Disclaimer: Como todos sabem, as personagens não pertencem a mim, e sim à J.K. Rowling. A história foi escrita sem fins lucrativos e sem a intenção de usurpar os direitos de quem quer que seja. Para aqueles que não leram A Ordem de Fênix, é melhor deixar pra ler o conto depois, porque ele contém spoilers. A música "Sketches of Pain" é do Tears for Fears, para aqueles que se lembram. E sim, prefiro usar os nomes das personagens em inglês. É hábito...
Capítulo 1 – Uma coruja inesperada
Era um dia monótono, como outro qualquer. Entardecia, e uma chuva fina caía sobre o telhado do prédio. Sem dinheiro, como sempre, ela preparava o chá no fogão de duas bocas usado, que seu pai havia conseguido por intermédio do escritório. Porque, embora habitasse a velha mansarda na rua Falls, 319, em meio a trouxas, Ginny não costumava se misturar muito. Não que fizesse questão de se isolar, mas os vizinhos pareciam incomodados ao passarem por ela, e os comentários que ela ouvia através das orelhas extensíveis lhe garantiam que a opinião formada na vizinhança era a de que ela era definitivamente tida como uma solteirona solitária e estranha. Bem, pelo menos, era uma garantia de que seria sempre deixada em paz.
De frente para a janela, contemplava o céu plúmbeo, que prometia mais chuva, pensando no serviço pendente. Escrever artigos acadêmicos para a Academia Brasileira de Magia e Bruxaria não era bem o que tinha em mente quando se formou mas, graças a um contato útil de Mione, estava empregada. Coragem para visitar o local ela até tinha, o que faltava mesmo era ânimo, e o gesto de levar a caneca fumegante à boca era automático.
Sentindo o gosto leve e exótico da canela com rosehips, divisou ao longe um ponto branco que oscilava ao vento. Crescia muito lentamente e, antes mesmo que seus contornos estivessem definidos, o coração de Ginny batia em descompasso. Era ela, só podia ser ela! Mas há quanto tempo não a via? Talvez, fosse uma outra, embora as brancas fossem realmente raras na Grã-Bretanha.
De massa amorfa, o ponto passou a ter os contornos do que era claramente uma coruja e, quando chegou ao peitoril da janela, molhada e com algumas penas viradas, foi recebida pelas mãos trêmulas da jovem. Em sua perna direita, vinha amarrado um pergaminho obviamente protegido pelo feitiço Impervius.
-- Hedwig? Tem certeza de que não errou o endereço, querida?
Mas o destinatário, numa letra que ela conhecia muito bem, dizia "Srta. Virginia Weasley, Rua Falls, 319 – W2 – Londres". Na verdade, já fazia tempo que ela não tinha notícias dele. Especialmente depois do que aconteceu no baile dos alunos do sétimo ano. A humilhação era tanta, que não conseguira encará-lo de frente mesmo quando ele passou a ser considerado o grande herói do mundo mágico, e tudo o que pôde declarar ao Daily Prophet é que o "admirava" pelos grandes feitos e que lhe desejava sorte em seus empreendimentos. Porque, depois da derrota de Voldemort e da mudança de direção em Hogwarts para as mãos de McGonagall, tudo o que soubera de Harry é que estava empregado como auror no Ministério da Magia. Afinal, o que mais poderia dizer depois da vergonha que passara?
No entanto, parecia-lhe agora que, depois de seis anos, ele é quem tinha coisas para dizer. E a carta era, na verdade, um convite:
Para a amiga Ginny Weasley,
Rua Falls, 319 – W2 – Londres
Querida Ginny,
Já faz um tempo que não nos vemos, não é? Tenho visto o Ron e a Mione, e são eles que me dão notícias suas. Acho ótimo que esteja trabalhando com os brasileiros; eles são profissionais capacitadíssimos e, de fato, têm nos ajudado um bocado a manter as coisas sob controle, mas você deve saber disso, já que se comunica sempre com a Academia.
Escrevo para convidá-la a comparecer no Três Vassouras no próximo dia 25 de novembro, para se juntar a mim e aos nossos velhos amigos para uma comemoração: estou de volta a Londres, e desta vez, com Parvati. Como sabe, estamos juntos há quase dois anos e, assim, resolvemos nos reunir para oficializar o nosso noivado. Por favor, não deixe de comparecer, sim? Será às quatro e meia da tarde, e fazemos questão que esteja lá!
Nós te aguardamos, então, e pode trazer um amigo ou uma amiga com você, é claro. Por favor, mande uma resposta pela Hedwig, ok?
Com carinho,
Harry
Um convite... de noivado! Aquilo era uma bomba, isso sim! Como ele havia tido coragem de fazer isso com ela??? Acaso ele não lembrava da expressão de dor em seus olhos quando ela o viu descendo as escadas do saguão, tão lindo com suas vestes aveludadas, tão verdes, acompanhado por Parvati? Os homens eram mesmo insensíveis. Ela havia, de fato, brigado com ele e dito que não seria seu par nem por um milhão de galeões, e ele, tão tolo, havia acreditado. Depois daquilo, só restara a ela aceitar o convite floreado de Malfoy, feito com insistência, para ser seu par, como desforra. E foi saboreando cada palavra, num tom baixo, suave e muito calmo, que Draco se virou para ela e disse:
-- Viu só no que deu tantos anos de dedicação, Virginia? Eu lhe disse que, no final, o que você receberia seria uma punhalada. Ainda bem que seus cabelos são da cor do fogo, querida... Eles disfarçam bem seu rosto rosado de raiva... ou seria vontade de chorar?
-- Não ouse falar mal de Harry, Draco! Você não chega nem aos pés dele! -- ela retrucou, empurrando-o. Seus olhos marejavam, mas o orgulho Weasley não deixou que as lágrimas tombassem.
-- Ora, ora, não dirija esta raiva para mim, querida. Ou quer estragar o embuste? Vamos lá, Ginny, não seja criança, chérie... Venha cá, vamos brindar nossa "união" bem pertinho do casal 20... -- e Malfoy a arrastou entre os pares de dança para a mesa de comes e bebes, no meio do salão, onde pegou um par de garrafas de cerveja amanteigada para ambos. -- Vamos para mais perto deles, cumprimentá-los.
-- Não, Draco...
-- Medinho agora, Weasley? Tá bom, tá bom, se não quer falar primeiro, ok. Mas temos de ir lá... Faço questão que aquele panaca veja a "jóia" que perdeu esta noite... -- e ele continuou a guiá-la através da multidão de alunos, em direção a Harry e Parvati.
As lembranças daquela noite continuaram, e o rosto de Ginny voltou a se afoguear no momento em que se recordou do beijo demorado que Draco lhe roubou, para que Harry os visse. Tinha sido um beijo de vingança, é verdade, mas ao mesmo tempo terno e carinhoso, lânguido, provocante. Os lábios de Malfoy cobriram os seus com a força da posse, mas era com gestos leves que ele a abraçava, deslizando suas mãos pela nuca, enredando seus dedos pelos cabelos acobreados e lisos, desmanchando o penteado tão cuidadosamente feito para parecer linda naquele baile, enquanto sua outra mão a provocava propositalmente em suas costas seminuas, delizando para a cintura, sobre o tecido acetinado rubro. O hálito era fresco e quase gélido; arrepiava-lhe a espinha senti-lo, e aquela era uma sensação completamente nova e, mais do que isso, inesperada. Não que fosse seu primeiro beijo -- Dean Thomas também beijava bem -- mas, Deus, como podia aquele rapaz exercer sobre ela, que o detestava, um poder tão grande? E que rastro de fogo era aquele que ficava em suas costas, conforme as mãos de Draco passavam? Um beijo de fato inebriante, surpreendente. Os olhos do sonserino, que normalmente demonstravam desprezo, estavam mais escuros, prenunciando uma tempestade de sentimentos que, pelo que ela viu num relance, também ocorreria para ele. Sentindo-se um tanto quanto zonza, apoiou sua testa no ombro de Draco, aspirando seu perfume almiscarado, tantando manter a respiração sob controle.
-- Diga, Virginia, quando em seus sonhos aquele idiota com a cicatriz na testa te beijaria assim? -- e, olhando para frente, estreitou-a nos braços, pois Harry os vira. E nada fizera para separá-los.
Eis a dor maior: a de ter se sujeitado ao pedido de Draco, que sabia ser por vingança, e a de ver que Harry não a defendera. Ao invés disso, fora Ron que partira para o ataque, sangrando o nariz de Malfoy, não sem antes sofrer um ataque duplo de Crabble e Goyle e de ter, surpreendentemente, se livrado de ambos com uma força que Ginny suspeitava que houvesse, mas que nunca havia tido antes a chance de presenciar. Acompanhou a ambos para a Ala Hospitalar, enquanto Madame Pomfrey se lamentava pela briga e McGonagall prescrevia-lhes o que seria a última detenção. E Harry permanecera no baile, com Parvati. Quando aquilo havia acontecido? Quando havia começado? Não sabia ao certo. Só lembrava de ambos no Baile de Inverno do quarto ano deles, quando acompanhou Neville, e nada mais. Lembrava-se, ainda, do descontentamento de Parvati, porque o menino só tinha olhos para Cho, que acompanhava Cedric. Teria sido durante as reuniões do Exército de Dumbledore? Teriam sido somente lições que ele susurrava em seus ouvidos, enquanto todos treinavam suas lições de Defesa Contra as Artes das Trevas? Não sabia, e se tinha recusado a ouvir qualquer tipo de consolo que Mione viera lhe oferecer após a briga e, principalmente, após o baile. Tampouco quisera rever Malfoy -- o que sentira com o rapaz fora realmente estranho e forte, e sabia que aquilo não poderia ser controlado se fosse levado adiante. Além disso, a briga dele com Ron era a prova definitiva de que sua família o mataria e a desligaria se algo acontecesse. Preferira acreditar, durante todos os anos que se passaram após o baile, que Draco era mesmo um galanteador típico da Sonserina e que, como tal, havia usado a laia Weasley somente para provocar Harry -- uma malfadada tentativa, pelo que tinha visto. Que humilhação. E agora...
Olhou novamente para o pergaminho, nas mãos abandonadas no colo. Começava a anoitecer.
Daylight saved
(Luz do dia poupada)
Daylight saved
(Luz do dia poupada)
To spite the dark
(Para evitar a escuridão)
In spite of the darkness
(Apesar da escuridão)
There I'll crave
(Lá eu cavarei)
There I'll crave
(Lá eu cavarei)
To get to the heart
(Para chegar ao coração)
In spite of the darkness
(Apesar da escuridão)
No quartinho arrumado, ficou escuro. A chuva engrossara, e aquilo que Ginny sentia em seu rosto não era uma gota da chuva, porque tinha um gosto salgado. Um gosto que ela tantas vezes sentira depois daquela noite. Automaticamente, sem se importar com quem pudesse espiar pelas janelas, pegou sua varinha e murmurou "Lumus", e o ambiente se encheu de uma luz fraca. Mas o chá estava gelado. Seu suéter, tricotado com o enorme G, não a aquecia. Outubro, início do grande frio, e aquele convite não a ajudava em nada a se aquecer. Nem mesmo as imensas telas que nos momentos de maior dor havia pintado, para tentar não chorar, aqueciam-na.
Great wide stretches of canvas
(Grandes extensões de tela)
Signed by a godless name
(Assinadas por um nome sem Deus)
Strange bright colours of madness
(Estranhas cores brilhantes de loucura)
Only a fool would frame
(Somente um louco as emolduraria)
Sketches of pain
(Rascunhos de dor)
Sketches of pain
(Rascunhos de dor)
Sketches of pain
(Rascunho de dor)
Ela olhava, e sentia como se toda aquela dor, escondida há tempos por detrás daquelas pinceladas -- porque, depois de um tempo, nem mais para seu diário ousava dizer o que sentia --, tivesse voltado numa só onda. Eram pinturas metafóricas, e o vermelho era o sangue que jorrava, e também o símbolo de toda a paixão, de todo o amor que sentia. E então, chorou. E, de novo, sentiu-se envergonhada por estar chorando por ele.
Some cry shame
(Alguns gritos envergonham)
Some cry shame
(Alguns gritos envergonham)
We tore them apart
(Nós os arrasamos)
Ela tentou lutar contra o sentimento de perda, de tristeza, mas a dor precisava ser extravazada. Chorando, lembrava-se mais e mais das cenas que escondera nos cantos de sua memória, e das frases que a tinham marcado. E do quanto tivera de enfrentar a ira de Ron e de seus irmãos -- até mesmo do chato do Percy, muito impertinente em sua missiva -- por causa de Draco, que teve uma única oportunidade de estar a sós com ela para conversar sobre o que havia acontecido no baile, antes que ele deixasse Hogwarts definitivamente.
We failed to imagine
(Falhamos ao imaginar)
God might claim
(Que Deus pudesse reclamar)
God might claim
(Que Deus pudesse reclamar)
The works of art
(As obras de arte)
We failed to imagine
(Falhamos ao imaginar)
-- Pois é, Weasley, parece que nós dois falhamos ao imaginar que o todo-poderoso Potter pudesse sentir ciúmes de você.
-- Veio para me machucar ainda mais, Draco? -- questionou a garota, que estava pintando uma página do diário. -- Porque, se for para isso, pode virar as costas e ir embora. Eu não preciso de mais problemas além do que o que aquele beijo já me causou.
-- Ora, não vá dizer que não gostou. Você até suspirava... -- o olhar de Draco denunciava zombaria.
-- Bom, parece que você veio mesmo para zombar de mim, Malfoy. Porque agora voltei a ser uma Weasley pobretona e indigna de sua atenção. Então, porque é que você não vai se juntar à sua turma? Aposto que Pansy deve estar louca para te ajudar a arrumar as malas. -- E virou-se para ir embora.
-- Não vire as costas para mim, Virginia! -- agarrando-a pelo braço, Draco a arrastou para perto do lago.
-- Ai, você está me machucando! Me solta!
-- Não suma, então. Vê se larga a mão de ser pirralha e me escuta uma vez! -- bramiu Draco. E, embora o dia estivesse quente, estava reservado àqueles que queriam se despedir dos amigos comemorando em Hogsmeade, de forma que tanto o interior quanto a área externa do castelo estavam quase vazias. -- Não adianta ficar chorando pelos cantos. Porque você não vai mais voltar para ele. Ele não a quer, e as cenas tórridas de beijos trocados com Parvati pelos corredores provam isso para quem quiser ver.
-- Pára, Draco... pára... você não vê que... -- seus olhos estavam embaçados pelas lágrimas.
-- Não, você é que não vê a verdade pura e simples. Ele não reconhece a grande garota que você é e a mulher maravilhosa que você está se tornando, Virginia. -- Soltando o braço da garota, Draco a encarava com uma expressão que, pela primeira vez, estava despida de toda a superioridade sonserina. Era sincera.
Great wide stretches of canvas
(Grandes extensões de tela)
Signed by a godless name
(Assinadas por um nome sem Deus)
Strange bright colours of madness
(Estranhas cores brilhantes de loucura)
Only a fool would frame
(Somente um louco as emolduraria)
Sketches of pain
(Rascunhos de dor)
Sketches of pain
(Rascunhos de dor)
Sketches of pain
(Rascunho de dor)
-- Pára de ficar se lamentando por ele neste seu diário, como você tem feito há anos.
-- Mas...
-- Você acha que são só os panacas da sua Casa que a vêem escondida na biblioteca, escrevendo? Não gaste sua energia dedicando odes e sonetos a alguém que não te merece, não pinte para ele. Ele nunca vai ver nesta sua pinturazinha a dor que eu vejo no vermelho, e o orgulho que eu vejo no ouro. Chega de ser submissa desse jeito.
E Ginny levantou a cabeça, as lágrimas marcando o rosto vermelho, os olhos castanhos encarando um Malfoy totalmente novo, depois de tantos anos de gozação e de perseguição.
Olhando para ela, Draco deixou escapar um suspiro de cansaço e disse:
-- Virginia, se você pertencesse à Sonserina, teria sido minha desde o princípio. -- E Ginny deixou finalmente o queixo cair. -- Porque eu reconheço em você toda a dignidade, toda a grandeza, toda a superioridade que são necessárias para fazer parte da minha Casa, mas foi para a Grifinória que aquela porcaria de Chapéu Seletor te mandou. Achou que sua coragem valia mais para você, e a condenou a seis anos de sofrimento, pelos cantos da Sala Comunal, pelas escadas que vão em direção aos dormitórios, pelas quais você certamente perambula à noite, sonhando que um dia desses ele a pegue no colo e a esconda nos dosséis vermelhos de sua cama. -- Draco respirou profundamente, pegou em sua mão e continuou: -- E, com certeza, condenando-me à cegueira. Porque eu jamais conheci alguém como você. Demorei seis anos para tirar a venda do preconceito dos olhos, para enxergá-la como você é, independentemente de pertencer aos Weasleys. -- Ginny fizera menção de falar -- Não, não me interrompa, porque eu só falarei desta vez, Virginia. Você sabe que o convite e o galanteio foram provocações que não deram certo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro, e aqui estou eu, te dizendo tudo isso. Porque eu não escondo o que eu sinto e vou direto ao ponto. É você quem eu quero, para toda a minha vida. Que se dane o meu pai, o orgulho da minha mãe, ou os Comensais restantes, que reportam ao meu pai tudo o que eu faço. Que se danem os seus irmãos; enfrento todos com uma só mão. É você quem eu quero, porque sei que é a sua força que completa o que há de melhor em mim. O que você me diz?
Ela não podia dizer nada: não sabia o que dizer. O que havia acontecido com ele? Seria um truque para destruir sua família? Para destruí-la de vez? Os olhos de Draco diziam que não. Pela primeira vez, estavam claros, e a íris acinzentada refletia o olhar estupefato da garota. Após o que pareceu uma eternidade, ela respondeu:
-- Draco, eu... não posso. Eu não o amo. -- E então tinha sido a sua vez de ver a dor nos olhos do rapaz. -- E você não me ama, eu sei disso. Seria estupidez da nossa parte...
-- Não, Virginia, não fale mais nada. Basta. -- e ele a abraçou num abraço terno e longo, quente e confortador, procurando naquele contato o alento para os anos que se seguiriam, procurando na pele rosada e sardenta o calor do qual se lembraria depois. Havia sido desse modo, com um beijo breve, pouco mais do que um roçar de lábios úmidos, que ele se despedira dela, aconselhando-a pela última vez: -- Você tem mais um ano aqui. Desta vez, sozinha. Aproveite para crescer, ensaiar para despontar como a grande mulher que você é. Aprenda a encarar a vida de cabeça erguida, não abaixe um olhar sequer. Pinte o quanto quiser, grite sozinha, chore o quanto for, desde que seja longe dos outros. Mostre sempre ao mundo o belo rubi que você é. Aja com decência, Weasley. Eu a estarei espreitando por aí. -- E, dizendo isso, riu-se e foi embora, deixando-a com seu diário e sua dor, agora aumentada pelo remorso de dizer-lhe "não".
Lembrar cenas como essas faziam-na chorar mais ainda. Ainda se lembrava da pintura que havia feito naquela tarde. Uns borrões misturados pelos pincéis e pelas lágrimas. O diário, guardado no fundo de um de seus baús, era a testemunha da tarde em que decidira ficar sozinha pelos anos seguintes. Havia, de fato, agido "decentemente", como Draco a aconselhara e, assim como imaginava que ele a "espreitava", acompanhava sua carreira de sucesso no Ministério da Magia, como um Inominável, sempre viajando, com aquela pinta de galã e sempre tão insuportavelmente arrogante. Mas era a Harry quem acompanhava mais ainda, disfarçadamente, ouvindo "ao acaso" uma ou outra conversa entre seus irmãos e seus pais, na Toca, quando se reuniam. No Natal, era quase impossível não cruzar com Harry em sua casa, e Mione já havia insistido muito para ela parar de ser tão orgulhosa e passar a conversar direito com ele. Tudo não passava de "oi" e "tchau", sem beijos no rosto, sem apertos de mão, somente sorrisos gelados em seu rosto e o olhar de pesar nos olhos do rapaz.
Era, porém, um pesar que sequer chegava perto do que, lá no fundo, ela sentia ao vê-lo em sua casa, sem poder revelar para ninguém além de seus pincéis e de suas telas. Pensando nisso, inspirou um bocado do ar gelado do quarto, levantou-se, exclamou "Accio tela! Accio pincéis! Accio paleta! Accio tintas!" e, intempestivamente, começou a trabalhar. A luz difusa do ambiente não ajudava e, por isso, acendeu os candelabros com um gesto da varinha, e voltou à tela. A pintura abstrata revelava senão seus sentimentos, mais uma vez, e o movimento do braço era lento, deslizando o pincel sobre o branco da tela, traçando com o amarelo-canário -- um nome que havia aprendido em suas leituras do material enviado por colegas brasileiros -- uma curva sinuante, tentando reafirmar seu orgulho grifinório sobre a tela. Mil imagens se passavam em sua mente, enquanto pintava, e foi quando se lembrou de Parvati adentrando a sala da Toca que passou a bater furiosamente o pincel sobre a superfície rugosa e agora manchada de vermelho.
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Não era possível que, após todos aqueles anos, ainda o amasse, mas ela o amava. Desesperadamente. Incansavelmente. Como encará-lo? Como aceitar? Não poderia jamais ser vista sozinha numa comemoração como aquela, e deixar de ir seria reconhecer a dor e o amor fracassado. Draco havia dito que agisse decentemente. Que nunca abaixasse um olhar sequer. Se havia agüentado por tanto tempo, o que era essa fraqueza?
Largando os pincéis, a testa molhada de suor, Ginny sentou-se à frente de sua escrivaninha, molhou a pena na tinta vermelha e passou a escrever com uma letra que em nada denunciava seu estado de espírito:
Olá, Harry,
Vejo que se lembrou de me convidar para o seu noivado. Sim, pode confirmar minha presença. Estarei no Três Vassouras no dia 25 de novembro, às quatro e meia da tarde, para prestigiá-lo, e levarei alguém comigo. Parabéns pela decisão.
Um abraço,
Ginny
Por fora do pergaminho, amarrado com fios finos trançados de dourado e vermelho, escreveu somente "Harry Potter". Virou-se para a coruja branca, que estava acomodada na jaula de sua amiga, e chamando-a, disse:
-- Hedwig, vá e leve a mensagem para o seu dono, querida. Ele deve estar esperando que você retorne ainda hoje, e já faz algumas horas que você está comigo. -- Prendeu o rolo em sua perna, murmurou "Impervius" ao agitar da varinha e acariciou-a. O pio e a bicadinha carinhosa em seu ombro lembrou-a de como Harry era visto com sua coruja em Hogwarts e, mais uma vez, se emocionou. Olhou para suas telas e voltou a dizer: -- Só não o deixe saber da minha dor, Hedwig. Permita-lhe saber que estou perfeitamente bem.
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Sketches of pain
(Rascunhos da dor)
Hedwig alçou vôo através da noite nevoenta e fria, sumindo na primeira nuvem do fog, e Ginny voltou-se decidida para seu quarto. Pegando novamente a pena, rabiscou:
Draco,
Se você ainda está me espreitando, sabe que preciso do seu apoio, agora. Você irá ao Três Vassouras comigo?
Um beijo,
Virginia
-- Venha, Pig. Hoje você tem de fazer um favor pra mim. E veja se entrega esta mensagem ao destinatário correto; nada de levá-la ao Ron. -- A corujinha mínima pulava incansavelmente sobre os papéis da escrivaninha, enquanto a moça amarrava o pergaminho enrolado para "Draco Malfoy, Mansão Malfoy, Wiltshire" em sua perna. Com a varinha, murmurou "Impervius" sobre a coruja e o pergaminho, novamente, e disse: -- Vá, antes que eu perca a coragem. E volte para cá, ouviu? Ron está viajando e pediu para que você não saísse daqui.
A coruja parda e muito pequena saiu para a noite de outono, alegremente, para entregar o bilhete. "Seja o que Deus quiser", murmurou Ginny, olhando para o pontinho que sumia no céu esfumaçado. Fechou as cortinas e, somente então, olhou para o quadro à sua frente.
