Antes da Tempestade
I
O carro seguia pela estrada asfaltada em meio às montanhas, pouco acima do limite mínimo de velocidade da pista. Apesar do pouco movimento na rodovia, não era raro algum motorista apressado surgir buzinando atrás do vagaroso veículo, para pouco depois arriscar uma ultrapassagem antes de uma curva fechada. Um observador neutro diria que a cautela daquele que guiava o automóvel em questão se dava justamente devido ao caminho ser considerado perigoso – tanto por atravessar uma área elevada e acidentada, quanto pela via se mostrar estreita demais e praticamente ziguezaguear através dos montes. Apesar de tal justificativa pesar para a lentidão do motorista, não se mostrava a única: ele odiava dirigir. E se seu trabalho não o exigisse, por certo jamais teria feito questão de aprender.
Depois de contornar mais uma curva, endireitou a valise disposta no assento do passageiro. Ela havia caído e se aberto sobre o chão do carro alguns quilômetros antes, forçando o viajante a parar no acostamento e endireitar tudo para poder prosseguir. Seu encargo envolvia vasta burocracia, era fato, e não precisaria dificultar ainda mais as coisas misturando documentos ou, numa pior hipótese, perdendo-os. O cuidado com a pasta mostrava-se mais um motivo para relutar em acelerar rumo ao seu destino – para infortúnio dos demais na rodovia... Não que se importasse, realmente.
A paisagem, ao menos, enchia-lhe os olhos. Habituado à maresia e clima quente da Base Naval Donnell, o cenário montanhoso de temperatura mais amena e a floresta de pinheiros se mostravam de seu agrado. Um bom lugar para se passar férias; e a região era conhecida por possuir várias cidades que viviam do turismo – como aquela para qual se dirigia. Talvez voltasse ali dentro de alguns meses, quando ganhasse uma folga e tivesse a cabeça vazia de preocupações...
Tais preocupações, por sinal, poucas vezes haviam lhe incomodado tanto. Desde que aceitara defender a causa daquele cliente, sua vida passara a girar quase totalmente em torno dela. E, remetendo aos acalorados debates dos tempos de faculdade, deparara-se, com seu pouco tempo de serviço à Marinha, com um dilema que rogara para jamais se defrontar: que fazer quando se confia de verdade na palavra de um réu que alega inocência, não havendo, todavia, quaisquer provas que o apóiem? Devido a esse impasse, não pudera impedir que um fuzileiro naval fosse condenado à morte...
Da qual, segundo constava, poderia ter ele escapado, de uma maneira ou de outra.
Era para isso que viajava, encarando seu eterno receio em dirigir. Se fosse para ter de novo uma consciência tranqüila e fazer valer a Justiça – algo em que ainda acreditava, apesar da hipocrisia reinante – ele se achava disposto a vencer todas as dificuldades... E colocar um ponto final naquele assunto. Ainda que sob as ordens incertas de seus superiores.
Perguntando-se se teria sucesso em seu objetivo, passou por uma placa junto à estrada informando estar se aproximando do local para o qual rumava, a silhueta da urbe desenhando-se pouco a pouco entre as montanhas e focos de floresta...
"Raccoon City".
Após sorver mais um gole de café, ela pousou a caneca branca com o emblema do S.T.A.R.S. sobre a madeira da escrivaninha. Ainda que a bebida tivesse a meta de tirar-lhe o sono, não conseguiu evitar um longo bocejo, esforçando-se para manter os olhos abertos diante da tela do computador. A única luz ainda acesa no apartamento era a do quarto, e os sons provenientes das ruas haviam se extinguido gradualmente... até que se deparasse com o familiar silêncio da madrugada. Perguntou-se se Chris, Jill e Barry também estariam de vigília, tanto para reunir provas contra a Umbrella quanto optando por uma guarda sonolenta ao invés de um sono indefeso – no qual poderiam ser aniquilados por agentes da empresa. Desde que haviam divulgado publicamente seus relatórios sobre o incidente nas Montanhas Arklay, passaram a andar armados dentro de suas próprias casas e até mesmo o sono, antes reconforto, passara a oportunidade de serem calados eternamente por seus inimigos. Toda Raccoon os ridicularizara por seus relatos – mas a Umbrella ainda assim queria vê-los fora do jogo. Seus experimentos insanos estariam em eterno risco enquanto os S.T.A.R.S. vivessem; mesmo não mais operando oficialmente, desde que o chefe Irons extinguira a unidade.
Coçou os olhos. Apesar de tudo, evitar dormir tinha um lado bom...
Afastava os recorrentes pesadelos.
Desde que se jogara exausta no assento do helicóptero que os resgatara, Rebecca Chambers tinha evitado o pensamento egoísta de achar ter sofrido mais que todos os outros. No entanto, por mais que negasse, a hipótese era bem coerente. Enquanto os sobreviventes da equipe Alpha haviam enfrentado somente os perigos da Mansão Spencer e suas instalações subterrâneas, Rebecca, na ocasião praticamente dois dias sem dormir, chegara ao mesmo local depois de uma jornada insana por um trem contaminado, um antigo centro de treinamento dominado por sanguessugas e uma usina onde eram realizados experimentos além da mais torpe imaginação. Em adição à terrível sucessão de acontecimentos, ela era então uma mera novata no time Bravo sem real experiência em campo – além do que, não passava de uma perita em bioquímica e enfermeira, não uma atiradora de elite ou agente de reconhecimento. Os integrantes do Alpha, por sua vez, haviam percorrido a mansão validos por suas habilidades já bem mais superiores...
Chambers mais uma vez procurou afastar o pensamento, entretanto. Ninguém sofrera mais ou menos. Todos eles se tornaram companheiros de sobrevivência, e agora iniciavam uma nova luta para desmascarar a Umbrella. E, embora não corressem tanto risco quanto se digladiando com zumbis e outras armas biológicas, a determinação e competência que mantinham se mostraria vital para o triunfo.
Embora, não raro, Rebecca, com seus somente dezoito anos, fraquejasse...
Oh, Billy... Bem que poderia estar aqui para me ajudar. Eu não teria sobrevivido ao pesadelo sem seu apoio. Agora poderíamos nos unir para trazer à tona a verdade...
A imagem de Coen surgiu repentinamente diante de si, com as mesmas roupas e aspecto de quando o vira pela última vez... até que se desfez em névoa e claridade, e Rebecca percebeu ter cochilado diante do computador. Endireitou-se na cadeira, longe de desistir. Ao menos não nas próximas horas. Seria mais seguro repousar quando o sol raiasse, e não tinha mais de ir à delegacia logo de manhã.
Chris, dias antes, informara-os suspeitar que a Umbrella desenvolvia um novo vírus, muito mais poderoso que o "T", de codinome "G". Agora invadiam o sistema da empresa e buscavam pistas com o pouco que obtinham, correndo risco dia e noite. Naquela madrugada, Chambers analisava alguns relatórios e gráficos enviados por Redfield; mas, já chegando ao final da tarefa, não via neles nada de útil. A Umbrella, afinal, não deixaria seus segredos tão expostos...
Rebecca tomou um último gole de café, quase ao mesmo tempo em que concluía a leitura do último documento. Relatórios sobre produtos químicos, nada de vírus ou qualquer outra coisa que ameaçasse a pose da Umbrella como benéfica indústria farmacêutica. Lá fora, pela janela, a jovem teve um vislumbre do céu azul escuro do início de manhã. Ele fazia com que se lembrasse dos momentos finais na usina e, um dia depois, na mansão, quando acreditara que o pesadelo chegava ao fim e uma manhã ensolarada de tranqüilidade se avizinhava...
Deitando-se para finalmente dormir, Rebecca imaginou se o pesadelo na verdade não estaria apenas começando, a noite ainda custando muito a terminar...
