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De Cigarros e Crucifixos

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Tédio

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Ele descansava, os olhos semi-cerrados, seu corpo estilhaçado sobre o sofá. Imóvel, perpétuo e insône. Impuro. Matt nunca vira algo do gênero; Near nunca vira algo do gênero; sequer ele mesmo havia visto algo do gênero.

O peito nú derretendo no estofado encardido do sofá. Ele estava de bruços. Por que diabos estava de bruços? Haviam cinco dias que uma queimadura dolorida maculava sua pele clara, delineada em vermelho desde sua testa até seu peito. Ele continuava masoquisando-se de bruços.

Era algo similar aos homens-bombas islâmicos que se matavam em nome de Maomé. Mas seu ídolo definitivamente não era um símbolo religioso - tão contrário as cruzes que carregava no pescoço.

Tédio e preguiça são compatíveis com a dor de uma cicatriz queimando enquanto nada se pode fazer. Ele queria pegar Kira, ele queria derrotar Kira, ele queria matar Kira. Não, não era um desejo, era uma necessidade: ele precisava matar Kira. E havia uma urgência nisso, mas não era compatível a estar deitado no sofá, corroendo-se por não poder fazer nada além.

O espelho em frente a sua figura deitada refletia simetricamente em seus olhos cintilantes. Mello observava aquele ser andrógino, que coincidia consigo mesmo. Vestido em uma calça justa de couro, com os pés descalços e os fios escorridos e óleosos deformando o channel loiro sobre sua face quando deitado. Ele era o "cara foda" quando o vento soprava em seus cabelos e um óculos charmoso ocupava sua face enquanto ele posava de bad-boy. Mas agora ele era somente andrógino, ainda mais porque havia algo inédito.

Acho que era o tédio misturado ao sabor da vodka barata recostada na garrafa ao lado do sofá. Ou talvez o calor dentro do apartamento estava fritando seus neurônios na mesma proporção com que sua pele foi queimada no dia da explosão. Qualquer fosse o motivo não seria útil, mas para todos os males ele estava usando lápis nos olhos, enegrecendo aquele azul quase celeste que radiava em sua face mais que qualquer outro traço há até cinco dias atrás, porém agora havia uma cicatriz ofuscando o brilho de seus orbes.

Mas só um de seus olhos estava delineado, o lado da cicatriz permanecia demaquilado. Uma lágrima atravessou o lado intacto do seu rosto, uma lágrima negra, filha única. Mas ele não estava chorando, ele estava derramando-se sobre o sofá. Então sentou-se para encarar seu reflexo medonho. Metade da face fervendo em carne viva, seu lado oposto cruzado em uma lágrima tingida artificialmente. Aquela imagem o fazia abrir em sua face um sorriso coberto da peculiar acidez que acompanha a ironia.

Não era bonito, não era poético, não era trágico. Era o tédio.

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