Fazia mais ou menos meia hora que ele já estava acordado. Ela o havia feito prometer que dessa vez ele ficaria o dia inteiro com sua companhia.
Seus olhos giraram mais uma vez mirando o teto de madeira. Sem esforço ele resolveu sentar-se.
Enquanto puxava o travesseiro para apoiar as costas, Sirius viu um moleskine de capa vermelha que estava ali em cima da mesinha de cabeceira. Ele puxou e abriu a caderneta de notas, viu que havia apenas folhas brancas e que Marlene ainda não havia começado a usá-lo. Havia lápis preto ao lado do livro de anotações. Aquilo era praticamente um convite.
Ele abriu o livro perto da metade e começou a rabiscar. Algumas estrelas desengonçadas foram as primeiras a aparecer no canto da folha à esquerda, logo depois alguns círculos ovais na direita. Conforme Sirius riscava as duas folhas em branco, a ideia do desenho surgia em sua mente.
Precisava de mais inspiração, admirou Marlene por alguns segundos. O queixo pequeno e os lábios delicados. Os olhos fechados e a sobrancelha fina...
O rosto da garota do desenho estava criando forma, o queixo e o lábio inferior foram os primeiros. O nariz do rapaz do desenho tocava o rosto da garota. A boca dele cobria a dela, mas não totalmente.
O pescoço reto e o maxilar do rapaz foram os mais fáceis de desenhar. Agora o fundo...
Uma das pernas de Marlene bateu na dele como força, e isso o fez errar. Um palavrão baixo foi ouvido na voz dele.
Sirius procurou, mas não havia borracha. Rabiscou mais forte por cima do erro.
A ideia era fazer o fundo tipicamente do outono. As folhas caindo das arvores secas, mas com o erro e os riscos fortes, tudo ficou negro. Pensou bem para riscar nos lugares certos.
Mas ao menos o principal estava intacto, ele pensou.
Ele desenhou os fios de cabelo da garota, eram marcados e ondulados exatamente na altura da orelha. O cabelo do rapaz era liso e era maior do que o da maioria dos meninos na sua idade.
Marlene se mexeu mais uma vez embaixo dos lençóis, dessa vez ficando de bruços para o colchão. Logo acordaria.
Ele tentou, mas não era bom em desenhar braços, nem mãos, muito menos femininas. Em traços mais retos, fez a gola da camisa que o rapaz usava no lugar das mãos da garota. A gravata era quase imperceptível.
Ainda não estava bom. Era assim que ele se imaginava daquele momento, mas ainda não estava completo.
Lentamente esticou o braço até a gaveta da mesinha, precisava de uma caneta. Encontrou uma caneta hidrográfica. Não era o melhor, mas serviria.
O sobe e desce da ponta da caneta deixou o fundo mais negro, com lápis ele colocou luz e sombra nos contornos dos rostos e nos cabelos.
- Seu vândalo. – Uma voz pastosa e lenta foi ouvida ao seu lado. Sirius sorriu levemente – Não deveria riscar coisas alheias, isso é vandalismo.
- Pensei que tinha morrido pelo tanto que dormiu. – Ele a ouviu resmungar algo com a cara no travesseiro, resolveu ignorar – Mas é compreensível. Você acabou comigo ontem.
Dessa vez ela riu baixinho. Com as mãos apoiadas no colchão e as pernas dobrados ela sentou-se. O lençol que antes estava em suas costas e nuca escorregou até parar abaixo de sua cintura. Os dedos finos passaram pelos fios do próprio cabelo e ainda de olhos fechados, ela sabia que Sirius não tirava os olhos de cada movimento que fazia.
- Você sempre soube como levantar com estilo – Disse ele em tom de admiração.
Marlene riu levemente, antes de ajeitar o próprio travesseiro na cabeceira para olhar o que ele fazia.
- E você sempre soube como desenhar... – Comentou ela, puxando a caderneta de bolso das mãos de Sirius. – Hey, eu conheço esses dois...
Sirius sorriu pela primeira vez no dia.
- Claro que conhece.
- Minha nossa, Sirius, está perfeito... – Ela admirou o desenho mais de perto, tentando ver mais detalhes – Estamos perfeitos.
- Viu que até fiz meu cabelo igual ao do Seboso? Está até brilhante, olha. – Sirius apontou sem necessidade para o papel – Fiquei dias sem lavar meu cabelo pra deixar na quantidade de óleo adequada.
- Você sabe o que eu penso sobre isso, não sabe?
A voz de Marlene estava dura, o que não combinava com o olhar de admiração que ainda dirigia ao desenho.
- E você sabe que não estou nem aí para o que você pensa sobre isso, não é, amor?
Ele beijou-a na bochecha, antes de rir da expressão de ultraje dela.
- Sirius, foi muita infantilidade ir fantasiado de Severus na festa de Halloween, e você sabe. – Comentou Marlene, mas sem olha-lo ainda. Ela puxou o lápis que estava jogado entre eles.
- Ah, Lene... Eu tinha quinze anos, não me culpe por algo que eu fiz nessa idade.
Ela analisava o desenho ainda. Sirius estava interessado mais no rosto dela do que no que ela fazia no desenho. Não demorou muito, ela virou-se para ele novamente.
- Eu tinha a mesma idade e não fiz isso. – Ela olhou pra ele com sarcasmo.
- Mas isso é porque você é linda... – Ele se esticou para beijar a bochecha dela – Inteligente... – Ele beijou o nariz – Adorável... – Foi a vez do queixo – E muito...– Ele subiu pra boca e beijou-a lá repetidas vezes. – Muito sexy...
- Espera. – Ela o empurrou levemente – O que tem eu ser sexy haver com isso?
Sirius sorriu largamente, como se ela tivesse feito uma pergunta boba.
- Lene, isso tem haver com tudo.
Ela havia aberto a boca para responder, mas passos no corredor a fizeram parar com a frase. Passos fortes e ritmados.
- É o meu pai... Corre! – Disse ela rapidamente antes de começar a empurrar Sirius da cama – Vai, Sirius!
Ele saiu da cama o mais rápido que conseguiu. Puxou as calças que estavam jogadas ali sob o tapete de qualquer jeito. Enquanto ele subia o zíper e abotoava as calças, Marlene abria a gaveta e puxava a primeira camisola que encontrou.
- Vai, Sirius! – Ela repetiu urgente em tom de sussurro.
- Eu estou indo, caramba! – A camisa dele estava em cima do sofá do quarto de Marlene, junto com um dos sapatos – Mas que porcaria o seu pai tem de acordar tão cedo?!
- Ele sempre acorda há essa hora! – Ela encontrou o outro sapato perto da janela e jogou para ele.
- Das outras vezes não acordou, não! – Sirius abotoou três botões, dois em casas erradas, antes de calçar o sapato.
- Das outras vezes ele não estava em casa! – Ela correu até ele empurrando-o até a lareira de seu quarto – Agora vai!
Sirius puxou a nuca de Marlene para mais um beijo. Um beijo apressado que veio junto a um gritinho da parte dela. Ouviram três batidas fortes na porta.
- Sai daqui! Vai! – Marlene tentava se soltar de Sirius, mas o sorriso em seu rosto demonstrava o quanto estava gostando da situação – Eu te amo.
- Eu te amo. – Ele disse já de costas e com o Pó de Flú em uma das mãos.
Ouviu-se a voz de Sirius quase que proclamando o endereço do próprio apartamento, mais batidas foram ouvidas poucos segundos antes da porta do quarto de Marlene ser aberta.
~ • ~
- Você está lembrando dela, não está?
A voz de Remus o despertou da lembrança. Ele não precisou dizer nada, seu melhor amigo havia acertado.
- Não foi sua culpa, Sirius, você sabe... – Remus começou.
- Esquece isso... – Sirius tentou interrompê-lo sem muita convicção.
- Nem a morte dela, nem a morte de James e Lily foram sua culpa... – Ele continuou.
- Esquece, Remus...
- Foi culpa desses Comensais malditos! – Remus disse um pouco mais enérgico do que de costume.
- Eu disse pra esquecer! – A voz de Sirius saiu mais alta do que o próprio pretendia – Nada do que você disser vai me fazer mudar de opinião sobre esses dois assuntos. Eu fui a ultima pessoa a usar a rede Flu na casa dos McKinnon e era pra eu ser o fiel do segredo. Ambas as mortes foram de minha culpa, e eu sei disso.
O licantropo suspirou levantando-se do sofá que havia sido levemente corroído por traças. Ele caminhou até uma das prateleiras do escritório de onde eles estavam.
Sirius olhou para a janela atrás dele sem cortinas. As nuvens brancas estavam dando espaço para um sol fraco.
Antes que Sirius percebesse, Remus estava parado na sua frente novamente.
- Molly encontrou isso uns dias antes das crianças irem para Hogwarts. Ela queria jogar fora, mas eu não deixei.
Lupin estava com um moleskine de bolso com capa vermelha em uma de suas mãos.
- Não achei que seria justo com ela... – Ele estendeu o livro para Sirius – Nem com você.
Ainda incrédulo, Sirius retirou o livro das mãos do amigo. Não podia ser o mesmo... Podia?
- Mas como isso veio parar aqui?
- Imagino que deve ter chegado aqui pouco tempo depois de... Bom, você sabe.
- Mas eu não entendo. Por que mandariam isso para cá? Pra casa da minha mãe?
Lupin suspirou pesadamente mais uma vez.
- Tem seu nome escrito nele. Acho que a pessoa do Ministério que cuidou das coisas dos McKinnon pensou que você deveria saber o que tem aí.
E sem dizer mais nada, Remus saiu.
O coração de Sirius batia rapidamente, seus olhos não paravam quietos. Ele abriu o livro novamente um pouco antes da metade, como há quase dezessete anos atrás.
Seu desenho continuava lá. As folhas limpas, que antes eram brancas, agora estavam amareladas e com manchas escuras.
Ele subiu os olhos para a página direita do desenho. Havia algo diferente. Algo que ele não havia visto antes.
E isso quase o fez sufocar.
Havia o símbolo do infinito ao lado do desenho deles. Marlene deveria tê-lo feito quando ele não estava prestando atenção. Não era caprichado, nem geometricamente certo.
Mas para Sirius aquilo era a coisa mais linda que já vira.
- Sirius! – Remus gritou da sala de estar.
O livro estava marcado em algumas páginas atrás do desenho. Marcado com a fita do próprio livro.
- Sirius, desce aqui! – A voz de Remus estava urgente e os passos de seu amigo na escadas estavam mais altos – Sirius!
Os dedos dele já estavam no meio das páginas marcadas com a fita quando Remus abriu a porta com força. Atrás dele estava Severus Snape.
Seus olhos encontraram-se com o rosto mais pálido do que de costume de Snape.
- Seu afilhado teve uma visão sua. – Disse Snape rapidamente entrando no cômodo – Aquele-que-não-deve-ser-nomeado o fez pensar que você está no Ministério da Magia sendo torturado agora mesmo.
Sirius tentou absorver a informação.
- Mas... Não era pra você ter ensinado oclumencia a ele?! – Disse Remus irritado – Era isso que Dumbledore temia!
- Conhecendo Potter, ele já deve ter arranjado um jeito de ir para lá. – Snape virou-se para Sirius e Remus – Avisem Dumbledore o mais rápido possível. Falarei com o resto da ordem.
Sirius levantou-se rapidamente deixando a caderneta de capa vermelha em cima do sofá onde ele estava sentado.
N/A: Se não deu pra entender direito, se passa antes do Sirius ir para o Ministério da Magia durante o livro A Ordem da Fênix. E... Yep, ele nunca soube o que Marlene havia escrito.
Obrigada por ler!
