- Prólogo -

OS TRÊS ESTÁGIOS DA PERDA


I


And as I watch you disappear into the ground, my one mistake was that I never let you down. So I'll waste my time, and I'll burn my mind...
I'm miss nothing, I miss everything.

- Miss Nothing, The Pretty Reckless


Ela entrou pela porta da casa e jogou o próprio corpo contra a porta, fechando-a. Os olhos fechados, o corpo cansado, a mente confusa. Seu mundo parecia subitamente irreal. A casa escura. Todos as luzes apagadas. O silêncio mortal. Nada daquilo fugia da rotina. Kate escorregou pela porta até atingir o chão. Teria soltado um suspiro de alivio e dado um sorriso, como sempre fazia quando tinha tido um dia ruim. Mas a voz dele não veio. Não escutar uma ironia qualquer e sentir seu rosto se aproximando para um beijo de boas-vindas rompia a familiaridade da cena; quebrava a realidade em pequenos cacos afiados. Eles arranhavam sua sanidade, criavam fissuras, marcas cruéis e dolorosas que a faziam querer mergulhar na fantasia e no esquecimento. Prendeu a respiração sem saber, jogando a cabeça nas mãos. Não sabia mais como lidar com aquilo já havia décadas. Não houvera necessidade, por muito tempo.

Beckett levou um susto quando sentiu mãos em seus joelhos, e abriu os olhos, liberando o ar dos pulmões. A esperança a preencheu numa torrente, mas o desapontamento a queimou como ferro em brasa logo após.

Alexis estava ajoelhada à sua frente, num desespero silencioso. A garota lançou o olhar úmido à detetive. Kate estendeu os braços e deixou que a menina deitasse em seu colo, acariciando seus cabelos com carinho, ouvindo-a soluçar baixo e sentindo suas mãos se agarrarem com força em sua blusa. Podia ver a si mesma, há vinte e cinco anos. Era um pouco mais nova quando perdera a mãe. Seu pai cometera o erro de desmoronar pelos dois, e ela não faria aquilo. A frase já se apresentava como um clichê, a essa altura, mas era verdade: precisava ser forte. Considerava Alexis sua filha, precisava estar ali, diminuindo a tragédia, ou talvez nenhuma das duas aguentasse.

Beckett não ousava dizer nenhuma palavra. Não adiantaria muita coisa. Nada que saísse de sua boca iria ajudar; não se sua voz deixasse a garganta tremula, cortada e frágil. Não se ela mesma não quisesse estar deitada no colo de alguém, chorando. Alexis não precisava de palavras incertas. Precisava apenas de alguém que compartilhasse o peso até que chegasse o momento em que o desespero se transformasse em aceitação, e as lágrimas viessem apenas por reflexo.

Não demorara muito até que a ruiva dormisse em seu colo. Estava exausta. Aquele tipo de dor esgotava qualquer um.

Fossem as duas alguns anos mais nova, Beckett não hesitaria em levá-la no colo até o quarto. Mas já tinham passado um pouco da idade em que isso era possível. Odiava ter que tira-la de seus sonhos, o único lugar de conforto que tinha no momento; mas era necessário.

Ficou sentada ao lado de sua cama, observando-a soluçar baixo até dormir, como sabia que ele tinha feito por muito tempo, quando ela era pequena. Tinha ouvido as histórias... Beckett quase sorriu pelas lembranças.

Era difícil acreditar que memórias e algumas fotografias eram tudo o que restara.

Ou talvez mais que apenas memórias.

Kate se levantou com cuidado da borda da cama. Deixou um beijo demorado na testa de Alexis e acariciou os fios ruivos por um momento, vendo o legado dele na geniosa menina. Saiu do quarto da garota fechando a porta sem fazer barulho e voltou à escuridão fria da sala de estar. Seus passos pareciam automáticos. Deixou-se caminhar até o escritório sem perceber o resto do mundo ao seu redor. A relativa estabilidade em que se encontrava sumiu assim que atravessou as estantes, se colocando em frente à mesa de madeira polida.

Folhas de rascunho, canetas, lápis, borrachas, clipes de papel, livros, jornais e revistas abertas na página de criticas. Tudo jogado sem a menor cerimônia, dividindo espaço com uma garrafa de Jack Daniel's nunca aberta e um MacBook ainda ligado, assim como ele havia deixado na noite anterior.

Sentou-se na cadeira colocando o computador no colo. A senha não era seu nome, ou o nome da filha, mas o dele próprio. Muito pouco segura, ela pensava, mas perfeita para um incurável narcisista. Richard Castle, digitou. A tela exibiu o brilho do editor de texto, aberto em um documento em branco, sem título. Ela nunca tinha visto aquilo. Telas em branco naquela casa não existiam.

Beckett apoiou os braços na mesa, e abaixou a cabeça sobre eles. Se sentia como o arquivo em sua frente. Em branco. Incapaz se preencher o espaço vazio que sobrara. Era ele quem sempre fizera aquilo, ele era o escritor. Era dele a obrigação de escrever a história dela, de preenche-la com palavras, gestos, sentimentos, reações; de apagar as páginas antigas e mal escritas de seu passado e dar forma a seu futuro.

Ela seria uma história inacabada. Como os livros de um autor que morre antes de conclui-los. Esquecida em um arquivo até que, talvez, alguém com coragem suficiente surgisse para tentar completar a obra. Sem nunca conseguir se comparar com o autor original.


N/A: Classificações podem, e provavelmente mudarão. Essa fic começou a ser escrita nesse exato momento, então não sei pra onde vai. Tenho algo em mente, mas também tenho a mania de mudar tudo na metade do caminho. Quem já leu fic minha sabe que meus primeiros capítulos são praticamente prelúdios, quase one-shots que não dizem muita coisa de nada. Nesse caso, o primeiro capítulo constata o óbvio. Nos próximos, vou dar uma de Frankenstein e fazer dessa fic um experimento... Sejam minhas cobaias, por favor. Caso aceitem... estejam preparados pra uma overdose do meu drama desnecessário.