fêmeas sofriam mais. Em compensação, era um orgulho mostrar a marca por isso logo que assumiam o compromisso, a orquisa passava vários dias usando apenas uma tanga em seus afazeres, tudo para que a marca fosse notada.
Quem lhe contara aquilo era Gryshka. Ela não perguntara se Kassyeh tinha a marca. Parecia conhecer Tewdric muito bem e provavelmente sabia que ele nunca faria aquilo. Kassyeh sabia que ele não queria machucá-la, mas seu desejo de ter as presas dele em sua carne era maior que a cautela.
- Tewdric... – ela começou com a voz suave.
- Não! – rugiu ele olhando-a bem – Eu quero você bem. Inteira!
- E eu quero que você me marque. – disse resoluta - Não me importo de sangrar, de perder a perna, desde que isso mostre a todos que estamos juntos! Só... – a voz dela perdeu a força como se o medo a dominasse por um instante.
- Só o que? – perguntou o orc na expectativa.
- Eu precisaria usar aquelas tangas? – indagou temerosa.
O guerreiro parecia não acreditar no que ouvia.
- Você não tem medo das presas? – perguntou ainda incrédulo – E tem medo de usar a tanga?
- Eu tenho vergonha tá! – se defendeu com as bochechas ficando vermelhas – Eu não gosto de ficar me expondo!
Por um minuto ele não falou nada. Depois, explodiu em gargalhadas. Abraçando-a, Tewdric a beijou na boca e depois desceu seus beijos pelo pescoço dela. Kassyeh sentiu um arrepio quando as presas dele roçaram em sue pescoço e imaginou a sensação de tê-las em sua carne. Tremeu e não pode deixar de notar que ansiava por aquela dor. Deixou as mãos dele acariciar seu corpo e apertá-lo. Depois, para sua surpresa, ele a soltou. Tirou sua capa, estendeu no chão antes de pegá-la e deitá-la lá. Kassyeh tinha a impressão que seu coração iria saltar para fora do corpo, tamanha era sua expectativa.
O orc tirou primeiro sua armadura. O peitoral de placas caiu com um estrondo no chão. O cinto que prendia as perneiras foi jogado para o lado, sendo seguida por aquelas.
- Aqui? – perguntou Kassyeh sentindo a expectativa aumentar a cada momento – E se chegar alguém?
Ele não disse nada. Levantou-se, pegou o machado que tinha deixado junto à árvore e fincou-o ao lado dela.
Não foi necessária nenhuma explicação.
Tewdric pôs inesperadamente a mão embaixo do seu vestido e apertou sua coxa.
- Eu vou lhe marcar... – murmurou com a voz cheia de desejo – E use seus vestidos. Não quero nenhum outro macho vendo seu corpo, além de mim.
Kassyeh respirou fundo e se preparou para a dor. Mas ele não a mordeu. Puxou sua roupa para cima e tirou seu vestido, colocando-o ao lado do machado. Era estranho estar apenas de roupas de baixo ao céu aberto e claro de Durotar, mas era também muito excitante. Seu guerreiro tirou a camisa e a calça que usava por baixo da armadura e não parecia preocupado em estar completamente nu. Inclinou-se sobre ela pôs a mão em um dos seus seios, o acariciando, antes de puxar seu sutiã com força.
- Linda... – murmurou antes de beijar seu pescoço novamente.
Estremeceu quando ele passou a língua em sua orelha, subindo pelo queixo e beijando-a novamente. Desejando tocá-lo, Kassyeh o abraçou, passando a mão pelas costas musculosas e firmes, sentindo as cicatrizes que se espalhavam em toda a extensão da pele dele. Havia cicatrizes novas, ela percebeu, mas ele não parecia se importar que as tocasse.
Depois de um tempo, os beijos dele desceram em direção ao seu colo. Beijou seus seios carinhosamente antes de sugá-los com vontade. Gemendo, Kassyeh pôs as mãos na cabeça dele, e passou as mãos pelo cabelo espesso que ele mantinha apenas na parte de trás da nuca, amarrado. Deixou suas mãos se enroscarem naqueles fios enquanto arqueava o corpo diante do contato da boca dele em sua pele sensível. Era bom demais. Quando a boca dele desceu em direção a sua barriga ela gemeu em protesto. Tewdric riu, mas continuou o caminho para baixo, até chegar ao baixo ventre. Com os dentes arrancou a calcinha dela fora, e abriu suas pernas. Kassyeh prendeu a respiração, mas não por muito tempo. Gritou de prazer quando sentiu a língua dele acariciar sua intimidade, enquanto as mãos do guerreiro apertavam suas coxas com desejo.
O mundo estava rodando e Kassyeh não queria que ele parasse de girar. Arqueou os quadris com desejo, querendo mais, querendo-o dentro dela, exigindo que ele a tomasse naquele momento. Que a tornasse sua.
E foi o fez.
A dor foi inesperada. Tewdric enfincara suas presas em sua coxa no momento em que ela atingia o clímax. Dor e prazer se misturaram de uma forma que a elfa não sabia onde começava um e terminava o outro. Sentiu o sangue escorrer por sua pele, enquanto seu orc lambia vigorosamente suas feridas. Ele pressionou os lábios nos furos que deixara na pele branca e sensível, sorvendo o sangue dela até que este estacasse. Depois, urrou alto, um brado que estremeceu tudo a sua volta, um rugido de vitória. Estava satisfeito com seu feito, mas queria mais. Deitou-se novamente em cima do corpo pequeno e a penetrou com fúria.
Era selvagem e era assim que ela gostava. Tewdric arremetia para dentro dela com desejo grunhindo a cada estocada, apertando o corpo de Kassyeh contra o dele. Ambos já conheciam aquela dança prazerosa, e se movimentavam no mesmo ritmo, querendo cada vez mais que o contato se tornasse mais e mais profundo. A elfa não se importou com a coxa ferida e enroscou as pernas em volta doa quadris de seu macho. Gemeu quando ele foi mais fundo e jogou a cabeça para trás. O orc entendeu o pedido e sugou avidamente o pescoço de sua fêmea. Gemendo, ela cravou as unhas na pele dele, e desceu as mãos pelas costas dele, abrindo rasgões na pele esverdeada.
De repente, ele parou. Parou por um instante, ainda dento dela e a encarou. Kassyeh ficou confusa, mas logo foi erguida pelos braços fortes. Tewdric sentou a encaixou em seu colo. A elfa gemeu surpresa, sentindo membro dele indo ainda mais fundo em sua carne. Agora, ele a tinha presa em seus braços, e mexia seu quadril de acordo com sua vontade. Kassyeh se agarrou nele, deixando que ela a guiasse, e já estava cega de prazer quando ouviu o murmúrio rouco e grave dele:
- Me marque. – pediu.
Kassyeh não pensou duas vezes. Com toda força que conseguia reunir, fincou os dentes no peito dele. Tewdric rugiu novamente e aumentou os movimentos dos quadris dela. Kassyeh continuou com os dentes presos a carne dele até sentir o sangue quente encher sua boca. Era estranho, vê-lo sangrando sabendo que ela causara aquilo, mas lhe dava uma sensação de poder inimaginável até então. E foi naquele momento, com o sangue dele se espalhando em sua boca, enquanto seu corpo continuava freneticamente cavalgando no membro dele, que ela atingiu o clímax. Gritou e percebeu que ele também gritara. Foi quando sentiu sendo preenchida novamente por ele, inundada por sua semente, prova de todo o desejo que compartilhavam.
Arfando, Kassyeh se deixou desvanecer nos braços fortes de seu guerreiro, enquanto o riso de triunfo dele ecoava em seus ouvidos.
Não havia mais volta. Estavam irremediavelmente ligados não só por seus sentimentos, mas pelo sangue que gotejava de seus corpos.
