Quatro vezes você
Parte Um
Amizadinha
"Rafael ta trancado há dois dias no banheiro
Enquanto sua mãe
Toma Prozac, enche a cara
E dorme o dia inteiro"
Todo dia a mesma coisa. Sair da faculdade,pegar o carro e passar por ali.Era a parte mais asquerosa e suja da cidade mas,infelizmente,não havia outro caminho.
Passava das vinte e duas horas e eu estava lá,meu carro pifou. Falta de gasolina não era. Fora recém abastecido.
No escuro, tateei o porta-luvas em busca do cartão da seguradora, lembrando-me em seguida estar sem o celular. Droga. Seiya o pegara para jogar um tal de Speed Control e não o devolvera.Maravilha.O jeito era deixar o carro ali e ir a pé.Suspirei.Já estava longe quando uma voz rouca me parou:
-Tem um cigarro, amizade?
Um frio me percorreu a espinha. Ia ser assaltado. E se corresse? Negativo, meu fôlego era de velho e o bandido devia estar armado.
Virei-me. Não reagiria.
-Desculpe, não fumo.
-Que droga-silêncio. -Me paga um trago?
-Pa...Pago.
-Isso que é gente fina!-Enlaçou meus ombros com um braço."Deus,que ele não me mate!"Pensei eçou a caminhar,levando-me consigo.-Tu é gente boa pra...Amigo assim não se arruma todo dia.
Ele tremia,mas não estava bêbado:não cheirava a álcool.
Fomos assim,juntos,até um boteco.Lá,iluminado pela fraca claridade do local,eu vi seu rosto:tinha mais ou menos a minha idade,a minha altura,mais magro,a pele levemente mais morena,louro como eu,os olhos do mesmo azul.
-Fique aqui - falei.Os olhos avermelhados só podiam indicar uma coisa:droga!
-Valeu,Amizade.Traz só um cigarrinho,pode ser.
Entrei no bar.Um monte de bêbados mal-cheirosos,sujos e deploráveis me olharam.Alguns disseram algumas gracinhas,como se eu fosse uma garota...Ou uma prostituta.Aquela fora a pior idéia da minha vida. Pedi um maço de cigarros e um telefone.
-Vai ter que pagar,garotão.
Botei uma nota de dez no balcão:
-Está bom assim?-Perguntei,tentando parecer corajoso.A verdade é que estava morrendo de medo e nojo.
Ele me deu o telefone.Pensei em ligar para a polícia,mas o cara já estava do meu lado:
-Desculpe,amizade,mas eu tava louco pra fumar unzinho.
Entreguei-lhe o maço e pedi a meu pai,pelo telefone,que fosse me buscar.
-Já vou,amizadinha -ele não conseguia coordenar os movimentos das mãos para acender o cigarro.-A gente se esbarra por aí- e saiu.
Fiquei pensando que não queria vê-lo nunca mais.
Meu pai não demorou.Estava preocupado:
-Tudo bem,Saga?
-Ah,sim,sim.
Em casa,Tânia,minha noiva,abraçou-me:
-Quase morri de preocupação,Saga.
-Calma,estou inteiro,não?
-É,está.
Não contei a ninguém sobre o tal amizadinha.
Censurei Seiya pelo rapto do telefone,que podia ter-me matado.
-Desculpe,tio.Mas quem manda ter um jogo tão legal assim no celular?
Seiya,filho do meu irmão mais velho,contava com seis anos e não vivia sem um bom vídeo-game.
-Sei,sei.
1º dia
Por uns dez dias tudo transcorreu normalmente.Na décima-primeira manhã,saí do trabalho para almoçar com uns colegas da faculdade quando senti uma mão me puxar prum beco.Era o amizadinha.
-Você?!
-Cala a boca-ele falava baixo.Reparei que estava sóbrio.
-O que quer?
-Os caras estão atrás de mim.Eles vão me matar e tu tem que fazê alguma coisa.
Ah,não.Isso não.Já o tinha aturado aquele dia,mas assim já era demais.
-Não.
-Como, "não"?!
-Você não é estúpido e está sóbrio.Entendeu sim.
-Olha,cara,salvei a tua vida,eles queriam te pegar aquele dia,só não fizeram porque eu tava junto.Eu salvei tua vida,agora salva a minha.
Não sei de onde tirei coragem para ser cínico:
-É?Não nos atacaram por que têm medo ou respeito por você?
Ele me mostrou uma arma:
-Se eu morrer,você também morre.
Não sei se você se lembra de alguns desenhos animados nos quais a personagem,após contar bravata,vira um frango.Foi assim que me senti.
-O...O que quer que eu faça?
-Ah,assim ta bom.Quero que tu me esconde.
-Esconder? Como?
-Não sei,amizadinha. Tu é que tem que sabê.
E agora?Escondê-lo como?Precisava pensar rápido.De repente,tive um estalo.Um conhecido meu,mulherengo,casado e sempre liso,levava suas conquistas para o motel mais barato da cidade,em frente à BR.Não era um lugar nobre,mas ficava longe da favela.
-Já sei!-Tomei-o pelo pulso e chamei um táxi.
-Aonde vamos?-Ele perguntou.
Entramos no carro.
-Toca pro motel.
O motorista viu a mão dele na minha e lançou-nos um olhar malicioso. Arrancou.
-Ficou doido?-O amizadinha me perguntou.
-Quer lugar menos óbvio e mais barato pra se esconder que um motel?
Ele pensou um pouco:
-É,pode ser.Mas se eles me descobrirem,tu já era.
-Sei o que faço.
Ficamos por mais tempo em silêncio, e ele se dirigiu a mim:
-Amizadinha...
-Era sobre isso mesmo que eu queria falar com você. Não me chame assim. Não sou seu amigo e tenho um nome .
-Desculpe – e se calou,olhando a paisagem.Depois o ouvi sussurrar: -Kanon...
-Disse alguma coisa?
-Meu nome é Kanon – respondeu sem se virar.
-Pode me chamar de Saga.
Descemos no motel.
-Vai ficar aqui até esquecerem que você existe ,Kanon.Gostou do lugar?
-É,parece melhor que a favela.
-Não parece.É.
-Cala a boca!Tem um monte de coisas boas na favela,ta?
-É,aqueles seus amigos,a sua droga...Ou aquele botequim.
-Um playboyzinho como tu não ia entender!
E saiu na minha frente.Segui-o.
-Gostou do apartamento?
-A cama é macia – sentando-se. – Acho que vai ser bom aqui.
-Eu vou embora.Toda semana venho aqui pagar suas despesas.
-Espera!
-Uhn?
-Pode me arrumar uma roupa? Só tenho essa aqui.
-Vou ver.
E saí.Nem almoçara ainda e já era quase uma.
À noite,na universidade,meus amigos me procuraram:
- Onde esteve,Saga, que não apareceu pra almoçar?
- Vai ver ele não se mistura mais com pobre.
-Não é isso! Eu tava cheio de serviço,tive que comer só um lanche – menti.
-Agora o trabalho é mais importante que os seus amigos?
-Se eu for pra rua,vocês vão ter que pagar o meu almoço quando nos reunirmos pra comer.
-Que é isso,Saga.Ficamos meio chateados porque nos deu o bolo,mas entendemos.Não é,pessoal?
-Verdade,verdade.
-Muquiranas! – Exclamei e ri.
Apesar de me portar como de costume,estava preocupado com Kanon, o amizadinha.E se ele resolvesse me matar,apesar de tudo?E se me ameaçasse pro resto da vida?E se tentasse me viciar?E se...
Infinitas possibilidades,todas funestas,passaram pela minha cabeça.
Daí eu me decidi:não iria mais vê-lo.Entregaria as roupas na portaria.Sim.Era o melhor a fazer.
-Mãe...
-Que é?
-Um dia você disse que tinha umas roupas pra doar.Ainda estão aí?
-Sim,lá dentro,numa sacola grande.Por quê?
-Sei de pessoas que precisam – disse,e saí à cata da tal sacola.Algumas roupas minhas serviriam como uma luva.Separei-as.
2º dia
Depois do serviço, no dia seguinte levei as roupas ao motel.
-Quarto .Pode entregar por mim?
-Hum...Vejamos...Por que não entrega pessoalmente?
Abri a boca para responder,mas...
-Amizadinha!
Levei um choque.Virei-me:
-Já disse que não quero ser chamado assim.Não sou seu amigo e tenho um nome.
-É que...Não me lembro qual é.
-Saga.
-É um nome gozado,sabia?
-E o seu é lindo,sabia?
-É! – e riu. – Trouxe as roupas?
-Estão aqui.
Ele abriu a bolsa.Segurei-lhe o pulso:
-Por que não olha lá dentro?
-Vem comigo.
Fomos até o quarto e ele viu as roupas.
-Gostei.Parece até que foram compradas pra mim – cheirou-as. –Perfume bom.Eu tenho a impressão de já ter sentido antes.
Era o meu perfume.Engraçado ele se lembrar do meu perfume,que só sentira uma vez e ainda estava drogado.
-Eram minhas – falei.
-É o seu cheiro,então...?
-Ah,é.Gostou?
-Muito.Obrigado,Saga.
Sorri.Sempre detestara o meu nome,mas ele parecia tão suave na voz de meu novo amigo.
Peraí!Amigo?!Ele me ameaçara de morte na noite anterior!
-Eu...Eu vou embora.
-Já?Não quer jantar comigo?
Jantar com ele?O que ele pretendia?
-Não posso.Minha mãe pediu pra eu comer em casa.
-Nada como a comida da mamãe,né?
Por incrível que pareça,não vi qualquer sinal de sarcasmo na sua voz.
3º dia
No dia seguinte,fui vê-lo outra vez.Ele ficou estranho na minha roupa,parecia um espelho.
-Você veio?Quer saber o que tou fazendo co teu dinheiro? – E riu.
-Pois,pois – ri também.
-Entra,cara.
Obedeci e sentei-me na cama.
-Quer café? – Servindo-se de uma xícara.
-Não,obrigado – pensei que ele fosse menos educado.
-Que bom que você veio – ele me disse.
-??
-Eu fico aqui,sozinho,o dia todo.É chato,sabia?Nem cigarro tem.Sorte que consegui o cafezinho.
-Mas tem que ficar.Nem sair do quarto deveria.Vai que aparece um daqueles seus amigos.
-Não são meus amigos.
-Não?
-Eles já me meteram em um monte de roubadas.E não vêm aqui,só playboy traz garota pra motel.
-Vocês trazem garotos?
-Você trouxe um homem: eu.
Calei-me.Ele tinha razão.
-E eu não saio do quarto – concluiu.
-Como não? Tava fazendo o que lá embaixo ontem?
-Ah.Pensei que você fosse estar lá.Achei que talvez não subisse.Resolvi descer.
Estranhei,mas não disse nada.Resolvi ir embora.
-Amanhã você volta?
Não respondi,mas no dia seguinte estava lá de novo.
4º dia
-Graças a Deus que o senhor chegou!
-?
-Seu acompanhante está mal!Nós queríamos chamar um médico,mas ele não deixou.
Corri para o quarto dele.Nem me lembrei de protestar por ela tê-lo chamado de meu acompanhante.
Kanon se debatia e revirava na cama,como se tivesse uma dor intensa.O suor escorria em bagas,gemia desesperado.
Aproximei-me devagar.Eu já estava à frente do leito quando ele entreabriu os olhos:
-Sa...ga... – saiu com dificuldade.
-Tudo bem? – sentei-me a seu lado,preocupado.
-Eu...Eu tô muito...Muito tem...po...sem...
A respiração hesitante,o rosto pálido só podiam indicar uma coisa:síndrome de abstinência.
-É melhor levar você ao hospital.
-Não... – gemeu. – E se me acharem?
-Mas você...
-Me arruma...Um...
-Não!Eu não vou comprar droga nenhuma pra você.
-Parece...Que... eu...vou...morrer...
-Quer um calmante?
-Não... – murmurou com voz rouca.Os grandes olhos,azuis,pareciam querer me hipnotizar,mergulhar-me neles,afogar-me naquele oceano de águas profundas.- Só...Fi...ca...Aqui...Co...migo...por favor... – E apertou minha mão,ainda sofrendo.
Fiquei ali,ao lado dele,às vezes o consolando,às vezes o segurando nos pulsos,enxugando-lhe o suor,até a meia noite,quando Kanon finalmente dormiu.
Cheguei em casa,meus pais me esperavam,preocupados:
-Saga,que demora!Aconteceu alguma coisa?
-Um amigo meu passou mal e fiquei cuidando dele – e era verdade.
-Puxa,que susto você nos deu - disse minha mãe.
-Da próxima vez,avise.
-Não pude ligar,ele estava muito mal.Desculpem se os preocupei.
-Não faz mal – mamãe sorria. – Seu amigo está bem?
-Sim.Acho que vou visitá-lo amanhã,antes do serviço.Agora,com licença.Preciso tomar um banho e dormir.
5º dia
Acordei mais cedo e fui vê-lo.A camareira me sorriu.Ele dormia um sono pesado e perturbado,apertando o lençol entre os dedos.Sussurrei-lhe algumas palavras e saí.
À tarde voltaria.
Quando fui vê-lo,ele estava mais tranqüilo que na noite anterior,mas ainda agitado.
-Você veio...
-Vim de manhã também,mas você estava dormindo.
-Por que não...Não me...Acor...dou?
Tive um sobressalto e o vi revirar-se na cama,como se procurasse uma posição melhor para minorar a dor.
-Eram seis e meia e você estava muito cansado.
-Estou..Sempre cansado.Quando fico sem,piora mais.
-Sem droga?
-É.
-Sente alguma dor?
-Não,que ټ!
Assustei-me com a violência da resposta e me levantei.Ele percebeu.Seu olhar se transformou:
-Desculpe – pediu,e eu pensei que ele fosse chorar.
-Sem problemas – falei.Ficamos em silêncio.-Eu vou embora.
-Não!
-Hum?
-Eu...Eu...- corando. – É...
Estranhei aquilo.
-Saga,eu...Não quero nunca... mais...Usar...
-Vai tentar deixar a droga?
-Vou...Você me...Ajuda...?
Sorri.Mas precisava perguntar:
-Por que quer fazer isso?
-Toda vez que fico...Sem...Eu fico assim...Aí,eu uso mais...até passar...Mas sempre volta pior...Eu uso de novo,melhora,mas sempre volta... – As lágrimas começaram a descer.Sentei-me ao seu lado.-Fiz coisas de que me arrependo...Eu bati na minha mãe...Mal...tratei uma menina...
-Shh...Shhh...Esqueça,está bem?
-Não! - Ele chorava desesperadamente. – Deixa eu falar!Foram eles que me mandaram falar com você,pra te assaltar. – Levei um choque. – Não sei o que me deu que eu não te roubei.Eu cheirei tudo antes de ir falar contigo,naquele dia.
Suspirei.Ele continuou:
-Sóbrio,eu nunca ia conseguir matar você.
Eu o abracei.
-Calma,calma.Olha,não tem problema,eu vou te ajudar,ta bom?
-Não me odeia?
-Não,senão não teria vindo aqui.
-Me ajuda... – Apertando-me com força. – Por favor...
-Estarei aqui,com você, sempre.
Kanon não me soltou e eu sentia as lágrimas quentes no meu ombro.
