Capítulo 1 – Coisa de escritor
"Ela acordou devagar, suavemente. Antes de abrir seus olhos, pode perceber a claridade e o calor da luz do dia que ainda começava atingindo seu corpo. Nikki esboçou um sorriso, ainda anestesiada pelo sono. Os lençóis de altíssima qualidade da cama onde acordara pareciam acariciar sua pele. Os travesseiros a sua volta macios como plumas. Se movimentando levemente, no entanto, ela podia sentir a melhor parte de estar onde estava: o calor dos braços de Rook esquentando seu corpo antes tão gelado. Da mesma forma como ela abraçara um dos travesseiros, ele se mantinha abraçado a ela, com as pernas entrelaçadas às suas. Ela segurou a mão dele, trazendo-a mais para perto de seu peito e ele se aprumou à nova posição. Nada no mundo poderia tê-la acalmado mais do que ouvir a respiração de Jameson Rook em seu pescoço."
Eles desceram o elevador num silêncio que durou menos do que Beckett gostaria.
– Você não pode estar arrumada assim para ir a lugar nenhum. – Ele pressionou.
– Você não desiste, não é?
– É claro que não. Quem desiste não consegue o que quer. – Castle retrucou, virando o rosto para encará-la sem encontrar o sorriso irônico de sempre.
– O que houve?
Foi a vez de Beckett se virar. Seu semblante não parecia nem um pouco amigável. O mau humor praticamente emanava de seu olhar.
– Deixe de ser curioso. Do contrário vou perguntar o que você pretende fazer hoje.
Ele se calou, jogando as mãos para cima num sinal de rendição. Por mais que o humor da detetive lhe metesse medo, o seu próprio não era muito melhor.
As intenções de Castle para a noite eram as mais simples possíveis. Depois de um dia infernal de trabalho, com direito a perseguições e tiroteios, o escritor só queria tomar um banho rápido e dormir. Dormir até que pudesse simplesmente acordar no outro dia, com sorte, com um humor melhor. Com mais sorte ainda, o sono traria alguns sonhos, e esses sonhos desbloqueariam sua criatividade.
Ele acreditava ser mais fácil ganhar na loteria.
Fazia dois meses, naquele dia, que ele não escrevia uma única palavra.
Beckett, no entanto, tinha outras ideias para a noite. Fazia, naquele dia, um ano de namoro com Josh.
O elevador finalmente chegou ao térreo. Ambos sabiam do frio que fazia na Big Apple naquele inverno. De congelar os ossos, chegava a doer. Mesmo assim, a surpresa foi grande e desagradável quando, ao abrir a porta da frente, viram os flocos brancos passearem pelo céu, tingindo o cenário de branco. A não ser que você olhasse no chão. Em New York, a neve que caia no chão se tornava suja, acabando com a fantasia de um branco pacífico.
Beckett deu o primeiro passo para fora do prédio, mas parou imediatamente. Talvez esperar que a neve parasse não fosse uma má ideia. Ela trincou os dentes, e Castle a viu colocar os braços em frente ao peito, se encolhendo em defesa do vento cortante. O casaco que vestia não estava sendo o suficiente. A neve caia levemente, mas ainda assim, o frio era intenso. O escritor não pensou duas vezes antes de tirar o próprio casaco, colocando-o sobre os ombros da detetive.
– Castle, não… – Ela começou, tentando arranjar uma desculpa para não aceitar a gentileza. Quando se virou para encará-lo, encontrou um olhar preocupado sustentando o seu. Ela sabia o que se passava em sua cabeça. Exatamente que memórias e imagens vinham à tona quando a temperatura ficava abaixo de zero. Não importava se estavam dentro de casa ou no carro, completamente seguros, ambos se tornavam apreensivos quando ficava muito frio. Esse era um dos poucos traumas que Beckett admitia carregar. – Obrigada… – Ela finalizou, apenas.
– Sempre – Respondeu Castle, revelando seu habitual sorriso de canto.
Estavam a menos de cem metros do carro. Não iriam congelar na caminhada, tão pouco estava frio o suficiente para que isso acontecesse. De qualquer forma, a sensação estava longe de ser boa.
Beckett retribuiu seu sorriso. Deixou-se inclusive rir um pouco do modo como ele a olhava fixamente antes de sentir suas bochechas corarem. Era sempre muito raro vê-lo sério daquela forma e ela apreciava as oportunidades quando elas surgiam. Virou o rosto de lado, sem conseguir esconder a satisfação.
– Vamos, Castle… – Ela ajeitou o casaco dele em seus ombros, sentindo que ele barrava o frio de forma bem vinda e seguindo em direção ao Crown Vic.
Castle continuou parado, observando-a caminhar pela calçada. Ele levantou uma sobrancelha, curioso. A neve caia nos cabelos castanhos e compridos de Beckett como se estivesse chovendo isopor. Alguns flocos grudavam nos fios, no casaco preto, alguns acariciavam seu rosto, gelados como as mãos da morte. Kate parecia não se importar. A morte já não a incomodava mais.
Castle sentiu as palavras voltarem em torrente à sua cabeça. Aquele era o mesmo ângulo em que ele a observara naquele primeiro caso, fazendo com que Nikki Heat nascesse e se transformasse em sua melhor personagem. Agora, estando no terceiro livro, ele sentiu novamente, na mesma cena, a poesia e o significado implícito. Alguma coisa mudara, entretanto. Kate sentou-se no banco no motorista enquanto ele continuava a observar, e ele percebeu o quanto a passagem do tempo com certeza o ajudara: há três anos, ela não teria hesitado em deixá-lo para trás, mesmo tendo lhe prometido uma carona.
Três anos? Deus, tinha passado tão rápido! Depois de tanto tempo convivendo no 12th, aquilo se transformara em rotina. Já não via mais o tempo passar. Sua cadeira ao lado da mesa de Beckett, o hábito de trazer o café, a ajuda que sempre dava nos casos… Era quase como se ele sempre estivesse ali, todos os dias. Não conseguia mais lembrar-se da época em que escrevia os livros de Derek Storm. Todos tinham se acostumado a sua presença, e ele tinha se acostumado com todos. Gostava daquilo. Sentia-se em casa.
Ele avançou na calçada em direção à detetive, sem deixar seu sorriso se esmaecer. Muito pelo contrário, a curva de seus lábios pareceu crescer quando ele tomou seu assento ao lado dela.
– O que há com você hoje? – Ela questionou, levantando uma sobrancelha e dando partida no carro.
– Nah, é coisa de escritor. Você não entenderia…
Castle fechou a porta do apartamento atrás de si de forma ruidosa. Adentrou a própria casa com uma felicidade que contradizia o humor com que ele andava acordando.
Martha não pode deixar o sorriso do filho passar despercebido, imaginando que aquela mudança repentina podia só significar uma única coisa. Ela recostou-se na bancada da cozinha.
– Olá, querida mãe! – Saudou ele, dirigindo a ela um olhar brilhante.
– Como foi o seu dia, querido? – Martha questionou. Sua curiosidade era honesta.
– Maravilhosamente ótimo… – Respondeu ele, separando as silabas com cuidado.
Richard Castle se encaminhou diretamente ao seu escritório. Sem mais nenhuma pergunta. Sem mais nenhuma comentário. Tinha que manter o que estava em sua mente fresco. Tinha que continuar a alimentar a própria inspiração.
De onde estava, Martha observou com interesse o filho jogar-se na cadeira cantarolando o tema de Firefly. Ele colocou os pés sobre a mesa e posicionou o laptop cuidadosamente sobre seu colo. Ela o viu correr os dedos sobre o teclado, acariciando as teclas como um pianista acaricia as teclas do instrumento antes de tocar. Lembrou-se de como ele ficara perturbado ao, da noite para o dia, perder completamente a criatividade. Como, a cada dia que se passava, ele ficasse mais e mais triste. A paixão do filho pelas palavras, pelo texto que ele próprio ficava tão orgulhoso de produzir se equiparava a sua própria paixão pelos palcos. Ela sabia como era ficar tão longe daquele tipo de paixão. Sabia que ele sentia saudades de suas palavras, de suas teclas, do editor de texto que sempre arruinava a formatação da história.
Ela o vira tão feliz poucas vezes. O vira sentir tanta falta de algo menos ainda.
Alexis tinha estado em seu quarto, estudando para a prova de matemática do dia seguinte, mas surgiu nas escadas se apoiando no corrimão, curiosa, ao ouvir seu recém-chegado pai teclar furiosamente no computador, completamente imerso no que começara.
– O que aconteceu com ele?
Martha sorriu, sem desviar o olhar do rosto de Castle, iluminado pela tela do computador e pelo próprio sorriso.
– Nah... Coisa de escritor… Você não entenderia…
