Capítulo I
Escócia no outono
Havia na língua materna palavras capazes de conjurar pensamentos e sentimentos mais românticos?
Isabella Swan deixou a bagagem escorregar até o chão, fechou os olhos e respirou fundo. Não, aquelas eram as palavras exatas, aquele era o país, e tinha duas semanas inteiras pela frente sem nada para fazer senão se divertir. Visitar as Terras Altas com o ar já carregado do frescor do outono era um sonho que se realizava.
— Ande, mocinha.
Isabella deslocou-se, ajudada por um empurrãozinho do homem a suas costas. Só então percebeu que estava bloqueando a saída da estação ferroviária. Mas tinha uma boa desculpa: aquele fora um longo dia. Ou melhor, sua viagem iniciada nos Estados Unidos já durava uns dois dias... nem sabia mais. Tinha a impressão de que não dormia na horizontal havia semanas.
Puxando a mala com uma das rodinhas emperrada, deteve-se à porta, olhou e sorriu ao notar as pessoas dirigindo do lado errado da rua. Em meio às conversas, suspirou de prazer ante o ritmo cantante.
Era melhor do que ousara esperar, e ousara esperar muito!
Então, sem poder evitar, bocejou, esfregou os olhos, ao que sacudiu a cabeça para se reanimar. Não tinha tempo para dormir. Havia muito para ver, muito a fazer. O repouso podia esperar. Desencostando-se da parede, ajeitou nos ombros as alças da bolsa de mão e da caixa do violino, segurou firme no cabo da mala que já não rolava e encaminhou-se à locadora de automóveis.
Meia hora e vários olhares dúbios depois, talvez porque ela bocejasse demais, tomava posse de um molho de chaves e de um mapa bastante tosco das Terras Altas. Guardou-o, esperando não precisar consultá-lo, já que pegara instruções de como chegar à hospedaria com o proprietário em pessoa.
Arrastou a bagagem para o carro, atirou tudo no porta-malas e conseguiu se acomodar ao volante do lado direito sem maiores confusões.
— Dirija do lado esquerdo — relembrou a si mesma, manobrando para fora do estacionamento.
Sentindo fortemente os efeitos da diferença entre os fusos horários, respirou fundo e pisou no acelerador. Aliviada por não atropelar ninguém, dali a pouco se viu saindo da cidade por uma rodovia que se estreitava e se tornava menos movimentada a cada quilômetro. Relaxando as mãos no volante, permitiu-se sorrir.
Estava na Escócia. Era quase bom demais para ser verdade!
Recordava com precisão o momento em que nascera seu fascínio pelo país, aos dez anos. Participado de uma conferência em Edimburgo, o pai lhe levara de presente a estatueta de um escocês tocando gaita-de-foles. Por algum motivo, a representação atiçara sua imaginação infantil. E o pai nunca deixara de lhe comprar uma lembrança, nas viagens subsequentes à Escócia: uma gaita galega de brinquedo, um kilt, livros. Os presentes só fizeram aumentar sua admiração pela terra que se orgulhava dos inúmeros lagos, da rica história e do povo independente.
Naturalmente, na adolescência, viera consolidar seu entusiasmo a fantasia de que um belo lorde escocês se apaixonaria loucamente por sua pessoa no instante em que a visse.
Durante anos, acalentara o desejo de conhecer as Terras Altas. Queria tocar as pedras com as próprias mãos, percorrer as trilhas imaginando quem passara por lá antes, e apreciar os braços de mar e as montanhas com seus próprios olhos, invejosa dos que podiam chamar aquela terra de lar.
Um tanto envergonhada, admitia ter nutrido também, ao longo dos anos, o sonho do nobre escocês a cortejá-la.
Felizmente, havia pouco tempo, fartara-se dos homens, ou estaria comprometendo a viagem de lazer com falsas expectativas amorosas. Após o rompimento do noivado, decidira passar uma década sem namorar, e simplesmente não conseguia imaginar um homem capaz de fazê-la mudar de ideia. Além disso, estava na Escócia para conhecer o país, não para encontrar um parceiro. O tal lorde escocês que procurasse outra.
Pondo de lado todas as fantasias impossíveis, concentrou-se nos campos e nas florestas carregadas de cores outonais. Baixou o vidro da janela a fim de inspirar o ar frio. Aquela era, de longe, sua estação do ano favorita a prometer manhãs revigorantes com desjejum repleto antes da tarefa de varrer as folhas, tardes tranquilas olhando pela janela, noites de leitura diante da lareira crepitante. Suéteres, botas, cachecóis: até a indumentária a agradava.
Adiante, admirou os charmosos chalés de pedra separados por muretas de pedra igualmente pitorescas, sem deixar de prestar atenção à estrada tortuosa que percorria. A medida que avançava para o interior, sentia consolidar-se a paz, a tranquilidade.
Até que viu, pelo espelho retrovisor, um automóvel preto colar-se em seu vácuo como se pretendesse passar por cima! Foi convidada a liberar o caminho com uma série de buzinadas.
O motorista emparelhou e fez questão de mostrar o semblante irritado antes de disparar cantando os pneus, obrigando Isabella a fechar a janela para não engolir uma nuvem de pó. Sem se deixar abalar, ela deixou o nervosinho tomar uma boa dianteira e voltou a aproveitar a viagem.
Sempre no rumo Norte, a estradinha tornava-se mais e mais tortuosa. Já acostumada ao lado esquerdo da via, a turista dirigia com maior segurança, evitando atropelar animais que insistiam em passear no asfalto. Nunca imaginara carneiros causando acidentes automobilísticos, mas lá estavam eles. Na Escócia, cuidado com criaturas brancas felpudas atravessando seu caminho!
Se ao menos os nativos atentassem ao conselho... Foi o pensamento que lhe ocorreu ao dobrar a curva seguinte e topar com um acidente de trânsito que a fez pisar no freio com toda a força.
O nervosinho que a ultrapassara pouco antes estava de pé no acostamento olhando desolado para seu lindo automóvel preto, que girara cento e oitenta graus e exibia um longo e profundo risco na lateral. Ao se desviar de carneiros na pista, ele arranhara o carro em uma mureta de pedra.
Isabella acelerou para a frente, bem devagarzinho. Só faltava que ela provocasse outro sinistro automobilístico! Abriu a janela, pôs a cabeça para fora e fitou o homem que resmungava sem parar em uma língua que ela supôs ser o gaélico. Ele estava quase arrancando os cabelos.
Detendo-se, o nervosinho olhou-a.
E ela sentiu a boca seca.
Tudo bem, estava morrendo de cansaço. Devia estar também estressada com o excesso de expectativas, além de enjoada, por conta da comida horrorosa servida no avião. E, considerando a vida social paupérrima que vinha levando, provavelmente qualquer um trajando calça jeans e suéter preto lhe pareceria um sonho transformado em realidade.
De qualquer forma, não havia como negar que o homem diante dela era lindo de morrer. Alto e inacreditavelmente bonito. Valente, tentou recordar por que banira de sua vida os espécimes masculinos. Não conseguiu, mas isso não importava. Aquele cara não precisava fazer nada para demovê-la da decisão.
E que personalidade tinha ele para combinar com o rosto perfeito e o físico impressionante! Charmoso, enérgico, porém cavalheiresco. Podia quase ouvir a resposta galante que ele daria a sua oferta de préstimos. Claro, era o mínimo que ela podia fazer.
— Precisa de ajuda? — indagou, em seu tom mais solícito. O homem reagiu gelado.
— Ajuda?! — rosnou. — Não, não há nada que possa fazer por mim, a menos que se disponha a seguir de batedora na minha frente e tirar do caminho todos esses carneiros inúteis!
Isabella piscou. Onde estava o cavalheirismo? Talvez tivesse ido por água abaixo diante do dano na pintura do carro. Insistiria.
— Quer uma carona?
Ele rosnou algo na língua estranha... uma imprecação, sem dúvida. Então, encaixou a mão no trinco da porta riscada do automóvel, escancarou-a e atirou-se na poltrona. Dando meia-volta com ímpeto, acelerou pela estrada em total abandono.
Isabella suspirou. Seu primeiro contato com a cultura nativa fora um fiasco completo, mas nem por isso se desanimaria. Afinal, ainda não atropelara nenhum carneiro, mantinha o carro alugado intacto e estivera frente a frente com um verdadeiro deus da beleza.
Nada mau, considerando-se as opções.
Engatou a primeira e seguiu em frente, cantarolando, ansiosa por um jantar decente e uma boa noite de sono. Quanto antes se adaptasse ao fuso horário local, melhor aproveitaria o tempo disponível.
O dia findava quando finalmente chegou ao vilarejo de Benmore. Com as instruções de Roddy MacLeod bem vivas na memória, dirigiu-se à hospedaria dele.
Estacionou ao lado de um automóvel de luxo, desligou o motor e suspirou profundamente. Sã e salva, cada vez mais perto de uma cama. Que mais podia querer?
Arrastou-se para fora do carro, pegou a bolsa e tirou o violino do porta-malas. Adentrou um vestíbulo limpo e arrumado, porém humilde. Adorou. Depois de dar mais alguns passos, porém, estacou.
Apurou o olfato.
O horror apossou-se de seu ser.
Não... não podia ser aquela água-de-cólônia!
Antes que reagisse, um sujeito de meia-idade de cabelos ruivos e tez rosada surgiu enxugando as mãos em uma toalha. Ele sorriu.
— Em que posso ajudar?
— Sou Isabella Swan — apresentou-se ela. — Fiz reserva.
O homem espantou-se.
— Srta. Swan? De fato, fez reserva, mas...
Bella ignorou a súbita pedra no estômago... e o odor familiar cada vez mais intenso.
— Telefonei antes de deixar os Estados Unidos. Para confirmar. É Roddy MacLeod?
— O próprio. — O hospedeiro parecia desconcertado. — É que... o sr. Black disse que a senhorita havia tomado outras providências na última hora...
Isabella cerrou os dentes.
— Impossível!
— Você é que pensa.
Olhando à direita, ela viu um vulto destacando-se do corredor em penumbra.
Jacob Black III. Seu ex-noivo. O homem que a largara sem emprego, sem moradia e sem um tostão.
— Você roubou minha reserva! — acusou, indignada.
— Era a suíte nupcial, mas muito simplezinha... Acho que não ia mesmo gostar.
— Inconcebível seria partilhá-la com você!
Jacob removeu um palito dentre os dentes e os sugou, provavelmente para limpá-los dos restos do almoço.
— Bella, precisa ter mais espírito esportivo...
Ela tentou recordar por que cogitara um dia desposar aquele tipo, que a dispensara um mês e meio antes da data marcada para o casamento, para ficar noivo de outra logo em seguida. Também adoraria saber o que ele estava fazendo ali, no interior da Escócia, arruinando suas férias!
— A comida não é má — prosseguiu , dando um murro camarada no braço do estalajadeiro. — Mas prefiro fast food!
Bella viu-se ofuscada pelos dentes perfeitos do ex-noivo e admirou seus olhos castanho, reconhecendo a aura de poder do advogado que comandava o escritório em que ela também já trabalhara.
— Devia aproveitar para fazer refeições mais saudáveis, Jacob — ralhou ela. — Sabe, frutas, verduras...
— Tenho um físico privilegiado — replicou o ex-noivo. — Posso comer o que quiser, e fico cada vez melhor. — Olhou-a. — Já você engordou um pouco. Pensei que fosse superar mais rápido a minha rejeição...
— Já superei — assegurou Isabella, resolvendo descobrir depois o que o desprezível Black estava fazendo no interior de sua Escócia em pleno outono. Dirigiu-se ao hospedeiro. — Quero outro quarto, já que este pulha roubou o que eu tinha reservado.
Roddy MacLeod torceu as mãos.
— É que... estamos lotados. Quero dizer, há um quartinho lá nos fundos...
— Serve — decidiu — Se tiver uma cama onde eu possa me deitar em um minuto...
— Tem — confirmou Roddy. — Nem vou cobrar nada...
— Faço questão de pagar — declarou ela. — Um preço justo. Não vou ficar de graça.
— É melhor aceitar a cortesia — aconselhou Jacob. — Está desempregada.
— Graças a você — relembrou Isabella.
— Ora, eu lhe fiz um favor tirando-a da disputa pelo cargo de sócia. Não teria dado certo. Olhe para si mesma. Um pouco de estresse, e já engorda...
— Pois saiba que continuo cabendo nos meus ternos e, se não me engano, você fez mais do que me tirar da disputa pela sociedade. Você me demitiu!
Fora logo após o rompimento do noivado. Com uma intervenção, Jacob interrompera de maneira irreversível sua meteórica escalada na DiLoretto, Delaney e Pugh Advogados Associados. Como se isso não bastasse, muito bem-relacionado em Seattle, ele conseguira fechar-lhe as portas de todos os escritórios de advocacia importantes, de modo que teria sorte se conseguisse emprego de auxiliar de cozinha quando voltasse.
— Barbie Patterson foi a melhor escolha — afirmou o ex-noivo, chupando o palito. — Menos propensa a fraquejar sob pressão. Menos argumentativa...
— Sou advogada. Devo argumentar. Quanto à eficiência de Barbie...
— Ela é péssima advogada, eu sei... mas é uma belezoca.
A foto dela vai ficar linda no relatório anual. Mas vamos logo ao que interessa. Qual o itinerário?
— Vá para o inferno!
— Já estamos no inferno. Não sei como conseguiu me convencer a passar a lua-de-mel aqui. Escócia, um país em que homens usam saia...
— Kilt — corrigiu Isabella.
— Xadrez — completou Roddy MacLeod.
— Não quero você perto de mim — avisou ela ao ex-noivo, e encarou o estalajadeiro. — Pode me dar a chave?
Roddy a atendeu.
— Pronto, moça. Lençóis limpos, banheiro no fim do corredor. Se precisar de alguma coisa, é só chamar. Prazer em servir.
Depois de decidir que o resto da bagagem pernoitaria no carro, Isabella tomou o corredor. Após rápida visita ao banheiro, adentrou o cômodo minúsculo e se atirou em cima do segundo melhor colchão de Roddy MacLeod. Decidiria o que fazer com as ruínas de sua vida no dia seguinte. Agora, só queria saber de dormir.
Escócia no outono.
Apesar de tudo, estava sendo quase tão fabuloso quanto ousara sonhar.
O último pensamento foi para o belo escocês que tanto se irritara com o estrago em seu automóvel preto: já estaria dormindo? Provavelmente, não, pensando no custo do reparo na pintura.
Ao menos, tivera mais sorte do que ele. Seu carro alugado estava intacto na frente da aconchegante hospedaria de Roddy MacLeod.
Adormeceu sorrindo.
