Sem Limites no Céu
I – Imensidão Azul
Conhecia muito bem aquela sensação: estava sendo observado. Depois de tantas experiências ruins no ensino médio, ele conseguia identificar muito bem quando os olhos de outras pessoas pesavam sobre seus ombros. "Então endireite as costas! Isso não é postura de um Ás", diria Daichi, assustador como sempre. Suga, por sua vez, usaria um tom mais gentil. Provavelmente recomendaria a ele que não pensasse em coisas tão negativas. "Se você aprender a ignorar esses comentários, não será mais afetado por eles!" Suspirou. Suga e Daichi estavam a quilômetros e quilômetros dali, enquanto as pessoas que o observaram estavam a uns poucos passos de distância. E ainda que seus amigos estivessem muito longe, ele sentiu os soquinhos imaginários em suas costelas e pôde ouvir as vozes irritadas dos dois ecoando em sua mente. "Tome jeito e encare as coisas de frente!"
Com algum custo, ele deixou de lado a pilha de latas e se virou lentamente em direção ao corredor. Seus olhos recaíram sobre dois garotos – tinham, no máximo, 15 anos de idade – que cochichavam entre si. Deu um passo adiante e sua sombra negra cresceu sobre eles, fazendo com que ambos o encarassem. Logo se lembrou das histórias sobre delinquentes que roubavam lojinhas. "Você é grande e forte. Com certeza vai dar conta deles!", foi a única orientação que Sazaki-san lhe dera sobre o tema durante o treinamento que recebeu quando começou a trabalhar – se é que se pode chamar de treinamento um pouco mais de meia-hora de instituições extremamente simples. Ao menos a senhorinha não disse que ele era "assustador". Os olhos dos rapazes brilhavam tanto que pareciam soltar faíscas. Os dois se aproximaram a passos largos e o examinaram da cabeça aos pés. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, os meninos se adiantaram:
- Viu?! Eu disse que era ele! É o Ás da Karasuno! – um deles falou tão alto que sua voz ecoou por toda a loja.
- Legal! Nossa, você é enorme! Não é à toa que suas cortadas são tão fortes! – o outro tentou imitá-lo, saltando no ar de forma destrambelhada para enterrar uma bola invisível no chão de uma quadra imaginária.
- Eu vou para a Karasuno jogar vôlei ano que vem! Quero ser igual a vocês!
- E eu também! Você e o baixinho ruivo eram demais em quadra!
- O-obrigado!
Foi tudo o que Asahi Azumane, do alto de seus quase 1,90 metros de altura, conseguiu dizer. Nenhum dos meninos notou seu constrangimento, embora tivesse o rosto tão vermelho e quente que parecia estar com febre.
- Ei, o que estão fazendo? – uma mulher chamou a atenção dos dois garotos. Tinha as mãos cheias de sacolas de compras – Estão incomodando esse moço?
- Não, mãe! Ele é o Ás da Karasuno! Ele é um craque no vôlei!
Ela também se aproximou. Tinha os olhos tão arregalados que pareciam ser capazes de engolir o grandalhão por inteiro. Asahi tentou manter o melhor sorriso possível no rosto, enquanto o suor frio ainda escorria por suas costas.
- Oh, eu me lembro! Vocês foram demais no Torneio da Primavera! Só precisam parar com essa mania de deixar a decisão sempre para o último set! Não imagina como todo mundo fica nervoso na arquibancada!
Qualquer jogador iria rir daquela constatação, mas Asahi continuava sendo Asahi: pediu desculpas por causar tanto nervosismo entre os torcedores e agradeceu aos elogios com uma série de mesuras exageradas. Os dois garotos não lhe deram sossego até conseguirem autógrafos em seus cadernos escolares.
- Quando será o próximo jogo de vocês? – um dos rapazes perguntou.
Essa era a parte das conversas com fãs que Asahi menos gostava, pois ele já sabia como as pessoas reagiam à sua resposta. Fechou os olhos e encheu os pulmões de ar antes de prosseguir:
- Bom... como eu me formei ano passado, não sou mais parte da Karasuno.
- Sério?! Mas então você vai jogar pela faculdade agora, não? Onde você está estudando?
O coração de Asahi parou e ele sentiu o chão desaparecer debaixo dos pés. Nunca ninguém ousara ir adiante e lhe perguntar aquilo. A maioria das pessoas era mais discreta ou costumava entender sua situação muito bem quando ele respondia à fatídica pergunta sobre o "próximo jogo". Seu silêncio eliminou qualquer dúvida que a mulher poderia ter: não havia uma universidade em Torono e ele ainda morava ali. A mãe se despediu num tom seco, levando os dois garotos consigo de forma um tanto brusca – os meninos ainda acenaram para ele ao sair da loja. Seu coração de vidro trincou enquanto ele se esforçava para acenar de volta.
Fechou os olhos e recostou-se na prateleira mais próxima. Levou alguns minutos até se acalmar. Ele já devia ter se acostumado a abordagens como aquela, afinal, foi o status como campeão do Torneio da Primavera que lhe garantiu o emprego. "Você é um excelente chamariz! Todos querem vir aqui para conhecer o Ás da Karasuno!", Sazaki-san lhe revelou certa vez. A verdade é que ele nunca conseguiu se habituar aos estranhos que pediam para conversar ou tirar uma fotografia. Asahi se sentia desconfortável em ser o centro das atenções fora das quadras, mas era incapaz de dizer 'não'. Nos primeiros meses de trabalho no mercadinho, passava boa parte de seu turno atendendo aos fãs da Karasuno. Sazaki-san não se importava: atribuía a ele o aumento no movimento da loja.
O time da Karasuno de 2012 fez história ao vencer o Torneio Nacional da Primavera após várias edições sem participar da competição. Não tiveram o melhor desempenho por parte de uma equipe vencedora, contudo ninguém podia negar que a campanha foi emocionante. Apesar de uma certa descrença inicial, os jogadores ganharam um apoio considerável da cidade de Torono e até mesmo os jornais locais acompanharam os últimos jogos. Com o tempo, as coisas mudaram e a maioria das pessoas foi se esquecendo de sua conquista. A edição de 2013 do Torneio Intercolegial se aproximava e novos atletas estavam prontos para defender as cores da Karasuno, enquanto Asahi continuava ali. De ídolo da vitória do ano anterior, ele se converteu em apenas mais um atendente do Mercado Sazaki – e Asahi acreditava que, para a maioria dos cliente, ele não passava de um fracassado.
Essa era a parte que mais machucava. Não tanto por causa do que os outros pensavam – embora isso, por si só, já fosse suficientemente doloroso –, mas sim pelo fato de que Asahi reconhecia que ele nunca tentara alçar voos mais altos por causa de uma série de medos. Ingressar na faculdade era um passo que ele considerava muito maior do que suas próprias pernas. Por diversas vezes, prometeu a si mesmo que voltaria a estudar para os exames admissionais, mas os livros permaneceram guardados em um armário no porão de casa. Em Torono, a probabilidade de erros era muito baixa. Baixíssima. Aquelas ruas tão conhecidas e sua rotina diária lhe davam a sensação de segurança. Tudo era previsível. As pessoas acordavam sempre no mesmo horário, cumpriam seus afazeres, se divertiam com as mesmas coisas, dormiam um sono tranquilo. No outro dia, acontecia tudo de novo. E de novo. E de novo... Odiava admitir, mas era cômodo não ter de lidar com o inesperado.
- Aquela moça não foi nada legal com você, mas não se esqueça de que os meninos te acham um herói. Isso é o que importa!
Abriu os olhos repentinamente, piscando-os por algumas vezes. A voz de sua consciência nunca soava tão alta e nem costumava ter pensamentos positivos como aquele. Então, percebeu que ainda estava sendo observado. Era uma sensação diferente, porém: Asahi se sentiu acolhido, envolto em um calor quente que acalmava seu coração cheio de dúvidas. Virou o rosto para o lado e seus olhos finalmente encontraram um sorriso luminoso que se estendia de orelha a orelha no rosto mais lindo do mundo.
- N-Nishinoya! Há quanto tempo você está aqui?
O líbero tinha as mãos cruzadas atrás da cabeça. Os cabelos arrepiados pareciam brilhar diante da luz. Vestia uma camiseta alaranjada com os dizeres "Exército de um homem só" em inglês, bermuda preta, e tênis. Como sempre, chegou a tempo de impedir que seu coração de vidro se espatifasse no chão.
- Uns dez minutos, mais ou menos. Ia te chamar, mas você estava todo concentrando no seu castelo de latas que achei melhor você terminar o serviço primeiro. E depois você começou a conversar com os meninos. Você realmente leva jeito com crianças, Asahi-san!
O suposto castelo era na verdade uma pirâmide e não, ele não tinha jeito com crianças. Porém, Asahi não retrucou. Uma das coisas que ele mais gostava em Nishinoya era sua capacidade de pensar positivo. E um castelo é bem mais legal do que um mausoléu, assim como um herói é bem mais divertido que um atendente de mercadinho. Quando as palavras vinham da boca de Yuu, Asahi até mesmo se sentia como o heroico senhor de um grande castelo.
- Eu já estou terminando. Você precisa de alguma coisa?
- Quanta formalidade, Asahi-san!
- Ah, desculpe, é força do hábito! – ele corou, fazendo Nishinoya rir. Todos os que entravam na loja deveriam tratados como clientes em potencial – Vocês não tiveram treino hoje cedo?
Nishinoya sacudiu a cabeça.
- Ukai-san cancelou o treino hoje. A semana de provas começa segunda-feira e ele quer que todos tirem boas notas ou não vamos para o acampamento de verão. Então passei a manhã em casa, estudando.
- Você? Estudando sozinho? Não consigo imaginar isso!
- Desde quando você é tão maldoso, Asahi-san?
O líbero lhe acertou um soquinho no braço. O grandalhão apenas riu. Tinha certeza que parte daquela sessão de estudos havia incluído algum seriado ou videogame. Ele conhecia Nishinoya muito bem, afinal.
- Desculpe, eu não resisti!
- Já que você é um amigo tão ruim, talvez você não queira almoçar comigo!
Borboletas se agitaram em seu estômago. "É apenas mais um convite para o almoço. Nada demais!", dizia sua cabeça. O coração, por sua vez, teimava em entender aquilo como o pedido para um encontro. Difícil pensar o contrário uma vez que Nishinoya agia como se qualquer saída deles fosse uma grande aventura e transformava toda refeição que tomavam juntos em um banquete. Aquilo tudo era muito mais do que Asahi esperava e também muito menos do que deseja. Nishinoya estava sempre tão perto e, ao mesmo tempo, muito distante. Suas mãos podiam abraçá-lo, mas ele não sabia como Yuu iria reagir. Sua boca poderia pedir um beijo, mas talvez isso significasse o fim de sua amizade. E Asahi estava disposto a tudo para preservar aquele relacionamento, mesmo que, para isso, tivesse de esconder o que realmente sentia.
- Bom, esse silêncio deve dizer "não".
- Não! Digo, sim... Quero dizer... eu... eu aceito almoçar com você! Eu saio em vinte minutos.
- Legal! Vou comprar um GariGari-kun e te espero lá fora!
Sorvete antes da refeição. Isso era bem a cara de Nishinoya. Mas Asahi não mudaria nada na personalidade do líbero.
Era difícil dizer quando exatamente começou a gostar de Nishinoya. Durante o colegial, líbero foi uma das pouquíssimas pessoas que nunca se intimidaram com sua aparência e, desde que se conheciam, buscava se aproximar dele. De início, Asahi sentia um grande desconforto com aquele rapaz tão pequeno e, ainda assim, dono de uma personalidade gigante. Nishinoya era seu oposto: falava alto, explodia em gargalhadas diante da menor besteira, nunca se dava por vencido... Quando deu por si, estava perdendo o sono, tentando o que entender o que sentia por aquele baixinho enérgico.
Seus colegas falavam de garotas, de namoro, de peitos enormes em revistas que circulavam às escondidas pelos corredores da escola... A figura da doce Kiyoko Shimizu rondava o time, mexendo com os ânimos daquele bando de moleques cheios de hormônios. Asahi às vezes se deixava levar pelas brincadeiras, porém, no fundo, sabia que era diferente. A convivência com Nishinoya apenas lhe confirmou isso. E ninguém melhor do que Asahi sabia que ser diferente nem sempre é algo bom, especialmente durante a adolescência. Lutou contra aquele sentimento ao mesmo tempo que Nishinoya se esforçava para vencer a distância entre eles. A cada treino, ficava mais difícil resistir e, embora se sentisse culpado, também ficava absurdamente feliz. Demorou algum tempo até que Asahi admitisse que não havia como fugir da verdade: estava apaixonado por Nishinoya.
Nem mesmo o vexame perante a Dateko foi o suficiente para fazer com que o líbero desistisse dele, por mais que Asahi tivesse certeza de que não passava de um peso morto para o time. Como uma verdadeira Divindade Guardiã, Yuu insistiu até resgatá-lo e trazê-lo de volta à equipe. Seu coração frágil começou a ter ideias. "Talvez ele goste de você". Quando tal pensamento cruzou sua mente pela primeira vez, não soube como reagir. Tinha medo de perder o pouco que havia reconquistado. Procurou enterrar o sentimento bem fundo em seu peito, esperando esquecê-lo.
O que aconteceu foi justamente o contrário: com o tempo, desejou cada vez mais que Nishinoya o correspondesse. Sentia um calor gostoso quando estava próximo dele. Corava ao receber seus elogios e atacava com toda a força para aproveitar as bolas salvas por Yuu. Comemorava com ele, treinavam novas jogadas juntos, discutiam estratégias para utilizar quando ambos estivessem em quadra. Gostava de ver Noya sorrir quando fazia uma defesa impossível. Queria consolá-lo quando não ia bem em um jogo ou em uma prova e, até mesmo, deixava que o líbero brincasse com seus cabelos compridos. Quando Yuu faltava em um treino, era como se parte dele próprio estivesse ausente. E quando o mais novo abria a porta do ginásio, com seu sorriso gaiato, Asahi sentia o coração bater mais rápido.
Dos antigos colegas de time, era com quem tinha maior contato, uma vez que a casa de Yuu não ficava tão longe do mercado. O líbero costumava passar por ali quase todos os dias, pelo menor dos pretextos, apenas para que pudessem jogar conversa fora. E, todos os dias, Asahi tentava se convencer de que aquela camaradagem era o suficiente. A cada semana, se tornava mais difícil acreditar em si mesmo.
- Azumane-kun, se você quiser, pode sair assim que terminar de empilhar as latas. E, por favor, dê muitos conselhos a Nishinoya-kun para que a Karasuno possa vencer de novo.
- C-certo, Sazaki-san!
A senhorinha sorriu gentilmente e voltou a se ocupar do caixa enquanto lia uma revista de fofocas. Asahi mais do que depressa terminou de empilhar as latas de refeição instantânea. "Uma deliciosa opção para almoço ou jantar! Basta acrescentar água fervente e aguardar 3 minutos!", alardeavam os rótulos coloridos. Ao menos algumas coisas na vida eram fáceis de se resolver...
Olhou em direção à vidraça que dava para a rua. Lá fora, o céu de verão se estendia num azul infinito. Encostado à parede da loja, um distraído Nishinoya mascava o palito do picolé. Asahi suspirou, admirando a vista. A luz do sol incidindo sobre a pele bronzeada deixava Yuu ainda mais lindo. Uma solitária nuvem branca cruzou o céu. O sol brilhava tão forte que parecia convidá-lo para sair e aproveitar o dia. Todo aquele azul lhe tentava, assim como Nishinoya.
Foi até a área dos funcionários, onde se livrou do avental e ajeitou atrás da orelha alguns dos fios do cabelo comprido que teimavam em cair sobre o rosto. Tinha uma expressão cansada e não estava bem vestido para um encontro-que-não-era-um-encontro. Bateu as palmas das mãos contra o rosto a fim de se espertar e colocou um sorriso nos lábios. Nishinoya merecia apenas o melhor dele. Despediu-se de Sazaki-san e o pequeno sino na entrada da loja badalou quando ele abriu a porta.
- Saiu mais cedo?
- Sazaki-san quer que eu lhe dê conselhos para vencer o Torneio Intercolegial.
- A velinha está doida por você, Asahi!
- N-não diga essas coisas!
Nishinoya desatou a rir. Não importava quantas vezes o líbero brincasse com ele, Asahi sempre reagia daquela forma.
- Certo, certo. Se você não acredita que ela está apaixonada, tudo bem! Mas agora vamos, o sorvete me abriu o apetite!
- Onde você quer ir?
- Ouvi dizer que há uma barraquinha nova de rámen no parque. Podemos comer em algum lugar embaixo das árvores.
Fez que sim com a cabeça. Um encontro no parque. Um não-encontro no parque. Uma linha tênue separando as duas coisas. Asahi respirou fundo. Umas poucas quadras os separavam de seu destino.
- Então, vocês irão para o acampamento de novo esse ano?
- Sim. Take-san nem precisou pedir: fomos convidados. As grandes escolas agora querem acompanhar a Karasuno mais de perto! – Nishinoya explicou, com um sorriso orgulhoso nos lábios, que logo mudou para uma expressão de leve pesar – Uma pena não poder contar com você, Daichi-san e Suga-san.
De pássaros caídos, a Karasuno ressurgiu como vencedora do último Torneio da Primavera, contrariando todas as expectativas. A final não poderia ter sido mais especial: uma Batalha do Lixão contra a Nekoma. A vitória rendeu frutos para a maioria dos rapazes, especialmente, os mais jovens. Kageyama teve sua vaga no time de base da seleção nacional assegurada, enquanto Nishinoya, Hinata e Tsukishima receberam propostas tentadoras para terminar o ensino médio em outras escolas, as quais sequer foram cogitadas. Com o time passando por uma reformulação, vários talentos migraram para a Karasuno. Enoshita até mesmo veio à loja para lhe contar que as inscrições para o clube de vôlei haviam quebrado recordes e que seria necessário fazer uma seletiva para definir os novos membros. "Ukai-san disse que só viu algo assim na época do Pequeno Gigante!".
- Não desanime por causa disso – tentou mais do que depressa animar o líbero – Você, Tanaka e os outros devem dar bons exemplos aos novos jogadores.
- Eu sei. O time está bem forte esse ano, mas eu sinto muita falta de jogar com vocês. Além do mais, era divertido te acordar às seis da manhã durante o acampamento!
Asahi riu. Já fazia algum tempo que ele não acordava tão cedo. O turno no mercadinho geralmente começava às 10 da manhã, contando com uma hora e meia de almoço a partir do meio-dia e depois se estendia até às 19:30. Isso quando não aceitava fazer horas-extras e ficava na loja até o fechamento, o que havia se tornado comum desde o ocorrido de poucas semanas atrás. Odiava acordar cedo, mas aceitaria de bom grado trocar sua rotina pelos treinos da época do colegial mais uma vez. Especialmente se Nishinoya viesse acordá-lo todas as manhãs.
- Era mesmo divertido. Também sinto falta de jogar com vocês.
- Uma pena que você e os outros precisaram se formar. Vocês podiam ter reprovado só para continuar no time! – Nishinoya falou tão sério que parecia mesmo ter cogitado aquela hipótese. Asahi soltou uma gargalhada, coçando levemente a nuca.
- Meus pais me matariam se eu fizesse isso!
- Nada feito então! A Karasuno não seria a mesma sem o seu Ás! – e quando as risadas cessaram, Noya acrescentou – Tem tido notícias de Suga-san e Daichi-san?
Azumane assentiu com a cabeça. Todos os dias havia pelo menos vinte novas mensagens no grupo de chat "Três Corvos", que Suga criara pouco antes de partir para Waseda. Daichi e ele conseguiram entrar nos times de suas respectivas universidades e estavam se entrosando bem com os novos colegas de quadra. Encontraram em suas equipes alguns rostos familiares de antigos oponentes da Karasuno, mas todos procuravam agir de maneira profissional apesar das antigas rivalidades – ninguém queria perder a vaga na equipe e, por consequência, a bolsa de estudos! Asahi sentia-se feliz pelo sucesso dos amigos e, mesmo que não se considerasse o melhor conselheiro do mundo, procurava ajudá-los quando estavam em dificuldades. As fotografias e mensagens que recebia faziam-no lembrar de quando os três se reuniam para treinar no ginásio da escola e depois ficavam conversando enquanto deixavam tudo em ordem. Naquele tempo, o mundo parecia tão, tão grande. Dos três corvos, ele era o mais silencioso. Achava sua vida monótona perto das novidades de Daichi e Suga, por isso, preferia muito mais comentar a respeito do que os amigos lhe diziam do que abrir-se com relação ao seu dia a dia.
- Sim. Eles estão meio quietos essa semana, pois terão uma maratona de provas nos próximos dias. Eu já te contei que Daichi está participando de um grupo de estudos com Oikawa?
- Hã? Oikawa! – o menor o olhou incrédulo, mas o próprio Asahi levara algum tempo para compreender que a história era verdadeira e não apenas uma piada por parte de Sawamura – Hah! Essa é nova! E eles ainda não se mataram?
- Estavam vivos até ontem à noite! – Azumane acrescentou com leve ironia – Mas não posso garantir que os dois chegarão vivos ao final do ano!
A notícia de que Daichi e Suga haviam se inscrito no vestibular não lhe surpreendeu. Ambos eram ótimos alunos e era normal que a pressão familiar pesasse sobre eles – especialmente por parte dos Sugawara. Os amigos disseram que fariam a prova da primeira fase como um teste, para conhecer o processo seletivo e se preparar melhor para o ano seguinte. Insistiram para que ele fizesse o mesmo, porém, Asahi disse que aquilo era uma loucura, pois o Exame Central seria realizado no fim de semana seguinte ao da final do Torneio da Primavera. "Vão vocês primeiro. Depois me contem como foi".
E então veio a aprovação na primeira fase. Daichi e Suga ficaram surpresos com o resultado e disseram não acreditar em seus próprios olhos. "Vocês sempre foram tão confiantes e agora estão agindo como se isso fosse impossível. Deixem todo o resto de lado e continuem estudando para a segunda fase!", Asahi disse. Suga até mesmo brincou com a situação, dizendo que nunca esperara receber uma injeção de ânimo vinda do "bodinho negativo". Assim, seus amigos desaparecerem para se dedicar a leituras e resoluções de exercícios até tarde da noite – Daichi conseguiu uma vaga em Chiba, enquanto Suga entrou em Waseda, ambas universidades de prestígio. Ficou feliz por ambos, mas uma ponta de dor machucava seu peito sempre que se lembrava do assunto: tinha plena consciência de que, se havia ficado para trás, ele era o único culpado por isso. Quando descobriu que Shimizu foi aprovada no concorridíssimo curso de medicina da Toudai, sentiu-se ainda pior – foi o único dos terceiranistas que sequer procurara tentar. Todavia, uma mera tentativa não era o suficiente para garantir sua aprovação...
- Você devia treinar com a gente qualquer dia desses. Sabe, pra botar uma pilha nos calouros.
Balançou a cabeça, procurando se livrar daqueles devaneios e recuperar o fio da conversa com Nishinoya.
- Ah, bem... eu tenho algumas horas-extras em haver. Posso conversar com Sazaki-san e se ela aceitar me liberar mais cedo, consigo participar de alguns treinos.
- Isso seria muito legal, Asahi-san! Quero só ver a reação deles ao encarar os ataques do Ás da Karasuno! Você vai lá, corta e a bola PÁ do outro lado da quadra! Os moleques vão ficar olhando que nem bestas e dizendo OOOOHHH!
Asahi riu. Nishinoya continuava exagerado como sempre. E parecia estar adquirindo alguns dos tiques de Hinata.
- Você nunca teve medo das minhas cortadas. Nem dos ataques de qualquer adversário. Se os garotos novos forem iguais a você, eles no máximo ficarão com medo da minha cara!
- Pois é... mas por isso mesmo! Preciso treinar uma nova Divindade Guardiã para proteger o nosso time!
O líbero então se calou e parou de caminhar.
- Algo errado?
- Não, não – o menor sacudiu a cabeça, como se tentasse se livrar de um pensamento ruim – É que este será meu último ano na escola. Depois disso, não sei o que vou fazer da minha vida.
A consciência de que agosto já se aproximava assustou Asahi. Conhecia muito bem a sensação do tempo escapando por entre os dedos. Yuu tinha chances de disputar apenas mais dois torneios de vôlei pela escola – depois disso, a formatura fecharia o ciclo na Karasuno. Ficou de coração partido ao ver a expressão triste no rosto do amigo. Reunindo toda a confiança que havia dentro de si, Asahi colocou um sorriso no rosto e fez o melhor possível para que sua voz soasse firme:
- Bom, se você entrar em uma universidade, pode fazer um curso que gosta e continuar jogando vôlei!
Yuu não lhe respondeu de imediato. Encarou Asahi como se quisesse lhe dizer algo, mas tivesse medo de machucá-lo. Mordeu o lábio inferior e com uma voz baixa, que em nada combinava com sua personalidade, entoou as palavras com grande cuidado:
- Eu não tenho notas pra isso, Asahi. Passo de ano sempre raspando e só vou bem em Educação Física. Só se eu fosse para alguma faculdade particular e tentasse ganhar uma bolsa, mas se eu não conseguir apoio financeiro, vai ser difícil para minha família me sustentar fora de casa – e, após uma pausa que pareceu durar séculos, continuou – Mas... você realmente desistiu disso? Você com certeza conseguiria entrar em uma boa universidade e poderia continuar jogando vôlei em um time bacana!
Foi a vez de Asahi ficar em silêncio. Nem mesmo se deu conta que havia trazido o assunto à tona. Entrar na faculdade estava muito além de suas capacidades. Era um aluno bom, mas seu desempenho estava abaixo do alcançado pelos terceiranistas que entravam nas universidades nacionais. Podia tentar uma particular, mas a ideia de falhar lhe assombrava de tal forma que ele sempre deixava as oportunidades passar. Por isso, repetiu para si mesmo diversas vezes que ir para a faculdade não estava em seus planos. Era a desculpa perfeita para que ele continuasse se dedicando aos treinos de vôlei no período que antecedeu a vitória no Torneio da Primavera.
Esperava recuperar um pouco de ânimo ao final do campeonato. A vitória, porém, surtiu o efeito contrário: Asahi temia falhar após ter alcançado um grande sucesso. Seu único sucesso na vida até então. Jogar vôlei era a única coisa que ele fazia direito e, ainda assim, não sabia se seria capaz de manter o mesmo desempenho fora da Karasuno. Além do mais, as vitórias nas quadras eram fruto do esforço coletivo. Caso falhasse no vestibular, seria um fracasso individual. As desculpas ganharam mais força. Repetidas dia após dia, assumiram o peso de uma verdade incontestável.
De início, sua família não se incomodou. Ou, ao menos, não pareceu se incomodar. A mãe, sempre tão disposta a apoiá-lo em qualquer situação, limitava-se a aceitar as respostas evasivas. O pai, por outro lado, disse que ele era maior de idade e que deveria ser responsável pelos seus atos. Aquela situação terminou há pouco mais de duas semanas, quando o Velho Azumane praticamente explodiu com ele. Não havia sido exatamente uma briga, pois Asahi não respondeu a nenhuma das palavras duras que ouviu. Qualquer coisa que pensou em dizer parecia insuficiente para responder a um pai contrariado. Desde então, mal se olhavam nos olhos e Asahi aceitava todas as horas-extras que podia no mercado.
- Deixa pra lá. Não precisamos falar disso!
O líbero esboçou um sorriso e lhe deu alguns tapinhas nas costas antes de continuar a caminhar. Logo mudou de assunto, falando sobre a disputa entre Hinata e Tanaka pelo posto de Ás da Karasuno. Asahi sabia que Yuu desejava lhe dar um tempo para respirar, porém, não se sentiu aliviado. Na verdade, se sentiu péssimo. Nishinoya sempre tivera uma confiança inabalável em suas capacidades, tanto dentro, quanto fora das quadras. Não conseguiu respondê-lo por que qualquer explicação pareceria idiota diante de toda aquela fé. Se fosse qualquer outra pessoa, Asahi não se importaria de recorrer às velhas desculpas esfarrapadas. Yuu era diferente. Diferente de todos os outros. E era o único que conhecia a fundo a situação difícil pela qual estava passando.
"Você não está bem, Asahi-san. O que aconteceu?" O líbero era capaz de identificar suas angústias com uma facilidade extrema. Nesses momentos, não era mais a Divindade Guardiã da Karasuno, mas apenas dele, do antigo Ás de coração de vidro. Naquela tarde, após vários dias guardando sua dor para si, abriu o coração para Nishinoya, contando-lhe sobre o medo de falhar no vestibular e sobre a briga com o pai. Quando se deu conta, estava prestes a chorar diante do líbero. Apesar da expressão preocupada no rosto, Yuu permaneceu calmo.
"Desculpe, Noya. Desculpe". Sua voz era baixa e triste. Sentiu vergonha por não conseguir encarar seus problemas de frente. Pensou em ir embora, mas o líbero o mantinha seguro pelos braços, tentando tranquilizá-lo. As pernas de Asahi tremeram e, aos poucos, ele baixou a cabeça, até que seus rostos ficassem quase na mesma altura. Não soube se estava sem forças ou se apenas queria ficar junto de Nishinoya. As desculpas balbuciadas por seus lábios trêmulos foram, aos poucos, sobrepostas à voz calma de Yuu, que lhe dizia sem parar "está tudo bem". "Eu não devo estar parecendo tão legal agora". Nishinoya lhe encarou com um sorriso triste e só então Asahi notou que ele também tinha os olhos rasos d'água. "Eu acho que a gente precisa ser bem forte pra admitir nossos medos! Você é superlegal, Asahi-san!"
Desde então, não haviam mais falado sobre o assunto.
- Chegamos. Venha, ainda não há fila!
Nishinoya correu em direção à barraquinha, deixando Asahi um tanto alarmado – parecia que o líbero estava prestes a fugir de seu alcance. Nem mesmo havia se dado conta de que já haviam chego ao pequeno parque, localizado no centro de Torono. Apressou o passo, com certo desespero, tentando não se desgarrar de Yuu e quase trombou com ele ao parar diante do vendedor de rámen. Os olhos de Nishinoya passearam pelo cardápio, inquietos.
- Você vai querer Tonkatsu? É o seu favorito, certo?
- S-sim! – respondeu de supetão. Desde quando o líbero conhecia seu prato favorito? O coração bateu mais alegre, porém Asahi logo votou a ficar sério. Tinha deixado Nishinoya sem resposta e ele não merecia isso. Remoeu a angústia enquanto pagava o prato e também durante o caminho até a sombra das árvores, onde se sentaram para aguardar por seus pedidos. Yuu continuou a falar sobre as novas estratégias do time, mas Azumane estava longe.
- Porque essa cara de velório?
Yuu não era como as outras pessoas. Por isso, merecia bem mais do que aquele silêncio covarde.
- Você realmente acha que eu conseguiria entrar na Universidade?
A resposta de Nishinoya veio na forma de um forte soco em seu braço.
- Ai! Por que fez isso?
- Porque você não me escuta!
Asahi não conseguiu retrucar. Yuu tinha aquele olhar em seu rosto, o olhar de quem estava furioso e, ao mesmo tempo, tinha o coração partido. O mesmo olhar de quando brigaram por causa da Dateko.
- Você se lembra quando voltávamos de Sendai, após a vitória contra a Shiratorizawa? – Nishinoya se adiantou antes que ele pudesse dizer qualquer coisa – Lembra que estavam fazendo algumas obras e o nosso ônibus precisou pegar um desvio?
Fez que sim com a cabeça. Todos estavam tão felizes com a vitória que nem se importaram com o tempo perdido no trânsito.
- Nós passamos em frente à Tohoku, lembra?
Já era noite quando o ônibus pegou o desvio, passando em frente ao campus iluminado. Todos foram para as janelas, admirar a paisagem que se descortinava diante deles. Estudantes iam e vinham, enchendo a universidade de vida.
- Sim. Eu lembro.
- Então você também lembra que Hinata perguntou a você, Daichi-san e Suga-san o que cursos vocês gostariam de fazer!
Foi Shoyou quem puxou o assunto, mas logo todos estavam curiosos em saber as respostas dos terceiranistas. Daichi explicou que tinha interesse em fazer Odontologia, o que despertou alguns comentários irônicos sobre o episódio do dente. Já Suga comentou que pensava em se tornar professor e tinha interesse pela área de Letras, levando Tanaka a dizer que apesar da cara de bonzinho, ele seria um verdadeiro carrasco em sala de aula. Asahi, porém...
- Eu disse que não estava interessado em entrar na universidade.
A resposta caiu como uma pá de cal sobre a conversa. As palavras saíram tão duras de sua boca que os demais membros do time não conseguiram esconder seu desconforto.
- Sim, de início, mas depois você contou que já havia pensado sobre isso antes!
"Vamos, estamos apenas sonhando alto. Não seja chato!", Suga insistiu. Asahi olhou em volta – todos pareciam ainda mais ansiosos por uma resposta. Noya, particularmente, o observava com uma expressão de faiscante curiosidade. Engolindo em seco, Asahi ousou revelar um de seus segredos mais bem guardados:
- Eu disse que, quando criança, pensava em fazer Arquitetura ou Engenharia Civil.
- E os calouros ficaram surpresos, porque além de saber muito de matemática, você precisaria desenhar muito bem!
Asahi sorriu, um tanto melancólico. O líbero tinha os punhos cerrados erguidos na altura do peito e um olhar cheio de esperança no rosto. Mais uma vez, aquela confiança louca, desmedida e necessária.
- E você disse a Hinata e aos outros que eu desenho bem.
- "Bem"? "Bem"! Seus desenhos são foda, Asahi-san!
Piscou por alguns instantes. "Foda" era um termo muito exagerado para definir seus desenhos, mas, ele não teve coragem de desafiar a firmeza nas palavras de Nishinoya. Sabia melhor do que qualquer pessoa que o líbero confiava em suas habilidades e não aceitaria que ele dissesse o contrário.
- Eu... eu ainda tenho muito o que melhorar. Nem estava desenhando pra valer no ano passado.
- Isso se resolve com treino! Agora, você sempre se deu bem em matemática e todas essas matérias chatas que caem no vestibular! É só o caso de voltar a estudar e se preparar para as provas! Você precisa apenas enfrentar esse medo besta de fracassar!
- E se eu não conseguir?
Nishinoya cruzou os braços, contrariado.
- Você pode tentar de novo! Nem todo mundo consegue de primeira vez. As pessoas são meio escrotas com quem não passa no vestibular logo de cara, mas você não tem por que se importar com elas!
Não se importar com as pessoas. Nishinoya sabia lidar com aquilo muito melhor do que ele. A voz do líbero tinha um misto de fúria e doçura que era tão estranho e, ao mesmo tempo, perfeito para aquela conversa. Asahi sentiu vergonha. Vergonha de não ter tentado seguir adiante. Vergonha de ter se acomodado de maneira tão covarde. Desde quando se contentar com migalhas era sinônimo de felicidade? No fundo, ele já sabia de tudo isso.
Ficaram em silêncio por algum tempo.
- N-Noya... você acha mesmo que eu conseguiria passar no vestibular?
Um novo soco no braço quase derrubou Asahi.
- Você só pode estar surdo! É claro que sim! Você mesmo me disse daquela vez que pensou em fazer as provas, mas que teve medo de fracassar. Todos nós sentimos medo, mas se todo mundo deixar de se arriscar por medo, ninguém sai mais do lugar. É o que meu avô sempre diz! – e após um rompante, o líbero pareceu se acalmar um pouco, abraçando os joelhos junto ao peito – Se você estivesse feliz da vida com seu emprego, eu também estaria feliz por você. Mas você não está! E eu fico puto que você deixa o medo te dominar. Você é o cara mais legal que eu conheço! E o seu coração é tão grande que não entendo como pode ser tão frágil.
As palavras de Noya machucavam, mas Asahi reconhecia que eram para o seu próprio bem. De repente, todos os seus temores lhe pareceram preocupações idiotas. Desculpas e mais desculpas que só serviam para enganar a si mesmo.
- Você tem razão. Eu fico pensando demais nas coisas... Nem mesmo fiz algo e já estou antecipando o que pode acontecer de ruim... Eu...
A voz falhou de repente ele sentiu o ar faltando no peito. Sabia que, caso continuasse tentando se explicar, acabaria chorando. Foi então que sentiu a mão pequena do outro sobre a sua, apertando-a com gentileza.
- Certo, certo. Você não precisa ficar se desculpando. Tire algum tempo pra pensar sobre o assunto. Sem pressa, ok?
Asahi mordeu o lábio inferior e sua respiração ofegante se acalmou aos poucos. Noya era sempre assim: após se exaltar com ele, deixava transparecer seu lado mais gentil, como se soubesse a exata medida de pressão que aquele coração de vidro poderia suportar. Os dedos ásperos do líbero ainda descansavam sobre sua mão quando Asahi ergueu os olhos em direção ao rosto de Yuu. O mais novo corou e então recolheu o braço, esboçando um sorriso que também fez Azumane sorrir encabulado.
- Me desculpe se eu fui meio babaca...
- Não precisa se desculpar. Eu mereci. De verdade. Você sempre sabe quando me ouvir e quando em dar essas broncas. Parece até que é o mais velho entre nós dois.
- Você também me ajudou muito ao longo desses anos, Asahi. Mais do que imagina.
- Se é assim, eu prometo que vou pensar a respeito.
Noya sorria tranquilo – e isso bastava para Asahi.
- Número sete! – bradou a atendente da barraquinha.
- É o nosso pedido. Pode deixar que eu pego!
Mais uma vez, Yuu se afastou dele, entretanto, Asahi não se sentiu angustiado. O líbero estava lhe dando espaço para respirar e também tempo: e isso era tudo o que ele precisava. Seus olhos acompanharam Nishinoya. Estava alguns centímetros mais alto do que no ano passado e também um tanto mais forte. Tinha a pele bronzeada e o cabelos brilhantes. Suas mãos traziam as duas cumbucas fumegantes de rámen até o refúgio embaixo das árvores – as mesmas mãos que haviam protegido sua retaguarda e seu coração. Uma daquelas mãos havia tocado a sua há alguns minutos. Cerrou o punho, tentando guardar o que restava do calor dos dedos ásperos de Nishinoya contra sua pele.
- Aqui está!
- Muito obrigado!
Sentado ao seu lado, Yuu devorou a comida como se tivesse acabado de sair de um treinamento intenso. Algumas coisas realmente nunca mudavam.
- Mas então, você não tem mesmo nada pra me contar? Nenhuma novidade? – o baixinho perguntou, ainda mastigando o macarrão.
- Hm... – Nada que lhe parecesse interessante vinha à cabeça. Arrumar as prateleiras, varrer o chão e ajudar uma senhora de idade a pesar dois quilos de laranjas estavam longe de ser as coisas mais empolgantes do mundo – Na verdade não. Tirando os meninos que pediram meu autógrafo.
- Isso por si só já é bastante legal, Asahi-san! Eles disseram que vão para a Karasuno ano que vem, não é? Pena que não vou estar lá pra receber os novos calouros. Isso é, se eu não reprovar! – Yuu sorriu gaiato, enquanto tentava 'pescar' um pedaço de carne com o hashi.
- Ahn?! Não diga isso, Noya!
- Mas é verdade! Eu não sei como você conseguia estudar tanto. É tão chato!
- Bom... se eu tirasse notas vermelhas, meus pais me cortariam do time de vôlei... – coçou a barba, rindo baixinho ao se lembrar de tais ameaças.
- Ué, minha mãe também fala isso! Mas no fundo, sei que não é verdade!
- Como pode ter tanta certeza?
Noya ficou pensativo por alguns segundos e depois cruzou os braços, lançando um sorriso amarelo para o outro.
- É... não tenho, na verdade, hehehe! Talvez seja melhor eu tomar jeito mesmo!
- Você é mesmo impossível! – limitou-se a comentar, rindo baixinho.
- Ei, Asahi, você ainda está saindo com aquela garota que era da sua sala? Ela é bem bonitinha, não?
Quase engasgou. Nem mesmo passara de um terceiro encontro e alguns 'amassos' com a menina. Era uma garota bonita, verdade, porém, não era esse o problema. Ele sabia muito bem com quem preferia passar o tempo.
- Não. Não deu certo – deu de ombros, tentando passar alguma seriedade em sua voz – E você? Está vendo alguém?
- Tsc, não tem vergonha de se meter na vida dos outros?
- Han? – ergueu as sobrancelhas – Você acabou de me perguntar isso!
- Caramba, Asahi-san! Você é sempre tão sério! – Yuu disse, mal contendo uma gargalhada – Mas não. Não estou vendo ninguém.
Era estranho ver Nishinoya tratar aquele assunto de forma tão séria. Muitas garotas tinham passado a se interessar por ele após o sucesso do time de vôlei e, bem, ele sempre falara muito sobre 'destruir corações' e 'conquistar meninas bonitas', contudo, Asahi não se lembrava de ter visto Yuu saindo com uma mulher... Talvez o líbero ainda não tivesse encontrado alguém que mexesse com ele tanto quanto a antiga supervisora do time. Decidiu arriscar.
- Ainda não superou a Kiyoko-san?
Yuu levou a tigela à boca, sorvendo o líquido morno que restara no fundo. Enxugou os lábios com as costas da mão e fixou os olhos no prato vazio por um bom tempo.
- Ah, aquilo ali era uma brincadeira. A Kiyoko-san era tipo as mulheres daqueles poemas bobos que tínhamos de ler nas aulas de Literatura, sabe? Aquelas que o cara tá apaixonado, mas ela é casada com um homem rico. Não é como se ela fosse me dar bola. E eu sabia disso desde o começo.
Yuu falava como se estivesse lhe confessando um segredo muito íntimo – o que não deixava de ser um tanto engraçado, afinal, sempre parecera bem claro para Asahi e todos os membros do time que a afeição de Nishinoya por Shimizu jamais se converteria em algo maior. Ainda assim, havia um tom diferente na voz do outro, como se quisesse lhe contar algo mais. "Provavelmente está gostando de outra pessoa". Sentiu um amargor na garganta. Nishinoya era também inacessível para ele e já estava conformado com isso, todavia, se o líbero estava apaixonado, ao menos queria saber se era uma boa garota.
- Hm... certo, mas não apareceu ninguém para substituí-la?
Yuu então se levantou apressado, olhando para o celular.
- Ah, droga, me desculpe, eu preciso ir agora! Eu esqueci que Ryuu e eu temos um seminário idiota pra preparar!
- O que? Agora?
- É, eu esqueci! Me desculpe! Prometo te compensar depois!
- Ah, n-não precisa se incomodar. Não quero atrapalhar também.
Nishinoya então se curvou sobre, repousando as mãos sobre os ombros largos. Seus rostos estavam separados por uns poucos centímetros de distância, de modo que Asahi pôde sentir a respiração quente contra sua pele. Um pequeno sorriso reluzia nos lábios do mais novo.
- Você nunca incomoda, Asahi-san. Como eu disse, tire um tempo pra pensar. Sem pressa. Depois me conte o que decidiu!
O líbero partiu rápido como o vento, deixando apenas sua energia e seu cheiro para trás. Asahi fechou os olhos e ficou sentado à mesa por mais alguns instantes, procurando aproveitar aquelas sensações. Os últimos traços da presença de Nishinoya.
Após devolver as tigelas na barraquinha, Asahi caminhou de volta para o mercado, olhando para o céu. Tinha vontade de esticar os dedos para tocar o azul. Um grupo de pássaros cortou o azul. Seriam corvos? A ideia fez um pequeno sorriso brotar em seus lábios.
Ainda estava cedo para retomar o expediente, então pegou um caminho mais longo, passando pelo centro comercial. O lugar estava lotado de namorados e famílias que aproveitavam o sábado para almoçar fora. Ao passar os olhos por uma banca de revistas próxima da praça de alimentação, notou que havia uma série de materiais sobre vestibulares. Um dos manuais logo à frente trazia uma fotografia de capa chamativa de um grupo de alunos saindo de uma biblioteca – provavelmente, da Toudai. "Tudo o que você precisa saber para entrar em uma Universidade Nacional!", dizia o letreiro que vinha logo abaixo. O exagero do título lhe deixou um tanto incomodado, mas decidiu folhear a revista de todo modo. Logo após a apresentação, havia uma reportagem especial sobre as Sete Universidades Imperiais, com várias fotos e textos informativos. Duas páginas se dedicavam a falar sobre os pontos fortes da Tohoku.
Havia ainda uma tabela com a concorrência dos cursos nos exames daquele ano. Riu de nervoso ao ver o total de pessoas que disputavam uma vaga em Arquitetura e Engenharia Civil. Como poderia haver tantos candidatos?! Ainda assim, as fotografias do interior do campus eram lindas. Em uma delas, viu uma sala que parecia ser voltada para aulas de desenho. Todos os alunos estavam concentrados em seu trabalho, ignorando a presença do fotógrafo. O pensamento de que poderia estar trabalhando naquela mesma sala no ano seguinte lhe pareceu absurdo. No entanto, tinha de admitir que a ideia lhe tentava.
Fazia muito tempo que não desenhava 'a sério'. Ao perceber seu talento, ainda quando criança, os pais matricularam-no em um curso, no qual aprendeu as regras sobre profundidade, usos de luz, cores, entre outras técnicas. Pouco antes de entrar no ensino médio, seu interesse passou para o vôlei e ele abandonou as aulas. Continuou desenhando, mas em um ritmo menor e dificilmente apresentava seus desenhos para outras pessoas. Foi Daichi quem contou a Nishinoya e Tanaka que Asahi costumava matar tempo durante as "aulas chatas" desenhando e os dois então novatos não sossegaram até que ele lhe mostrasse seu caderno. Os amigos diziam que seu traço era perfeito e Asahi sentia que os elogios eram sinceros, embora também achasse que ainda tinha muito a melhorar. Desde que saíra da escola, vinha apenas fazendo alguns rabiscos por hobby.
- Ei, aqui não é biblioteca! Se quiser ler, tem de pagar!
O velhinho mal-humorado atrás do balcão quase lhe fez deixar a revista e ir embora, porém, prometera a Nishinoya que iria pensar a respeito do vestibular. Jogou o dinheiro em cima da bancada e saiu sem olhar nos olhos do outro. Ignorou os xingamentos do velho, que continuou a falar enquanto ele se afastava.
Entrou pelos fundos do mercado e aproveitou que não havia ninguém na área de funcionários para folhear a revista com mais atenção. Leu e releu as informações sobre a Tohoku. Sendai era bastante próxima de Torono, de modo que poderia visitar seus pais com alguma frequência caso entrasse na universidade – e quem sabe as coisas não melhorariam quando o velho Azumane visse que ele estava se esforçando? Tudo ficaria mais fácil se conseguisse juntar dinheiro e... "Uma coisa de cada vez! Vamos com calma!" Não se reconhecia naquela animação. Talvez tivesse sido contagiado pelo ânimo de Yuu.
Ao final da revista, havia uma seção com questões de vestibulares anteriores de diferentes universidades. Pensadores iluministas, química orgânica, os sistemas do corpo humano... Teve um pouco mais de facilidade com matemática e física, que sempre haviam sido seus fortes durante a escola. Fazer as contas de cabeça era um tanto complicado, mas conseguiu chegar às respostas corretas dos dois problemas que tentou resolver. Desconfiou do resultado. "Devem ter escolhido algumas questões fáceis para passar a ideia de que qualquer um pode entrar na universidade". Deixou a revista em seu armário e voltou para o turno. O sábado ensolarado pareceu se arrastar devido ao movimento abaixo do normal.
Ao fim do expediente, acabou se demorando pela área de funcionários, onde analisou a revista com um pouco mais de calma. A publicação indicava alguns sites que traziam mais questões de vestibular e também algumas sugestões de leituras. Tirou o celular do bolso e fez pesquisas sobre o curso de Arquitetura e Engenharia na Tohoku e também sobre o time de vôlei da universidade. Ficou assustado ao ver como todos os caras ali pareciam muito mais altos e mais velhos que ele. Quando deu por si, percebeu que eram quase dez da noite e que o mercadinho estava fechando.
Guardou a revista na bolsa tiracolo e pedalou de volta para casa. Como esperava, os pais já estavam na cama. Havia um bilhete na geladeira, com a caligrafia da mãe. "Tem yakissoba e bolinhos de carne para você". Esquentou um pouco da comida por consideração à preocupação da mãe, pois não estava com fome. Desde que começara a pensar sobre o que Noya lhe dissera, sua cabeça fervilhava. Comeu e lavou a louça enquanto lia sobre a Tohoku no celular. Após o banho, foi para o quarto, atirando-se na cama. Estava cansado, mas sentia-se muito leve.
Enquanto buscava uma posição para dormir, seus olhos se detiveram um longo tempo sobre a fotografia pendurada na parede, ao lado da estante onde as medalhas dividiam espaço com livros e DVDs. Um pequeno jornal de Torono havia designado um fotógrafo acompanhar a Karasuno no Torneio da Primavera de 2012. O resultado foi a reportagem "Corvos caídos retomam o céu", ilustrada com uma bela fotografia da equipe comemorando a vitória sobre a Nekoma na grande final. Na imagem, doze garotos eufóricos, cansados e com lágrimas de alegria nos olhos, tomavam conta da quadra, se abraçando como se precisassem do contato físico para ter certeza de que aquilo tudo era real.
Alguns dias depois, com o time já de volta à cidade, os professores fizeram uma vaquinha para presentar todos os membros da equipe com ampliações coloridas da imagem. Na parte debaixo do retrato, em garrafais letras douradas, lia-se "Karasuno High – Campeões do Torneio da Primavera / 2012". Muitas vezes pegava-se perdido, admirando a fotografia e tentando reviver aquele momento. Havia finalmente triunfado após anos de tentativas fracassadas. E o fizera ao lado de seus melhores amigos.
O detalhe que mais gostava naquele flash era o fato de que ele fora eternizado com Nishinoya em seus braços. Não se lembrava como o líbero acabou pendurado em seu pescoço – quando se deu conta, o baixinho já estava agarrado ao seu corpo, com as pernas entrelaçadas em sua cintura, encarando-o com uma expressão que transbordava alegria. Talvez tivesse saltado mais alto do que Hinata para poder alcançar seus ombros! E, ao contrário do que comumente ocorria, Asahi não corou ou se sentiu desconfortável. Do fundo do coração, algo lhe disse para aproveitar aquele instante da melhor forma possível. Era a primeira vez que seus rostos ficavam tão próximos. Um calor forte vinha do corpo de Noya e a respiração do líbero misturou-se à dele. "Nós vencemos, Asahi-san!". Num piscar de olhos, o resto do time se juntou a eles, no que se tornou um grande abraço em grupo.
Tão perto, tão longe. Asahi gostava de seus colegas de time. Tinha feito verdadeiros amigos na equipe. Também não se achava uma pessoa egoísta, pois sempre pensava em como ajudar – ou, em alguns casos, como não atrapalhar – os outros jogadores. Porém, naquele momento, ele desejou que todos desaparecessem. Todos os jogadores, os torcedores, os técnicos, os jornalistas... Todos. Assim, Nishinoya e ele poderiam ficar abraçados o quanto quisessem.
"Talvez ele também te abrace quando você passar no vestibular. Mas você só saberá se tentar".
De súbito, a imagem de Nishinoya se despedindo naquela tarde lhe veio à mente. Yuu fora embora sem lhe responder se estava gostando de alguém. "Não vá ter ideias agora..." Virou-se para o lado, tentando pegar no sono. Ainda assim, passou parte da noite em claro, tentando se lembrar da sensação dos dedos de Yuu em torno de sua mão.
