O despertador tocou às 5h da manhã, como todo dia. Rin costumava colocar esse horário porque nunca foi muito pontual, sempre se atrasava no banho ou se arrumando para o colégio. Em seus catorze anos de vida, ela conseguia ser a menor de suas colegas de orfanato mas também era a mais dedicada a subir na vida. Vivia naquele lugar desde que nascera, segundo a diretora do lugar, a Sra. Natsurigi, e a sua mãe morreu no parto e sabe-se lá quem seu pai era. Ninguém nunca viera procurá-la, então a sensação de estar sozinha no mundo já era conhecida há bastante tempo. Não ter sobrenome também era um dos problemas de ser uma órfã, principalmente uma órfã que pouca liga se tem sobrenome. Com Rin, as coisas funcionavam de maneira simplista.

Levantou da cama após resmungar um pouco, e ouvir resmungos de suas três colegas de quarto, e saltou da beliche em que dormia. Seria mais um novo dia para ela, assim como todos os outros. Após tomar banho, checou se o trabalho da escola estava terminado e guardou-o na mochila branca... que mais parecia cinza. Amarrou os tênis e saiu do orfanato comendo uma maçã rapidamente. Até chegou no colégio, teria que pegar o metrô e depois um ônibus, pois o orfanato era extremamente longe do centro de Tóquio.

O orfanato da Sra. Natsurigi chegava ser perto da zona rural da capital do Japão, então Rin andava cerca de quarenta minutos até chegar no metrô. Essa era sua rotina todos os dias, tirando os finais de semana que procurava um bico para ganhar dinheiro e assim economizar para a faculdade. O sonho da pequena Rin era se formar em biologia e ser professora, ser uma bióloga marinha. Ou das águas doces mesmo. Para isso, ela teria que estudar muito e, caso não consiga, pagar a própria faculdade. Por isso que seu colégio não era um qualquer, estudava na Academia de Kyoto, que na verdade ficava em Tóquio. As coisas são contraditórias mesmo, mas já estava acostumada com essas confusões. A Academia era um órgão do governo que permitia apenas alunos com algum tipo de talento entrar lá, e no caso da pequena Rin era simplesmente a sua vontade de aprender.

No próximo ano, daqui cinco meses, ela entraria para o ensino médio e aí as coisas iriam finalmente caminhar para ela. Por enquanto ela só fica com o mais básico das matérias, mesmo sendo extremamente puxado, no ensino médio que começariam os estágios. Mas até isso acontecer, Rin ainda tinha longos cinco meses pela frente. Quando chegou no centro de Tóquio, reparou que um festival acontecia na praça das cerejeitas e então olhou para o relógio no pulso.

Tenho mais vinte minutos.

Enquanto atravessava a imensa avenida, notou que vários carros de luxo estavam estacionados ao redor, e uma barreira continha os curiosos que ali estavam separados. Parecia ser uma festinha privada, mas aquela hora da manhã? Um coquetel, talvez. Mas mesmo assim, ainda era cedo demais para festas e ainda mais em uma segunda-feira. O segurança era um youkai de baixo nível que só servia para afastar os humanos lá de dentro. Os youkais de baixo nível serviam os youkais de médio e alto nível, então Rin supôs que aquela festinha, coquetel, que seja, estava sendo reservada apenas para os youkais de médio e alto nível.

Todo mundo sabe como funcionava a hierarquia youkai, embora fosse extremamente difícil entrar nela, conhecê-los de verdade. Só as famílias mais ricas e poderosas tinham acesso ao mundo deles, o que tornava mais misteriosa ainda essa relação de youkais e humanos que é meio que proibida por muitas famílias youkais, e humanas.

A grama estava verdinha mesmo com o final do verão e o início do outono, o clima naqueles dias estava perfeitamente agradável. Recolocou sua mochila cinzenta nas costas e deu de ombros, não ganharia nada ali junto com aqueles curiosos. Andou ao redor da praça das cerejeiras sozinha, mesmo sendo sua vontade permanecer com os curioso de plantão. Tenho que estudar. Era a cruel verdade da sua vida, mal tinha tempo para suas diversões ingênuas. Foi quando um youkai de baixo nível apareceu mandando embora uma mulher humana vestida de garçonete.

- Vá roubar as taças de cristal da sua mãe! – vociferou o youkai vestido em um terno preto de segurança, jogando a mulher no meio-fio sem cerimônia alguma. Como era a parte mais isolada da praça das cerejeiras, só Rin viu aquela cena e resolveu ajudar a moça a se levantar.

- Que coisa feia a se fazer! – Rin o advertiu corajosamente, mesmo sabendo que sua meninez de catorze aninhos não assustaria nem um gato – O que ela fez para merecer isso?

O youkai era até bonito, mas incrivelmente estúpido.

- As taças são de cristal árabe, valem uma fortuna cada uma e tenho certeza que uma mulher digna não as roubaria, o que acontece diferente dessa moça que você está ajudando a se levantar – explicou o youkai rapidamente, olhando para trás. Parecia um tanto quanto nervoso, ou ansioso... ou pensativo. Isso fez as sobrancelhas da menina arquearem – Mas agora precisamos de alguém para substituí-la. São muito convidados e esse acontecimento me faz sair do cronograma que a Sra. Taisho me repassou quinhentas vezes. Pelos céus!

Rin olhou no relógio de pulso novamente.

Tenho dezesseis minutos. Meu Deus.

- Não tem como me admitir de novo, senhor? – pediu a moça choramingando após Rin a levantá-la por completo – A Sra. Taisho não perdoa erros, principalmente nas cerimônias que acontecem por causa do seus filho caçula.

Rin coçou a cabeça.

- Porque? – perguntou curiosa para a moça, esta deu de ombros.

- É um rapaz problemático e essa festa é o noivado dele com uma humana, o que piora as coisas bastante – respondeu a mulher, ela parecia ter seus trinta e cinco anos e tinha um jeito que lembrava a diretora do orfanato. Rin piscou algumas vezes tentando compreender a gravidade da situação, mas ela não via com tanta clareza assim, e a moça percebeu sua confusão – Hanyou e uma humana... grávida. Tudo tem que sair perfeito, ah, e quero meu bônus de garçonete!

O youkai balançou a cabeça, parecia que não admitiria nenhuma idéia vindo da mulher que aparentemente queria roubar as taças árabes.

Será quanto que custa isso?

Rin não tinha a menor idéia.

- Uma garçonete em falta seria um problema... – raciocinou o youkai colocando a mão em seu queixo, apoiando-o, até que seus olhos brilharam quando voltou seu olhar para a menina Rin – Você!

A pequena olhou para o lado esquerdo, depois para o lado direito, para trás e para frente.

- Eu? – perguntou confusa – O que eu tenho a vez com isso?

O youkai chamou outro youkai de baixo nível e falou algo em seu ouvido, logo saindo dali rapidamente.

- Menina, qual o seu nome? – perguntou apressado enquanto o outro youkai lhe entregava uma roupa um tanto quanto esquisita, deixando-a ligeiramente corada.

Era diferente da simples roupa de garçonete que a mulher estava usando. Um quimono rosa-bebê com uma obi em um claro tom de laranja, estava ainda na caixa quando o youkai que conversava com elas abriu a tampa.

- A festa de noivado ainda não começou, mas este é o uniforme das garçonetes – começou a explicá-la enquanto o outro youkai pegava a mulher e a colocava do outro lado da rua, falando em seu ouvido de forma não muito educada – Aquela mulher ali não era a real garçonete, estava cobrando o turno de outra que faleceu ontem. As garçonetes que tem ser jovens vestidas em roupas tradicionais japonesas, segundo a ordem da Sra. Taisho. Estão fazendo de tudo para que a tradição japonesa dos youkais fique intacta pelo menos neste momento. É complicado, não sei se uma menina como você entenderia o meu desespero em contratá-la apenas para não ter problema para mim.

Oi?

Rin mordeu o lábio inferior, não entendia porque uma só garçonete faria falta naquela festa de noivado. Parecia que seria uma festa de arromba, então mais uma... menos uma... tanto faz, não é?

Não para a vida dessas socielites.

Se bem que estava pagando, então queriam ver todo mundo que recebiam seu pagamento.

- Mas... – Rin pensou antes de falar, enrolando o longo cabelo negro em uma trança mal-feita - ...por que eu?

O youkai revirou os olhos impacientemente.

- É novinha e usa o uniforme da Academia de Kyoto, para mim é mais que suficiente de que você está apta para o serviço - ela abriu um sorriso agradecido, adorava quando admiravam a escola em que estudava, sendo uma pessoa extremamente confiável – Vamos logo, entre nas tendas para se trocar. Enquanto isso, a mestra de cerimônia lhe explicará tudo para que não haja erros.

- Mas e-eu... – o youkai de baixo nível puxou-a pelo colarinho do uniforme escolar da Academia de Kyoto, fechando a barreira para ninguém mais adentrar o espaço - ...espera, eu só usei um quimono três vezes na minha vida, e era alugado!

O youkais parecia nem querer saber, apenas a arrastava para dentro das tendas brancas onde os funcionários estavam se arrumando e repassando os detalhes. O olhar admirado que Rin lançou para as guloseimas fez com que uma moça começasse a rir da sua cara, deixando-a corada a partir do momento que percebeu que era ela que gerava risos. A mestra de cerimônia era inconfundivelmente uma mulher que trabalha na televisão como apresentadora, sabe-se lá o que ela fazia naquela festa... talvez uma mestra de cerimônia... mas continuava sendo estranho. O povo da televisão era bem chique para um trabalho desse.

Ou talvez os youkais sejam mais chiques ainda.

Rin entrava em contradição a cada comida gostosa que pousava seus olhos, até que a mestra de cerimônia soltou um pigarro elegante.

- Essa menininha irá substituir aquela ladra, não é? – perguntou a mestra de cerimônias anotando em um iPad sabe-se lá o quê, mas primeiro deu uma olhada de corpo inteiro em Rin, que corou – Bem, não é um má escolha. Estuda na Academia de Kyoto, isso é muito bom porque aí já coloco considerações de onde reclamar caso haja algum erro ou engano com algum convidado.

Opa.

Ela engoliu em seco com uma possível advertência de gente poderosa contra ela na Academia. Não seria nada legal ver o seu sonho escorrer por entre seus dedos.

- Não deixarei nada cair – afirmou com pouca convicção, embora tenha disfarçado suficientemente bem para ninguém desconfiar. A mestra de cerimônias anotou mais algumas coisas no iPad e logo deu uma olhada de corpo inteiro na menina – Err... eu não sou boa em andar de quimono.

- Não tem problema –a mestra de cerimônias deu de ombros, e Rin a lançou um olhar incrédulo... como assim 'não tem problema'? Você tem problema?! – Faça de tudo para não cair porque não será só a sua cabeça que irá rolar, a Sra. Taisho é muito rígida com normas, principalmente neste noivado que é uma piada para os jornais sensacionalistas. Manchou bonito a reputação dos Taisho, isso sim manchou. Mas então, garota, é bom você se arrumar... e... err... o que eu farei com esse seu maldito cabelo?

Os vários nós nas pontas do cabelo negro da menina só poderiam sair com uma tesoura, mas parecia que a mulher não tinha muito tempo a perder com ela. Abrindo um sorriso sem-graça, Rin deixou a mulher mexer em seu cabelo até que fizesse um coque e prendesse com o adereço que todas as garçonetes pareciam usar: um cabo fino que na ponta jazia uma cascata de flores de cerejeira de plástico.

- Aquela mulher ali... – a mestra de cerimônias apontou para uma velhinha que arrumava a obi das garçonetes - ...irá te ajudar com o quimono. Agora vá, o tempo está contra nós. Pelos céus! Os Taisho já chegaram? Ai, meu Deus! Me acudem, levem essa garota pra usar aquele maldito quimono. Maldito seja esse uniforme, detesto quimonos. Malditos!

Antes de ser levada para a velhinha, Rin reservou um olhar curiosa para aquela apresentadora da televisão que parecia muito chiques nas telas. Era meio esquisito conhecer alguém famoso assim, e depois descobrir que era uma pessoa um tanto quanto divertida, mas ainda meio desagradável. As pessoas, para Rin, tinham duas facetas: a agradável, e a não tanto assim. Não por ser nova, mas a Academia de Kyoto chamava-lhe a atenção em relação a sua ingenuidade perante o mundo.

Como se eu fosse aprender.

Seu aprendizado tinha um limite, mesmo sendo difícil de acreditar, Rin ainda confiava nas pessoas.

No que a velhinha terminou de ajudar a vestir o quimono, que parecia mais um cano que enrolaram Rin até ela perder quase que completamente todos os seus movimentos livres, a mestra de cerimônias reuniu todo mundo e repassou todas as instruções. A pequena ficaria no pavilhão dos youkais mais antigos, o que surpreendeu a menina foi saber que muitos ali tinham mais que quatrocentos anos. Era inacreditável pensar algo do tipo, já escutara boatos a respeito mas nunca lhes deu devida atenção. Quando perguntou porque ela ficaria nesse setor, os outros soltaram risinhos maliciosos.

- Você está cobrindo a ausência de quem cobria outra ausência, então não tem treinamento nenhum – explicou a mestra de cerimônias sem tirar os olhos do iPad – Se te colocar em um setor onde tem mulheres demais, principalmente aquelas que amam criticar tudo que fazemos, como a Sra. Taisho, provavelmente será massacrada e minha cabeça que irá rolar. Se você fizer algo errado no setor dos youkais mais velhos, bem, o máximo que eles farão é te chamar no canto.

- 'Me chamar no canto'? – repetiu confusa, fazendo a mulher revirar os olhos – Tá, então ficarei no setor dos youkais mais velhos. Já entendi.

Rin olhou para baixo quando lhe entregaram a primeira bandeja de champanhe (mas eles não queriam usar do tradicionalismo japonês? Cadê o sakê?), não sabia se aqueles tamancos iriam permitir um movimento livre para entregar as taças de cristal árabe para aquele povo.

Ainda não achei esse tradicionalismo japonês nessas taças.

Mas fazer o quê.

O mundo era cheio de contradições mesmo.

Ela olhou para a grama, depois olhou para o horizonte em que acontecia a enorme festa de noivado. Então respirou fundo e deixou de pensar em quanta matéria perderia naquele dia na Academia, estaria fazendo um bem para muitas pessoas e talvez aquilo fosse o suficiente no momento.

O convidados começaram a sentar, conversando tranquilamente sobre coisas que Rin não conhecia, e assim começou o seu trabalho em silêncio para não errar nenhum passo ou compasso. Respirava fundo antes de entregar as taças de cristal árabe para aqueles youkais bonitos, ou esquisitos, e assim apenas se concentrou no trabalho ali. Foi quando ela lembrou de algo essencial ao mesmo tempo que se debruçava na mesa de um youkai extremamente bonito, mas tinha um jeito frio e fechado meio esquisitão.

Cinco taças de champanhe caíram em cima da mesa, respingando em todos eles e sujando a toalha da mesa, ou melhor, encharcando-a. Aquelas taças eram muito boas mesmo, de fato mereciam todo o cuidado de todos. Mas o que a assustou ainda permanecia em sua mente mesmo depois de ter aprontado aquela confusão.

Rin colocou a mão na frente da boca, que parecia não querer fechar mais, e assim ficou ali em silêncio olhando para o nada. O gritinho de horror que era havia dado assustou um dos youkais, que a olhava como se ela fosse louca.

Todo mundo ao redor olhava para ela, que estava perdida dentro de si.

- Garota, está tudo...

- MEU DEUS! – exclamou em um berro – MEU TRABALHO DE ÁLGEBRA!

Rin simplesmente retirou aqueles tamancos pesados, deixando-os largados no meio da festa, e correu até as tendas.

Como pude me esquecer?

Ela dependia daquele trabalho para passar de ano em Álgebra, então entregá-lo estava no topo da sua lista de prioridades... e foda-se aquela chiqueza toda.

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