Carlisle

Ouvi o som de piano e coloquei o móvel no chão da sala olhando pela janela, mas só vi árvores. "Não acredito que fui tão descuidado a ponto de ter vizinhos". Atravessei a sala olhando para a janela ao norte. Nada.

Sai para o jardim me concentrando em seguir o som e conforme eu andava, mais alto ficava. Atravessei o lago em um único salto e continuei andando. Logo a frente, uma enorme casa se estendia atrás dos portões e próximo a janela da sala estava uma bela mulher, concentrada em seu piano, os cachos caramelo caídos nos ombros. Não sei quanto tempo a observei até que ouvi um carro se aproximando e me afastei o mais rápido que pude antes de ser descoberto.

A música parou subitamente quanto cheguei em meu jardim.

- Pensei que tivesse ouvido um piano. - Edward apareceu na escada.

- Ouviu. Fui descuidado, temos vizinhos.

- Vizinhos? - Edward me olhou alarmado e chegou perto da janela procurando.

- 1 quilômetro de distância. É o suficiente para nos obrigar a ser discretos.

- Me preocupo com Jasper. Você sabe.

- Sim, eu sei. Foi descuido meu. Pensarei o que faremos a respeito.

Era o primeiro dia em Ashland. Depois que encontramos Alice e Jasper na Filadélfia, éramos muitos e cada dia ficava mais difícil passar despercebido. A diferença de idade que eu tinha com os garotos era pouca e a história de que eu era o pai solteiro já não funcionava tão bem, a cada mudança de cidade, novo emprego, todos voltando a estudar, explicações sobre porque moramos todos juntos e qual a ligação entre nós, os casais que eram "adolescentes" e moravam na mesma casa, em pouquíssimo tempo nos tornávamos o assunto da cidade.

Haviam anos em que nos separávamos. No começo, Edward em seu momento de rebeldia, sumiu por alguns anos, mas retornou. Depois vieram Rosalie e então Emmett. Por algum tempo os dois moraram sozinhos no começo do relacionamento, mas era mais fácil vivermos juntos, como um clã. Agora que Alice e Jasper haviam se juntado a nós e minha casa nunca esteve tão cheia.

Quando eu comecei essa jornada, solitário, nunca imaginei que um dia teria uma família, mesmo que nesses moldes. Mas ainda faltava alguém para dividir tudo isso comigo. Durante as noites, sinto falta de ter uma parceira, sentir esse amor tão puro e verdadeiro que vejo meus filhos compartilharem. Quase tenho inveja deles por isso. Quase. Eu vi a transformação de Rosalie em uma pessoa muito melhor após conhecer Emmett. Jasper me contou de todo o sofrimento que Alice curou ao amá-lo. Edward, assim como eu, não tinha alguém, mas ele era tão novo, as vezes parecia não ligar realmente para isso.

Em 300 anos nunca ninguém despertou meus sentimentos, nunca estive apaixonado, muito menos tive essa ligação mágica que apenas nossa raça proporciona, quase como se fosse a alma perdida que encontramos para aliviar os dias da imortalidade.

Entrei no Hospital e cumprimentei as recepcionistas, andando calmamente pelos corredores até minha sala de atendimento. As enfermeiras me cumprimentavam com um aceno na ilha próximo aos ambulatórios e virei o corredor que me levava até minha sala.

Sentada nas cadeiras, aguardando por atendimento, estava a pianista que tinha visto no dia anterior. Segurava firme no pulso direito e respirava com dificuldade. Senti o cheiro do sangue dela me atingir como um soco no estômago. Havia muito tempo não me importava com o cheiro, mas esse era diferente, penetrante, encantador.

- Grace, quem é a senhora sentada no corredor? – Perguntei voltado a ilha onde as enfermeiras conversavam.

- Sra. Evenson, todos a conhecem por aqui - sussurrou - Tão linda… é uma pena.

- O que há de errado com ela?

- Sempre aparece com machucados. Diz que se machucou sozinha, mas todos imaginam que é o marido. Infelizmente não podemos fazer nada - senti o calor da raiva subir por meu corpo. Grace deu de ombros casualmente e continuou a mexer nos papéis.

- Ela já foi atendida?

- Sim. O Dr. Morris a atendeu. Está aguardando o resultado do exame. - sai andando para minha sala e ao passar por ela acenei com a cabeça. Ela sorriu tímida e abaixou a cabeça. Vi o corte em seu rosto.

Entrei na sala e fechei a porta atrás de mim, sentando-me na cadeira. Nunca me senti tão impotente em toda a minha existência. Eu tinha tudo, absolutamente tudo, dinheiro, imortalidade, beleza, um emprego, uma família e mesmo assim não podia ajudar aquela mulher sentada bem atrás de minha porta. Quase podia sentir o calor do corpo dela irradiar através da madeira. Ela não imaginava que eu era seu vizinho e muito menos sabia nada sobre mim, e tudo que eu sabia dela era apenas seu sobrenome e seu endereço.

Eu queria matar o marido dela se ele realmente estava machucando-a, mas como eu iria saber? Teria que espioná-la? Fazer um flagrante? Ameaçá-lo para que parasse?

Ouvi 2 toques na porta e me sobressaltei. Por um segundo imaginei que fosse ela e imaginei como poderia dialogar a fim de lhe oferecer ajuda.

Abri a porta e ela já não estava mais lá. Duas cadeiras depois, uma senhora estava sentada. Peguei o prontuário em minha porta.

- Sra. Elizabeth Dawson. - A mulher entrou em meu consultório com Grace logo atrás para me acompanhar no exame. Olhando para fora, pude vê-la ir embora cabisbaixa e frágil. Suspirei.

Voltando para casa aquela noite, ouvi novamente o piano ao chegar passou-se alguns minutos até que desci do carro e segui novamente pelo mesmo caminho, me esgueirando entre as árvores para vê-la. Ela tocava suavemente, com apenas uma mão, porém era ágil. Pude ver as lágrimas em seus olhos.

Nunca tinha me envolvido na vida dos humanos dessa forma. Eu precisava de algum modo saber o que estava acontecendo e tentar ajudá-la, mas como? Talvez oferecer algum dinheiro para que fugisse? Parecia insano. Eu era o homem que a observava do interior da floresta, soa quase como um psicopata.

Ouvi novamente o carro se aproximar, imaginei que fosse o marido, mas não fui embora como da última vez. Precisava saber o que estava acontecendo naquela casa.