Sombra Chinesa

por Hiram

Esta obra é dedicada à querida amiga Marcela Schmit.

Parte Um – Encruzilhada

O túmulo de sakura parece irreal naquele cemitério sombrio. Uma chuva fina, cheia de pesar, lentamente encharca os paletós pretos tão perfeitamente arrumados dos presentes ao enterro. Havia um silêncio sombrio e esmagador sobre todos. E ele é compreensível, pois não conheço pessoa alguma que tomaria a palavra no enterro da vítima de um assassinato brutal e sem explicação. Shaoran trouxe flores, e Sonomi chora silenciosamente. O véu de Tomoyo é muito grosso. Mas talvez seja essa a intenção, posto que ela já não fala mais, nem come, nem ouve, nem sente. Ela morreu também.

A bem da verdade, estamos todos mortos.

A chuva continua, sem se importar em molhar cidadãos de bem que compareceram ao singelo enterro de uma garotinha. O sepultamento corre sem grandes acontecimentos. Depois, todos se dirigem a seus respectivos lares, para tentar levar uma vida normal, talvez.

Eu? Vou andando para casa. Não há mais o que fazer. Dou passos lentos, quando alguém toca meu ombro, talvez para prestar seus sentimentos. Viro.

Uma Sakura morta, de olhos virados e pele apodrecida, puxa-me pelo braço e murmura:

- Touya.

São três da manhã. odeio ter esse pesadelo.

Vou à cozinha descalço tomar um copo d'água, fumar um pouco e relaxar. O telefone toca, mas a essa hora só pode ser algum engano. Londres é bastante convidativa no outono, o que me faz dar preferência à sacada dentre todos os aposentos do apartamento. Aqui, possuo tudo com que um homem poderia sonhar: uma vida estável, um cargo de pesquisa na universidade, um visto permanente. Sete anos fora me fizeram muito bem, obrigado. Exceto talvez pelos pesadelos, mas... quem consegue ser totalmente feliz?

- Alô?

- Senhor Kinomoto, desculpe incomodá-lo a essa hora, mas temos um caso grave aqui. Aquela menina da semana passada... bem... ao que parece, ela não se livrou totalmente do que a atormentava.

- Estranho... ele não a limpou da última vez?

- Sim, mas parece que houve uma reincidência.

- E o Ben?

- Não consegui localizá-lo.

A resposta é: ninguém. Ninguém é completamente feliz. Talvez porque o homem nunca se contente com o que tem, e sempre queira mais. Mas quem se importa?

Já posso dar adeus à minha querida noite de sono. Ao abrir meu guarda-roupa, tenho que escolher entre preto e preto. Após segundos de indecisão, fico com preto mesmo, porque exorcismo sem gritos e roupas pretas é tão sem graça que me dá até arrepios. A vida já é sem graça o suficiente para nos privarmos de certas vaidades. Pego o livro, alguns medalhões e uma goma sabor menta.

Ligo o carro com um mau humor homérico e entro na Nether Street. É muito agradável ser acordado às três da manhã por um pesadelo e ter que expulsar demônios do corpo de uma garota estúpida que fica brincando de "jogo do copo". Se eu acreditasse em céu e inferno, diria com toda a certeza que eu iria para o céu. Sem dúvida! Bem, talvez haja algumas dúvidas, mas isso não importa... não acredito nessas coisas mesmo!

Após esse breve apontamento religioso, chego à mansão da possuída.Pelo menos a madrugada promete ser divertida. Entretanto, nada pelo que eu prefira trocar uma noite de sono...

Há muitos espelhos no hall de entrada, e um mordomo me recebe.

- Senhor Kinomoto? Esperam pelo senhor no quarto. Por aqui.

Uns vinte Senhores Kinomoto seguem o mordomo, com tantos espelhos no hall. Vejam só, a mobília é vitoriana, que bom gosto!

- Senhor Kinomoto, até que enfim! A menina está suando como um porco, e uma infiltração nas paredes surgiu do nada. Algum "demônio aquático" ou coisa parecida. Ah, ela também grita algumas coisas estranhas, pra variar.

- É bom ver você também, Liza.

Lembro-me do caso dessa garota; estava demasiado cansado depois do trabalho para fazer até meu jantar, quanto mais um exorcismo. Acabei passando a bola para um colega. Má idéia. Abro a porta e, pra variar, vejo uma menina com uma aparência péssima amarrada numa cama. Os pais estavam ao lado, rezando. Ah, é sempre assim. Mudando de idéia, começo a acreditar que esse vai ser um tanto entediante...

E eu, que tinha me arrumado tanto, fiquei sinceramente decepcionado.

Pego meu espelho e olho para a menina através dele. Vejo a aura de algum demônio pervertido de quinta categoria. Esses demônios desocupados, que ficam possuindo menininhas, tsc tsc... deviam fazer algo mais interessante, como tomar sakê ou jogar poker com os amigos chifrudos. Agarro seus cabelos e começo:

- Nomina te.

A menina dá uma gargalhada. Pego uma medalha com o selo de Salomão e aperto contra sua testa. Pra refrescar sua memória. Sai uma fumaça com um cheiro horrível, e ela grita.

- Nomina te.

Começa a pingar água do teto. Odeio esses efeitos especiais...

- Nomina te.

- Vodnik! Vodnik! - ela esperneia e grita, repetidas vezes. Que escandalosa!

Como previra, não vai ser emocionante. Saio do quarto, encharcado, e vou preparar a passagem de volta desse indivíduo desocupado aliciador de menininhas.

- E então, Kinomoto?

- Vodnik. Um demônio eslavo da água que surge através de crianças não batizadas que morrem afogadas - ela continua gritando. - Vou precisar de uma galinha.

Felizmente, o kit-exorcismo de Liza já vem com galinhas. Mas que diabos um demônio eslavo que atacava no século passado estava fazendo no corpo de uma menina inglesa? Não ficaria muito surpreso se descobrisse que há algum tipo de pacote de turismo para demônios aposentados. Entro no quarto, faço um círculo com sal no chão e subo em cima da garota. Ela tenta me tirar de cima de si com toda a força, mas as amarras não deixam. Sabe, é mais difícil desenhar um símbolo eslavo complicado com sangue de carneiro na testa de uma menina possuída quando ela tenta morder você. Fico em pé e abro o livro, procurando. Exorcismo com tortura... divinação chinesa... visita à cabine branca (estranho, nunca tentei isso)... exorcismo arcaico... russo... pronto, exorcismo eslavo.

- A-ham... Pelos quatro cantos da roda, o que é em cima é também o que está em baixo. Vodnik, sem quem você é. Você me deve obediência, por sua própria natureza. Diga-me o que quer.

A menina se contorce para falar, o que parece algo realmente doloroso.

- O poder das trevas. – ela diz, com uma voz dupla e grossa.

Mas que falta de imaginação! Um demônio clichê. Recito alguns encantamentos, e a cada palavra mais água parece chover do teto e das paredes. A menina se contorce em caretas horríveis; seus olhos estão virados. Tomara que ela não fique possuída para sempre, ou nunca conseguirá um namorado decente...

Grito a plenos pulmões que deixe o corpo da menina. Abaixo-me rapidamente e pego a galinha. Ela tem violentas convulsões, tremendo desesperadamente e gritando muito, seus olhos quase saltando das órbitas. Nada bonito... Depois de um grito particularmente estridente, a menina cai desfalecida e a galinha começa a se debater com fúria.

- Tsc tsc, você não tem mais idade pra essas perversões...

Creck.

Saio de cima dela. Melissa, se não me engano. A galinha, com o pescoço quebrado, deve ser queimada dentro de três horas. Só é uma pena, uma pena mesmo, que a mobília tenha sido encharcada; é de muito bom gosto. No quarto, há quadros também. Perto da porta, um quadro campestre, com o que parece ser um rebanho de ovelhas. Junto à janela, um outro, retratando um banquete obsceno, no qual uma mulher em cima da mesa parece ser o prato principal. Interessante...

- Muito obrigada, Senhor Kinomoto! - a mãe da menina vem beijar minha mão. - Não sei como lhe agradecer.

Eu sei.

- São cento e cinqüenta libras.

O salário na universidade não é dos melhores, e um exorcista tem que comer. E abastecer o carro.

Antes de sair, vejo mais um quadro, perto do espelho. Um cão de asas segura um livro, e há uma criança morta no chão... Que má escolha para o quarto de uma menininha!

Depois, não sabem por que ficou possuída.

- Este quadro fica sempre aqui?

- Como? Ah, sim, Melissa adora tulipas.

- O quê?

Viro o rosto para o quadro, mas vejam só! A cena diabólica virou um lindo jardim de tulipas. Devo estar trabalhando demais na universidade... Penso que também pode ser por causa da hora, e não consumi cafeína suficiente pra ter um estado de consciência normal. No canto da moldura, encontro um pedaço de cartão, rasgado, com algo desenhado. Pode-se ler "ater" em baixo.

Fico atônito por alguns instantes. Isso não pode estar acontecendo. Minha respiração falha e o suor me escorre pela testa.

É uma carta Clow...