Ink
É engraçado a maneira como as coisas passam rápido na vida. Pessoas dividem a estrada com você por alguns — ou muitos — passos, opinam sobre qual percurso será mais fácil, certo, divertido, prosperador, para então escolherem sua própria direção e deixar o espaço livre para outros que chegam mudarem completamente sua cabeça. Às vezes as mudanças são sutis, quase relevantes, concernindo a pessoas que apenas te acompanham. Pessoas sem personalidade, de acordo com Hermione.
Mas existem aquelas que marcam, penetram profundamente sua carne até encontrar sua corrente sanguínea, espalhando-se por todo o corpo e chegando ao coração. E ao cérebro. A memória teima em gravar cada momento bom — e ruim — com esses andarilhos, mesmo que apenas lapsos possam ser recuperados, brincando com suas convicções e quebrando as barreiras construídas pelo tempo. Porque o passado já não mais existe senão no pensamento, uma tempestade de informações confinadas num ser frágil.
Hermione tinha muitas lembranças, sim, para alguém que ainda não tivera a chance de viver longas gerações. Suas células nervosas nunca a deixaram na mão, podendo descrever minúcias de algo que via por detrás das íris castanhas, uma, duas, três, quatro, quantas vezes fossem necessárias.
Mas havia uma parte desse livro que relutava em ser lida, como se de alguma forma a tinta houvesse evaporado do papel e se perdido entre as estantes do seu ser. Ela tentava desesperada e incessantemente reescrever esse capítulo, e para isso precisaria de tinta nova, além de pena e pergaminhos apropriados, tudo o que ele possuía e levara consigo, num gesto egoísta de abandoná-la ao mundo, indo seguir seus pais para junto das raízes das árvores. Para sempre.
Todos os sorrisos nos momentos mais inesperados, todos os beijos roubados, todas as discussões acabadas em sua cama, os carinhos, as conversas longas ou monólogos intercalados, os silêncios necessários em meio a assuntos delicados, os abraços, as brigas, os encontros e desencontros, um "eu te amo" jogado nas folhas de um outono qualquer. Nada. Ela tentava recuperar uma cena que fosse, e tudo o que conseguia era uma paz irrequieta e calmante.
Como era bom estar com ele.
Quando a saudade batia — o que havia se tornado um ritual diário —, ela pegava a única lembrança que restara de Draco. Abria a terceira gaveta de seu armário e retirava, dentre várias peças de roupa, uma gravata borboleta. Preta, simples, surrada de tanto ser retorcida entre seus dedos. Mas era dele. E ela jurava: ainda conseguia sentir seu cheio nela.
A lembrança que vinha com o objeto era clichê, vaga, inexpressiva, apenas uma dança de um casal em meio a tantos outros. Podia, porém, significar muito mais quando essa simples dança trazia de volta a melhor sensação que Hermione conhecia.
Preta, simples, surrada, essa gravata borboleta lhe trazia nada menos que o amor.
