Saints Portrait
As coisas na pensão 'Santuário' nunca foram muito calmas.
Eu, o pacífico habitante do quinto andar, tenho alguns hábitos curiosos, é verdade—quem não os têm? Mas eu pareço bastante normal quando colocado quase exatamente no meio desse prédio maluco.
Um dos meus hábitos é, por exemplo, dormir até a razoável hora que é meio dia. Pois bem, este eu tive que abandonar. Todos os dias, às cinco, seis ou qualquer hora absurda que o valha, o budista maluco do quarto do lado inicia sua oração matinal para celebrar o sol. Assim que me mudei para cá, eu costumava ignorar; depois, comecei a bater na parede; por fim tive que me conformar e simplesmente enfiar a cara no travesseiro enquanto ouvia a reza sânscrita.
Malditas paredes finas.
Essa é uma das desvantagens de morar em uma pensão: a regra é "os incomodados que se mudem". Não gosta do seu vizinho? É uma pena. A casa te incomoda? Sinto muito, meu caro.
Naquela manhã específica, entretanto, eu fui acordado duas vezes: a primeira pelo budista maluco; a segunda, pelo meu vizinho do outro lado.
Mencionei que ele é o maior encrenqueiro do prédio?
O lema parece ser: uma mulher nova a cada quarta e a cada sábado. Segundas e terças ele tira folga. Ele acorda ainda mais tarde que eu e costumava ouvir uma música altíssima de madrugada, até que o Camus do décimo primeiro quarto presenteou-lhe com fones de ouvido. Se até uma pessoa do décimo primeiro conseguia escutar, acho que podem imaginar minha situação.
Mas quando ele bateu na minha porta às onze da manhã e eu atendi cambaleante, fiquei preocupado: Máscara da Morte estava fora da cama, e nem eram duas da tarde ainda.
No mínimo, o primeiro andar estava pegando fogo.
"Hey, tem leite em pó aí?"
"Leite em pó?" Ecoei, meio atordoado, ainda sem estar completamente acordado.
"É, se for leite normal serve também, só que te conhecendo ele vai estar azedo."
"Azedo?" Eu repeti.
"Qual é, Aioria, tá lesado? Deixa que eu mesmo pego." Ele tentou me afastar, mas eu bloqueei a passagem com o meu braço. "Anda, Aioria, eu não quero pedir pro Shaka. Ele vai me dar leite numa tigela e ainda vai querer que eu agradeça àquele deus gordo dele."
Isso lá é verdade. Quando eu pedi água pro Shaka, uma vez, ele me deu de beber numa tigela. Parece que é assim que se faz lá na índia. Quer dizer, vamos lá, o que há de errado com o clássico copo?
"Pra começar, Buda não é um deus. E não tem leite aqui, por que não desce e pega na cozinha?" Eu cocei a nuca e bocejei. "Eu nem sabia que você bebia alguma coisa sem teor alcoólico."
"Não é pra mim, idiota, é pra ela." Ele respondeu ascendendo um cigarro. "Mas tem razão, você está retardado demais agora. Vou pegar lá em baixo." E ele virou-se sem nem se desculpar por ter me acordado para descer as escadas. Ah, bem, dane-se ele. Eu já estava acordado mesmo, então decidi me vestir descentemente e quem sabe ver a fórmula um comendo uma tigela de sucrilhos.
O meu plano estava indo muito bem, até chegar na parte da fórmula um.
A sala da tv nunca está vazia, mas às vezes dá pra convencer quem está vendo a mudar de canal. Esse não é o caso dos gêmeos do terceiro quarto.
Saga e Kanon são gêmeos completamente opostos. Eles dividem um quarto, por mais suspeito que isso possa parecer, mas á só porque os dois estão muito duros. Pelos menos até onde eu sei. Saga tem um eterno ar de quem é o rei desse lugar só porque ele preside o que a gente chama de 'reunião de condomínio', embora na verdade sejam reuniões para beber. Já Kanon parece mais um rebelde sem causa que odeia deus, o mundo e o que mais houver para odiar.
Menos, parece, seriados de ficção científica.
"Que droga, Saga, quer pôr de volta em 'Perdidos no Espaço', seu desgraçado?" Ele disse, dando um soco no braço do irmão.
"Eu quero ver o documentário sobre a vida de Luis XIV. Depois você aluga isso naquela locadora em cima do posto de gasolina!" Respondeu Saga, com um refinado tapa na nuca.
"Você sabe a vida de Luis XIV de cor e salteado!"
"E você sabe 'Perdidos no Espaço' de cor e salteado!"
Eu, parado na porta, com minha tigela de sucrilhos nas mãos, intervi gentilmente: "Parem de ser idiotas. Tem fórmula um hoje, passa esse controle pra cá."
Ambos viraram-se para mim, surpresos. Kanon foi o primeiro a se virar de volta e voltar ao canal do seu seriado sem que o irmão percebesse, porque estava entretido em me dispensar.
"De pé antes do meio dia, Aioria?" Ironizou. "Onde é o incêndio?"
"Pergunte pro Máscara, foi ele quem me acordou... por mais estranho que isso pareça." Eu respondi, dando de ombros. "Agora, posso ver a fórmula um? Ao contrário de vocês, eu não sei como o programa aca—"
"KANON, dá pra por de volta do History Channel?"
"Sai fora, Saga!"
Ótimo. Eles decidiram descobrir quem é mais idiota. Tem mesmo que ser agora? Tem que ser na disputa pelo maldito controle remoto? Eles não iam me fazer comer sucrilhos na sala, iam?
Alguns minutos depois, na sala.
A sala é realmente um dos lugares mais detestáveis desta maldita pensão. Todo mundo que não tem nada para fazer e não conseguiu se infiltrar na sala da tv vem pra cá. Como somos todos diferentes entre nós, isso resulta em um monte de marmanjos de mau-humor, cada um irritando cada vez mais o outro, num espaço de poucos metros. Aliás, eu não sei o que há nessa pensão, mas o número de homens por metro quadrado ultrapassa em muito a média do governo.
"Já não te disse para não comer na sala, Aioria?" Resmungou Camus por cima de seu jornal. "Por que não usa a maldita cozinha?"
"Porque a Saori está cozinhando e vai me expulsar." Eu respondi. Camus reclama até quando eu estou respirando alto demais perto dele, é impressionante.
"Domingo é um dia tão chato." Murmura, de repente, Miro. Ele é o único na pensão que supera Máscara da Morte no quesito 'ser mulherengo': ele não tira as tais férias na segunda e terça. "Afrodite, dá pra abaixar o som do walkman? Eu consigo ouvir a música daqui!"
"Não vem com grito pra cima de mim não!" Foi a resposta. Afrodite sempre foi o mais suspeito dos moradores. Quero dizer...
"Isso na sua boca é batom?" Perguntou Miro, erguendo uma sobrancelha e exemplificando perfeitamente o que eu ia dizer.
"Não é da sua conta?" Respondeu Afrodite, imitando o gesto. Com a diferença que a sobrancelha erguida tinha sido feita em cabeleireiro.
"Que nome você dá à essa cor? Flamingo Cafona n° 5?" Riu Miro, chegando mais perto, mas se afastando repentinamente quando Afrodite deu um zombeteiro beijinho no ar e murmurou um 'que provar?'. "Opa, não vem com essa!"
"Podem parar de ser retardados, só por um minuto?" Murmurou Camus, exasperado.
"Desculpe, você nos contagiou." Miro cruzou os braços e fez uma careta. Uuh. Mexeu com o Camus. Treta, treta. Isso aqui era muito melhor que assistir tv.
"Ah, vamos, não precisam começar com isso a essa hora da manhã." Interviu, de repente, Mu, o pacifista. Ele mora logo no primeiro quarto, o que é uma coisa boa, porque quando alguém vem nos visitar passa primeiro por ele e fica com a impressão de que esse lugar é quase normal. Doce ilusão.
"Estraga-prazeres. Estava começando a ficar bom." Eu respondi, comendo minha última colherada de sucrilhos.
"Se mal lhe pergunto, Aioria, quem é você para se divertir às nossas custas? Nem costuma estar consciente à essa hora." Miro pareceu me ver pela primeira vez. "Aliás, onde é o incêndio?"
"Qual é a da obsessão de todo mundo nessa maldita pensão com incêndios? O último que teve foi por culpa do Shura, não minha."
Desde então, nós o mantemos longe de tomadas e colheres. A qualquer custo.
"Pode ser, mas foi no seu quarto." Rebateu Miro. "Aliás, você nunca nos explicou o que o Shura estava fazendo lá..."
"... Concertando minha luminária. Quantas vezes eu não expliquei isso? Ele é eletricista, lembram?"
Saori apareceu na porta da sala, de repente. Ela parecia meio suja e cheirava a açúcar queimado. Isso é muito raro—ela cuida dessa pensão com mão-de-ferro, está sempre limpa e imaculada em seu vestido branco. É a única mulher aqui dentro e funciona como uma espécie de mãe pra todos nós.
"Meninos, me dão uma mão na cozinha?"
Todos se levantaram. Inclusive—surpreendi-me—Camus largou o jornal e foi ajudá-la, mas quando eu fiz menção de segui-los, ela me barrou com um gesto e murmurou 'ah, não se preocupe, Aioria, não precisa.'
E todos me deixaram sozinho. Inclusive, quando fui ver, Saga e Kanon tinham saído da sala da tv.
Tem caroço nesse angu, e eu vou descobri o que é!
X
Bem, quanto tempo!
O tema da vez era pensão. Pela primeira vez, me pego fazendo não um one-shot, este será um two-shot ou sei lá o nome que se dá à fics de dois capítulos!
Achei que seria engraçado transformar o Santuário numa pensão XD agora os cavaleiros convivem sem que haja uma escada a separá-los! Espero que tenha ficado divertido. Não apareceu todo mundo ainda, isso eu deixo para o próximo capítulo que não sei quando farei.
EDIT: Repostei o capítulo, com a betagem da Chibi Anne. Obrigada, sobrinha!
Kiskiss, au revoir!
