A guardiã do tempo
Como se fosse um sonho, não me recordo como tudo começou. Quando ainda estava embebida na inocência, nunca imaginei que aquele dia seria um dos piores da minha vida.
O que me aconteceu nem foi nada de tão especial. Nada, de fato, comparado ao que por muita gente já passou. Mas nenhum mar de rosas, obviamente. Na verdade, nem me recordo ao certo da idade que tinha. Se onze anos, se doze. Nem me recordo o que trazia vestido, ou como era o meu aspecto. Quando recordo as memórias do meu passado, tenho sempre esta confusão imensa em relação ao meu aspecto, pois nunca me lembro como era na altura.
Mas isso não é realmente importante. A verdade é que me recordo que era um dia nublado. E que eu estava nas férias de Verão. Penso que foi por meados de Julho, talvez no início. Mas, mais uma vez, não me recordo bem.
Acho estranho, isto. Porque sempre que ouço alguém relatar, nos filmes, experiências horríveis, as pessoas lembram-se sempre o que o atacante vestia ou de que cor era a sua camisa. Lembram-se das cenas ao pormenor.
Eu não.
Talvez porque sempre me esforcei tanto por esquecer. Talvez porque, bem dentro de mim, esta é uma memória que não me importava de apagar. No entanto, tenho medo de esquecer, como se fosse esta memória que me mantém os pés no chão. Que, sem esta experiência, talvez me vá tornar numa pessoa mais arrogante e maldosa. Quem sabe? A vida é cheia de "e se…", não é?
Mas deixe-me de rodeios. Afinal, eu não me levantei da cama a meio da noite para encher a cabeça com filosofia barata. De fato, nem uma lição estou tentando ensinar. Estou só… não sei. Partilhando uma experiência? Tentando deitar isto para fora do peito, depois de tantos anos?
O riso sarcástico que acabou de sair dos lábios foi tão cruel e verdadeiro, como o fato de eu estar aqui, escrevendo isto. Porque, afinal, de que me vale mentir a mim própria? Eu sei que, quando acabar de escrever este texto, não terei dito metade do que queria. Sei que, quando estiver fazendo a ação, me sentirei sufocada e que terei lágrimas a descendo pela minha face.
Porque… bem, isto não é uma história de encantar. Fato é que, desde cedo, deixei de acreditar em histórias de encantar. Talvez porque o meu príncipe encantado não existisse. Afinal, porque haveria um príncipe encantado de gostar de uma menina como eu? Quando tinha sete anos, era facilmente confundida com um rapaz.
Mas não é essa a memória de que venho falar. Essa, tristemente, é uma das memórias mais suaves que guardo em mim.
Espero que não se importem de ouvirem a minha história. Espero que… sinceramente, do fundo do meu coração, não olhem para mim com pena. Não vim aqui para me lamentar. Vim mostrar que, por mais que o mundo vire costas, nunca lhe devem virar costas a ele.
A minha memória começa (começa não é bem a palavra certa, pois, como já disse, não me lembro de como a memória começou. Talvez um continua soasse melhor neste caso) comigo olhando para um visor do computador. Como referi, tenho uns onze ou doze anos. Estou num escritório de contabilistas e, para além de mim, só está mais uma pessoa lá. Era suposto a minha mãe estar presente, mas ela fora ao Continente com o seu namorado. Dissera-me para ficar ali, pois não havia espaço para mim no carro de dois lugares que eles iam sair. Não me importei. Afinal, podia ir para o computador.
Estes são os fatos da minha recordação. Isso, e de o céu estar extremamente nublado. Recordo-me disso pois estava com medo que chovesse e eu estava de sandálias. Não queria me molhar, porque a mãe me ia matar. Não queria isso.
E entretanto, tudo começa. As memórias assaltam-me e eu nem sei por onde começar a escrever. Tenho de me obrigar a respirar fundo e a manter-me racional. Tentar levar isto para o lado... impessoal.
Pois, claro.
Então, eu estou em frente ao computador, sentada numa daquelas cadeiras muito almofadadas e enormes. Estou num escritório à parte, quase escondido. Tem um vidro à minha frente no meio da parede de madeira, onde consigo ver o escritório coletivo cheio de mesas vazias. Todas, com exceção de uma. Ficara ali o amigo da minha mãe, que lhe dissera para ir descansada, pois cuidava de mim. Nunca gostara muito dele, devo confessar. Era muito… porco. Tinha conversas que me deixavam constrangida. Não era um bom amigo para a minha mãe, mas quem era eu para dizer quem era ou não digno de ser amigo da minha mãe? Era apenas uma criança.
Recordo-me que, lentamente, ele viera em direção ao escritório e pousara as mãos nos meus ombros. A minha memória começa aqui, a meio de uma conversa que ele estava a ter comigo. Não sou muito faladora com pessoas que não conheço bem, é um fato. Sou um tanto ou quanto reservada e desconfiada. Um pouco evasiva, se me permitem acrescentar.
A próxima coisa que me recordo, foi que ele baixou a cabeça ao nível da minha e me perguntou se sei guardar um segredo. Claro que sei. Sou ótima guardando segredos, a sério. Mas não lhe disse isso. Não disse, porque sentia que dentro de mim uma vozinha me dizia "sai daí enquanto pode". E as lágrimas na minha face não me deixam mentir. Nem as lágrimas nem o sorriso falso, porque sei o quanto cliché isto soa. Uma vozinha na minha mente? Mas é a mais pura das verdades. Tão verdade como eu ter olhado para a porta da saída e ver que ela estava longe de mais e que nunca chegaria lá a tempo se fugisse sem ele me apanhar primeiro.
As mãos deles desceram e entraram pela minha camisola.
Devo dizer que não sou uma garota com muito peito, nestes dias. E, estupidamente, ainda hoje me questiono se não foi por causa dele. Quer dizer, eu cresço de todas as formas possíveis. Menos no peito. Com muita relutância, admito que acho que é porque fiquei, de certa forma, "amaldiçoada", entendem? Bem, não sou muito boa a explicar isto. Nunca o tentei pôr em palavras. Esta é a primeira vez que tento contar a minha história. Peço desculpa se não está tão perfeita quanto deveria.
Lembro-me de ele dizer, com delícia na voz "Tem uns peitos bonitos".
Estão sentindo choque? Nojo?
Tentem imaginar o que eu senti. Consigo imaginar os meus olhos arregalados de choque, sem conseguir exprimir uma palavra. Quer dizer, isto tinha mesmo de me estar a acontecer a mim? A mim, de todas as pessoas? Já não bastava tudo o resto?
Mas, bem. A vida é injusta. E, tal como disse, isto não é uma história de encantar. Não vou ser delicada, se me permitem acrescentar.
"Sabes que os peitos crescem se o seu papai mexer nelas como eu estou fazendo?".
Mas o meu papai não mexia, de todo, pelo simples fato de me ter abandonado aos dois anos.
"Mas você não é o meu pai", lembro-me de ter contestado, com a voz um pouco mais forte do que esperara. Sendo que hoje, só de me lembrar, fico de rastos. O meu eu pequeno era bastante bom a lidar com crises, acho eu. Quer dizer, pelo menos manteve a situação controlada. Não gritou. Não chorou. Não o mordeu. Muito racional, a meu ver.
Se fosse hoje, partia a boca toda ao filho da puta.
Devo dizer que o meu sorriso já não é falso e que as minhas lágrimas já não são de mágoa?
Lembro-me de estar uma caneta junto ao visor do computador, em que fixei o meu olhar, enquanto sentia a respiração dele no meu pescoço. Não, não imaginei espetá-la no seu pescoço. Era muito ingênua para isso. Hoje, não pensaria – faria. Tenho a certeza disso.
Mas fixei-me nela porque era verde. E eu nunca percebi que gostava de verde. Era uma cor bonita. Fazia-me lembrar as árvores altas em frente à minha casa.
Reparem, eu estava em choque. Gosto de pensar que não seria a única em choque se isto se passasse com mais pessoas. Faz-me sentir mais… humana.
As mãos deles continuavam e quando me desapertaram o botão das calças, foi quando eu me senti quebrar por dentro. Literalmente.
E não estou dizendo isto só para perceberem o quanto o meu mundo enganou. Estou dizendo o que senti mesmo. Senti o meu coração rasgar-se em dois. Não estou brincando. Sabem como é? Talvez já o tenham sentido quando perderam um grande amor. Também já perdi o meu grande amor e também senti o meu coração quebrar-se. Acreditem, não tem nada a ver com isso.
É infinitamente pior. Mais doloroso. Mais irreversível. Porque, bem, mais amores haverão. Não como o primeiro, mas haverão.
Mas não haveria mais nenhuma infância ao meu dispor, pois não?
Quando ele começou a colocar a mão dentro da minha calcinha, foi quando senti uma vontade enorme de gritar. E de chorar. Era tão injusto.
Mas eu só pensava numa coisa. Será que ele fazia isto a filha dele? Ela era só uns anos mais nova!
E foi quando pensei nisso que ganhei voz.
Acho que lhe disse um "pare" muito imponente. Gosto de imaginar que sim. Não me recordo como o mandei parar com o meu pesadelo.
Mas sei como, os pequenos minutos que tudo isto levou, duraram uma eternidade para mim. Como o tempo à volta da cena parou e eu só queria fugir dali.
É engraçado como aqueles pequenos e rápidos minutos, ainda hoje me consomem. Como um ato tão rápido me matou por dentro. E já lá vão uns anos valentes. Pelo menos, gosto de imaginar que sim, para imaginar que o nojo que sinto por mim própria se vai desvanecendo.
Ele não fez muito mais. E agora talvez vocês pensem que sou uma idiota, porque… quer dizer, não fui violada. Como possa estar tão… traumatizada?
Porque, às vezes, não saber o que podia ter acontecido… é mais corrosivo do que saber. E não foi o ato em si que me matou. Mas as intenções. Porque eu sei que ele ia continuar. Ouvira histórias sobre ele e as garotas que… bem.
A verdade é esta: eu já estava quebrada, mas o que ele disse a seguir só me rachou ainda mais.
Reparem, a minha mãe é uma mulher pobre, que não aceitou ajuda durante muitos anos. Até que se fartou e começou a aceitar. E este… idiota, sacana, cabrão, filho de uma verdade… bem, ele. Ele ajudava-a. Por vezes dava-lhe comida. Por vezes dava-lhe umas notas. Não estavam envolvidos nem nada. Mas ela via-o como um bom amigo.
Por isso, quando ele disse "A sua mãe não pode saber. Se lhe contar, não posso a ajudar mais, minha querida", senti uma raiva dentro de mim que vocês nem imaginam.
Era uma grande decisão. Tinha de decidir entre a miséria física ou a mental. Entre continuar com pão na mesa para mim e para a minha mãe, ou contar-lhe a verdade e arranjar algum conforto. Mas logo me deixei de iludir. A minha mãe não reconfortava. Já tinha problemas suficientes. Quem pensava eu que era para sonhar, sequer, contar-lhe isto? Era um problema meu, ela não tinha de levar com ele.
A decisão difícil deixou de ser difícil.
Ainda hoje continua a ser fácil. Mas esse homem, se é que lhe podemos chamar isso, já não se encontra nas nossas vidas.
Lembro-me de ele se ter afastado de onde eu estava e, ajeitando a gravata, se ir sentar na sua cadeira. Conseguia vê-lo através do vidro à minha frente.
Sentia os meus olhos cheios de lágrimas. Queria chorar e estava tão chocada que nem isso conseguia. Lembro-me de olhar à minha volta à procura de uma casa de banho, para me lavar. Sentia-me imunda e só queria ir para um lugar fechado, onde me sentisse protegida. E quando vi a porta com a sinalização, nem mexer-me consegui. E fiquei a olhar para ela, parada, durante longos minutos, pelo menos.
Quando a minha mãe chegou e eu tive de fingir que estava tudo bem… Foi a primeira vez que eu soube como era arrancar o coração com as próprias mãos. Eu já era uma boa mentirosa na altura. Estava sempre "bem", embora nunca estivesse. Mas dessa vez… digo-os. Detestei-me. Senti tanto nojo de mim que ainda hoje… ainda hoje sinto vontade de vomitar quando me olho ao espelho.
Mas que se podia fazer?
A minha mãe tem pão na mesa. E não sou infeliz. Tive muitas desventuras na minha vida - esta foi uma delas. Mas sei que há gente que passou por pior. São essas que devemos tentar salvar.
De qualquer forma, só quis partilhar a minha história. Quis mostrar que há várias realidades no mundo. Que uma amiga nossa pode ter passado por uma coisa semelhante. Ou um familiar. Ou até vocês mesmas.
Não se calem. Não fiquem olhando. Por favor. Lutem por as pessoas que não podem. Não por não quererem, mas por não poderem. Porque não há nenhuma mulher que não seja ameaçada com algo importante para não contar.
E peço, do fundo do meu coração. Não deixem que se quebrem. Digam "Pare". Digam "Chega". Digam-no mais cedo do que eu disse. Não deixem tirar a criança de vocês. Lutem por ela, preservem-na sem vergonha. Porque uma vez que ela se vá… Ela não volta.
