Erros
Você tinha onze anos quando o conheceu. E você, no alto de sua sabedoria e maturidade avançadas, desdenhou dele com desprezo absoluto. Você o odiou, odiou suas atitudes irresponsáveis, odiou suas vestes amarrotadas, odiou seu nariz sujo.
Ele era feito de falhas e você não admitia falhas. Não admitia erros. Você os odiava e por isso odiou Ron Weasley. Com todas as suas forças, sentia raiva de cada gesto daquele garoto imaturo e errado.
E você o corrigia. Reclamava de cada erro dele, dele próprio, com uma freqüência enorme. Mas ele retrucava e você reclamava ainda mais. Brigas pareciam ser a base da relação de vocês dois, e de fato eram.
Você esquecia-se dos seus erros para reclamar dos dele. Mas você nunca notou isso.
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- Meus parabéns, Srta. Granger. – disse o professor Flitwick, sorrindo e entregando o trabalho com a nota máxima na mesa.
Você sorriu também, a face corada de orgulho. Não havia erro algum em você, você era brilhante e você se esforçava para isso. Erros eram inúteis e rapidamente deveriam ser descartados. Você não gostava deles e não os tinha. Nenhum erro em Hermione Granger, você sabia, e sorriu ao pensar nisso. Estava orgulhosa de si mesma.
Você olhou para Ron Weasley naquele momento, e fez uma careta ao notar o trabalho mal feito dele. Irritada, caminhou até a mesa dele e procurou mostrar-lhe o certo, recebendo respostas grosseiras como ele próprio. Mas você apenas retrucou de volta, enquanto mostrava a ele como o trabalho realmente deveria ter sido feito.
Na mesa, sua nota máxima jazia esquecida e abandonada. Você colocou-a de forma ríspida em sua mochila quando voltou, antes de sair com Harry e Ron, amassando-a. Mas você nunca notou isso.
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Se alguém lhe dissesse que você faria seus melhores amigos, graças a um trasgo, você certamente chamaria a pessoa de louca.
E, se essa mesma pessoa lhe dissesse que você mentiria para uma professora por causa deles, você teria certeza de que ela tinha algum problema.
Mas essa pessoa estaria certa. E você odiava errar.
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E então veio a Guerra.
Você tinha certeza de que, se escrevesse sobre ela algum dia, usaria a letra maiúscula. Como um nome próprio, e você acreditava que era. Um nome. Uma pessoa. Um ser humano, como você e os que morriam e viviam ao seu redor.
Você a temia.
Uma Guerra era feita de erros. Você os odiava, um por um, mas temia ser alcançada por eles. Era inconsciente e você não podia evitar. Tentava corrigi-los, quase desesperadamente, mas eram erros demais e alguns erros não tinham solução. Você aprendeu isso.
Você viu seus pais esquecerem-se da filha e viu que os olhos deles nunca pareceram tão brilhantes. Você viu o seu melhor amigo evitar encará-la. Você viu a fome e a idéia – que aos poucos se tornava cada vez mais palpável – de que você não tinha idéias. E nem Harry. E nem ele.
E então, você viu as brigas.
E não eram as suas brigas.
Você passou a temer as brigas, passou a tentar evitá-las, mas você não podia impedi-las por completo. Ele estava errado e você sabia, você sabia, você sabia, mas não conseguia aceitar. O seu melhor amigo não te olhava e ele te odiava.
A primeira mancha em seu cobertor foi à noite, em silêncio, com uma pequena lágrima que escorreu e caiu. Você logo tratou de limpá-la, temendo ser descoberta, e o pensamento do que ele faria se descobrisse te fez derramar outra lágrima. E outra. E mais uma.
E de repente eram soluços abafados, as lágrimas escorrendo sem que você pudesse conter, porque você não podia conter nada, não podia limpar nada, porque aquelas manchas eram erros e a Guerra era erros e ele era feito de erros. Um erro de cada vez, escorrendo pelo seu rosto e caindo no seu cobertor e formando uma mancha rápido demais. Rápido demais para que você limpasse-as. As suas mãos não se mexiam e as da Guerra não queriam te ajudar.
As mãos da Guerra gostavam mais de machucá-la, cravar os dedos em sua pele para fazê-la errar mais. Contaminá-la com seus erros. Fazê-la parte de si.
E ela era mais esperta do que você, porque conseguiu.
Você passou a errar todas as noites. As lágrimas escorrendo e as manchas se formando. E as brigas, aquelas brigas ecoando na sua mente, e a falta das vozes de Harry e Ron rindo e fazendo comentários.
Você fez também uma escolha errada.
Ele odiou essa escolha. Ele esperou que você ficasse ao lado dele, mas você tinha que corrigir os erros e ele era feito de erros e você temia erros. Esperou que ele aceitasse, que acatasse emburrado e reconhecesse que você estava certa.
Como ele sempre fazia. Mas ele não fez.
E a Guerra passou a ter as mãos de Ronald Weasley.
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As mãos de Ronald Weasley.
Você aprendeu a tentar decorá-las, sempre se perdendo no número de sardas que se misturavam. Uma mancha, duas manchas, três manchas, quatro manchas e será que você tinha contado aquela? E aquela? E você começava a contar de novo e você nunca terminava.
Você ficava irritada, sempre ficava, mas era teimosa. E você não reparou quando essa teimosia se tornou uma simples vontade. De observar as mãos dele. Os dedos longos, a pele clara, e aquelas manchas. As sardas, o que você mais olhava, associava-as às manchas e aos erros e a ele. Mas foi só na Guerra que você passou a associá-las a lágrimas. Às suas lágrimas.
Você tremia, você derramava lágrimas e a Guerra vinha recebê-las entre os dedos, sorrindo. Os dedos de Ron e as suas lágrimas, misturando-se as sardas dele, a Guerra apertando-as entre as palmas até que não restasse mais nada. Mas sempre restavam as manchas dele. Os erros dele.
E foi quando ele voltou que você passou a tocá-los.
Na maioria das vezes quando ele estava dormindo, mas tinha horas em que ele percebia. E deixava-a com um leve rubor no rosto, desviando o olhar. E você passava os dedos pelas sardas, pelas manchas, pelas mãos. E elas deixavam de ser da Guerra e voltavam a ser dele. De Ron.
Os erros dele sempre pareceram mais belos que os seus acertos.
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Você o viu, semanas depois da morte do irmão, e não parecia ele.
Ele tinha uma flor nas mãos e não era uma flor comum. Não tinham pétalas nas mãos dele e ela estava perfeita. E o olhar dele estava turvo e não olhava para a flor. Azul atravessava vermelho e o fazia transparente. Puro, branco. Perfeito, como ele nunca foi.
E você teve medo. Você teve medo e você teve vontade de chorar, porque você nunca o tinha visto daquela forma. Porque naquele momento ele não tinha erros, ele era nobre e ele sofria e você percebeu que Ron era vazio sem os erros. Quase tão vazio quanto a flor que ele tinha em mãos. Transparente.
Você se aproximou e ele não te encarou. Ele olhou pra flor e a flor era branca e pura em vez de vermelha e sem pétalas. Mas você corrigiu a perfeição da flor. Você tirou a flor das mãos dele e arrancou uma pétala.
Você arrancou a pétala e a jogou no chão, próxima de vocês. Ron não disse nada e te olhou. E você arrancou mais uma e Ron observou você arrancando-a, tirando a perfeição e jogando as pétalas brancas na grama verde.
Ron pegou a flor das suas mãos e arrancou uma pétala também. Ele jogou-a no chão e pisou-a, pisou-a, pisou-a várias vezes com os pés descalços. Você arrancou mais uma e jogou-a.
E Ron tirou-lhe a flor das mãos mais uma vez, e arrancou todas as pétalas restantes, uma a uma. Ele tinha os olhos brilhantes de lágrimas e pisou-as uma a uma junto com as pétalas. Elas também eram transparentes.
Ron apoiou a cabeça nas mãos por um segundo e sorriu ligeiramente; um sorriso pequeno e triste. Imperfeito e errado, como ele.
Ele te encarou com o sorriso e você sorriu de volta. E você descobriu que gostava de errar.
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Havia sempre brigas. Brigas, discussões, réplicas freqüentes aos comentários do outro. Havia os dedos dele entrelaçados aos seus, havia o silêncio enquanto as folhas se mexiam com o vento. Havia o olhar dele e o seu olhar, havia azul e castanho. Havia cabelos ruivos em que você passava as mãos. Você passava e havia o riso constrangido dele que te fazia corar.
Havia aqueles momentos rápidos em que vocês se encaravam e você se perdia no olhar dele. E aquela sensação – sempre passageira – de que, se não houvesse mais nada, não importava.
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Ele passou as mãos pela sua pele e você fechou os olhos. Podia senti-lo. O toque, os lábios, as mãos. O calor. E você nunca pensou que ser errada fosse tão bom.
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Você passou a vê-la em seus sonhos. Você a via, via as mãos dela e os olhos dela e os olhos dela eram os olhos dele. Via os dedinhos dela se segurando nos seus ombros. Via a voz dela balbuciando para te chamar, para chamar Ron, para chamar alguém. Você a chamou de Rose porque sonhou que ela tinha uma flor. E que as sardas das mãos dela se misturavam à flor do mesmo jeito que as dele.
E quando ela veio, você viu que ela era cheia de erros. E, sem perceber, você a amou por isso, porque aqueles eram os erros dela e os erros dele. Com um toque de você.
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- Mamãe, mamãe, olha só isso.
Ela corria pela casa, rindo, as mãos pequenas abertas, e pulava do segundo andar, sorrindo. Você gritava, você sempre gritava, mas ela flutuava e flutuava até embaixo e Ron ria.
Ela gostava de errar, também. Gostava de ir até onde poderia, de rir das suas reclamações e de errar até onde conseguisse. E ela errava até mais do que ele. De propósito, para você corrigi-la.
Você a amava.
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Ele fez uma careta.
- Está lendo de novo?
Você encarou-o.
- Algum problema?- E ele revirou os olhos.
- Nada, só o fato de que vou ensinar a Rose a voar e achei que você iria querer saber. - Isso a despertou.
- Como?! Ela só tem dez anos! É cedo demais, Ron!
- Besteira! – ele disse, puxando-a pelo pulso. – Eu voei quando tinha uns cinco anos, na primeira vez.
E então ela apareceu.
As calças surradas e com alguns rasgos que você não tivera tempo de arrumar. A camisa vermelha e os cabelos castanhos caindo nos ombros. E o sorriso. Ela sempre sorria.
- Por favor, mamãe!
- É, Hermione. – ele riu. – Deixe! Ela não vai se machucar, eu prometo.
Você revirou os olhos antes de aceitar, relutante. Mas havia um sorriso no canto dos lábios.
Ronald Weasley. A maior das suas imperfeições.
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N/A: Essa coisinha eu escrevi a um tempão e, incrivelmente, faturou o primeiro lugar no I Challenge RHr do Seis Vassouras. Agradecimentos à Bety, pelo lindo chal, e à Abracadabra, pela betagem.
