Meus olhos abriam e fechavam a cada momento: abriam pois eu tinha que ter uma noção do que estava acontecendo entorno de mim para ter a mínima chance de sobrevivência. Fechavam, uma vez que ver o que acontecia era quase pior que a morte. Ouvir também era. Gritos, gemidos, líquidos voando, sinos.
Muita coisa se passava na minha cabeça durante aquele momento, eu estava confusa...só queria que acabasse.
Não havia pausa nessa mutilação constante, nesse inferno real. Mesmo quando eu iria dormir, era obrigada a sonhar com isso. Não havia escolha, não havia nada.
Neste exato momento, dezenas de pessoas estão sendo mutiladas do outro lado do sofá e eu, aqui, com medo, acovardada... Minha vida não tem mais sentido desde alguns dias atrás.
O barulho deu uma trégua. Saí de trás do sofá – graças a Deus muito bem posicionado como um esconderijo – aos prantos. Era inacreditável a cena que se seguia, nem nos piores desastres, nas piores guerra poderia se imaginar algo daquele tipo.
O vermelho do sangue estava em todo lado. E nos lugares que não o tinham, o colorido era fraco.
Respirei fundo, dei mas alguns passos. Meus pés evitavam os cadáveres a todo o custo. Mal se aguentavam em pé também, estavam bambos.
Minhas mãos, aquelas mesmas que deveriam estar há alguns minutos segurando fuzis para ajudar no combate, estão evitando por nojo as paredes sujas de sangue.
Viver é uma escolha. E é a escolha dos covardes.
POW! Deve ter sido por instinto de meses(ou anos, quem conta o tempo nessas épocas?) de sobrevivência que ao ouvir passos lerdos de um pé "quase humano" atrás de mim, dei uma rápida meia-volta e puxei a AK-47 da bainha. Em milésimos de segundo, levei o polegar até a extremidade superior da arma e destravei-a. Completando este segundo, puxei o gatilho com certa confiança e a bala voou certeiramente no cérebro da criatura que caiu inanimada atrás de mim.
Aquilo me dava nojo. Havia um bom tempo que eu era indiferente em relação a esses seres.
Foquei novamente em olhar para frente e segui andando, trêmula. Aquela morte fora uma exceção do que restava do meu bom-senso. Eu só pensava Nele, e aquilo realmente me atrapalhava.
Sem mais delongas, alguém xingando a mãe de muita gente- inclusive a minha- gritava meu nome no fundo daquele cenário pior que o de O Massacre da Serra Elétrica.
Essa pessoa é muito importante para mim, tenho certeza. Ela salvou minha vida. Se não fosse por ela, eu seria apenas mais uma vítima dessas... coisas. Que outra palavra para descrevê-las se não coisas?
Ao mesmo tempo eu a odiava. Ela me deixou viver, me deixou passar mais tempo nesse inferno. Se suicídio é um crime capital e nos faz ver o Lá de Baixo diretamente, acredito que a visão dele era, no mínimo, atraente comparada a que estava tendo naquele momento.
Por isso eu também me odiava, me odiava por continuar viva. Odiava ter que ver corpos todos os dias. "Tudo vai ficar bem" Quantas vezes já não repetiram isso para mim? Não sou mais uma adolescente idiota apaixonada por alguém... eu encontrei o amor da minha vida, mas ele se foi.
Agora, sou uma Sobrevivente.
