Nota da Autora: "Scars From Long Ago (Tooi Hi no Kizuato)" é parte integrante do soundtrack do anime 'Suzuka'. E, apesar disto, a música que é posta ao longo do texto não é esta, e sim, "Shinjitsu no Uta", do anime Inuyasha.
Disclaimers: "Saint Seiya" não pertence à mim, porque se me pertencesse, eu certamente não estaria aqui, e sim, estaria indo receber meu Prêmio Nobel. De qualquer forma, ele pertence à Masami Kurumada, (in)felizmente, e aos devidos licenciados, onde, (in)felizmente novamente, não estou incluída.
Scars
From Long Ago
Petit
Ange
Motto ima ijou ni hadaka ni
natte
(Assim como você vive intensamente a
vida)
Ikite yuku jutsu oshiete yo
(Por
favor, ensine-me a ser assim)
Honno sukoshi dake watashi
o yogoshite?
(Pode me ensinar só um pouco?)
Parte I: Prólogo
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Inglaterra – Abril de 1957.
A chuva não era exatamente a companhia mais agradável do momento. E, aliás, ultimamente ela estava sendo amplamente odiada. Os dias eram resumidos em pessoas saindo de guarda-chuvas e o céu constantemente enviando sons irritantes de trovões. E a água caía... E caía... E caía. Não dava trégua nem sequer descanso.
Um escritor não sobreviveria naquelas condições. Pelo menos, não um escritor normal. Ainda mais ele. A chuva era boa, pelo menos para ele, quando o texto precisava de toques dramáticos. Era boa para descansar. Era boa até para ficar olhando. Mas quando ela perdurava dias, aquilo tornava-se uma tortura, tornava a escrita uma coisa totalmente longínqua de suas capacidades do momento.
Nestas horas, era bom agradecer pelo prazo ser grande e pegar seu sobretudo e o guarda-chuva. Esfriar a cabeça, ficar desviando poças de chuvas... Fazer alguma coisa que não fosse encarar aquela máquina de escrever sem ter uma idéia sequer para pôr no papel. Foi o que ele fez. Os dias de um escritor são cheios de glória quando publica-se seu livro. Noites de autógrafos, bailes onde comentam suas obras... Mas durante o processo de criação, só Deus sabe o quanto era terrível, e até tedioso.
O guarda-chuva preto fazia um par bonito com aquele sobretudo da mesma cor. E o pior era que o inventor do guarda-chuva só podia ser um anão. Ele, um homem de porte alto, molhava-se todo nos pés desde o instante em que colocou os mesmos para fora de sua modesta residência.
E o tédio continuava...
Talvez, se desse uma volta por aí, pudesse encontrar algo que lhe chamasse a atenção e tirasse-lhe daquele marasmo. Mas tudo no que pensava enquanto caminhava pelas ruas daquela cidade era em como seu livro saía perdendo com aquela temporada de chuva e no que o salvaria daquela situação. Será que se ele dormisse e só acordasse amanhã a chuva iria parar, ou iria acordar com aquele som de água contínua caindo de novo? Tudo bem, nos primeiros dias é ótimo, mas depois incomoda.
Ah, ele precisava urgentemente de algo para ocupar os olhos e sua atenção. Já chegava a pensar em coisas ridículas como aquelas.
Talvez os escritores sejam seres abençoados. Quando ele implorava por inspiração e em seguida bebericava seu costumeiro chá, ela aparecia de repente. E agora, quando ele implorou por algo que tirasse-lhe do marasmo que aquela chuva produzia, este pedido também foi atendido miraculosamente.
Não interprete mal suas ações, mas foi uma mulher quem chamou sua atenção. Mas não era qualquer mulher. As que ele conheceu até hoje, ou grande parte delas, ficariam desgostosas e histéricas naquela chuva, com medo de sujar o vestido ou desmanchar o penteado. Mas não aquela pessoa. A garota estava parada na frente de um canteiro de rosas vermelhas do parque, e encarava-as. Isso ele só deduziu, porque estava de costas para a mesma.
E, aliás, ela não tinha guarda-chuva! Isso foi o suficiente para que aquele lado insuportavelmente cavalheiresco de sua personalidade, que sempre aparecia em momentos inoportunos assim, aparecesse.
-"Senhorita, vai pegar um resfriado nesta chuva."
Um movimento rápido da cabeça indicou que ela estava distraída e acordou de seus pensamentos ao ouvi-lo dizer aquilo. Se bem que qualquer um acordaria se, de repente, uma pessoa colocasse um guarda-chuva em cima de você e cessasse seu contato com a chuva. Para completar, a tal pessoa vinha com uma frase típica de gentlemans. Para uma dama, é assustador. E para ela não foi diferente.
Quando ela virou-se para encarar o dono do gesto, o escritor notou que a garota era dona de olhos lavanda. Roxos como as hortênsias de sua varanda. Não soube explicar exatamente, mas sentiu uma sensação semelhante a um choque quando a viu. Nada que o abalasse, é claro.
-"Sim, claro."
-"Como?" – perguntou, com um rosto desentendido. Ficou distraído com aquela sensação, e sequer ouviu a constatação dela naquele momento.
-"Eu disse 'sim, claro'. Tire o guarda-chuva." – o tom de voz dela era doce e sério. Ela lembrava-lhe aquelas damas de alta sociedade, sempre intocáveis.
O escritor ficou numa situação dúbia. Tirar ou não tirar? Aquela parte insuportavelmente cavalheiresca insistia para que, como um bom cidadão, não deixasse aquela mocinha de aparência séria e meiga tomar chuva, mas outra parte dele dizia que ele foi um idiota de vir se meter ali.
-"Mas a senhorita vai molhar-se..."
-"Eu sei exatamente o que acontecerá, senhor. Entretanto, peço outra vez para que tire o guarda-chuva de minha cabeça."
Os olhos lavanda dela estavam fixos nos âmbar dele, e aquilo perturbava-o. Não era a primeira vez que alguém o encarava nos olhos, mas sentia-se tão desarmado diante dela. Aquele tom calmo, sem sequer alterar-se, aquela silhueta... Definitivamente, aquela garota era uma daquelas damas ricas e intocáveis, que desde cedo são treinadas com teatro e expressões corporais para serem o mais elegantes possíveis.
Talvez a vida criativa finalmente estivesse fazendo efeito em seu julgamento das pessoas. E se ela não fosse nada disso? E se fosse só uma maluca que gosta de tomar chuva enquanto fica admirando rosas? E daí? Mas o que tudo aquilo tinha a ver com a situação? Aquela confusão mental o estava deixando nervoso.
-"Veja bem, senhorita... Eu também terei de insistir para que aceite este guarda-chuva." – a voz era gentil, apesar de firme, destarte sua confusão interior.
-"Não vejo necessidade. Minha intenção é tomar chuva."
-"Evoco o argumento inicial: irá resfriar-se se fizer isso." – um suspiro escapou dos lábios masculinos. Agora o tédio voltava, depois do susto inicial.
-"Quando chegar em casa, serei recebida por várias criadas que cuidarão para que um resfriado seja o último dos problemas."
Qual seria a palavra para descrever aquele sentimento que percorreu sua composição? 'Empatia'? 'Admiração'? Não soube descrevê-la mentalmente naquele momento, mas soube que, de alguma forma, ficou atraído por aquela jovenzinha de cabelos negros. Na verdade, ela falou aquilo com tanta naturalidade e tédio que ele supôs que ela não gostava daquilo.
E, bem... Ele também não. Por isso, de certa forma, viu-se nela, e aquilo causou a 'empatia'. Tanto foi aquela sensação que ele obrigou-se a fechar o próprio guarda-chuva, para igualar-se àquela estranha. Aquele gesto não despertou maiores reações na jovem, mas nele sim. O frio da água e do vento fresco que soprava naquele momento. Talvez, tenha sido uma decisão precipitada, e...
-"Hum... Importaria-se se perguntasse qual seu nome?" – tentou esquecer aquela sensação incômoda distraindo-se em perguntar-lhe coisas.
-"Pandora. Pandora Heinstein."
'Pandora'. Belo som. Belo nome. Imediatamente, a mente vagou para a mitológica história da bela dama criada por Hefestos para punir o irmão de Epimeteu, Prometeu. Levou uma caixa consigo e abriu-a por curiosidade mórbida. Na verdade, assim como aquela Pandora, esta também era 'dotada de todos os dons'. Tinha cara de ser jovem, mas apesar disto, era bonita, até.
-"Heinstein... Você não é daqui, não é?" – talvez estivesse ultrapassando os limites de uma conversa formal e da primeira impressão, mas...
-"Não, senhor. É um sobrenome alemão."
-"Entendo."
Mais uma vez, sua mente trabalhou por conta própria. A Segunda Guerra acabou não fazia muito tempo. Quem sabe a família, ou o que restou dela, abrigou-se ali para tentar vida nova. Ouviu muitas histórias do pai e da sociedade de alemães e outros que participaram daquele massacre que viajaram para outras terras recomeçar a vida. Mas isso já era, como mencionado anteriormente, frutos de seus devaneios.
-"Posso perguntar-lhe também quem é você?" – apesar de conversar com ele, Pandora continuava com os olhos fixos nas rosas. 'Será que sou tão desinteressante assim?', pensou ele.
-"Claro, claro. Eu sou Rhadamantys Wyvern. Talvez já tenha ouvido meu..." – a frase não chegou a ser concluída, pois um gesto de espanto sucedeu-se no rosto dela.
-"Wyvern... O escritor?" – os olhos violeta faiscaram de surpresa.
-"Ele mesmo."
Imediatamente, a jovem alemã virou-se para encará-lo, com um rosto que beirava o susto e a vergonha. Era compreensível, ele pensava, aquela reação. Não foi a primeira e, provavelmente, não seria a última. Geralmente, para um desavisado, o susto era sempre grande assim ao ver o grande Rhadamantys em pessoa na sua frente.
-"Deus do Céu...!" – ela cobriu os lábios com a mão, assustada. –"Oh! Perdoe minha indelicadeza, senhor Wyvern... Não sabia que era você!"
-"Sem problemas, senhorita Heinstein." – colocou o guarda-chuva no braço, e sorriu-lhe cordialmente. –"Eu que peço desculpas por ter sido tão inconveniente. A senhorita fez certo em dignar-me aquele tratamento."
-"Não, senhor... Eu só..."
A garota abaixou a cabeça, e Rhadamantys pôde ver um risinho nervoso. Realmente, o tédio era um companheiro constante quando chega-se na idade adulta. Antes, ela dignava um tratamento indiferente, e agora, estava subjugada pela presença do 'escritor famoso' que havia nele. Aquilo era algo extremamente maçante, uma vez que sempre acontecia.
-"Perdoe-me, é que fiquei muito surpresa. Minha mãe e eu somos profundas admiradoras de suas obras, senhor Wyvern..."
-"É verdade?" – inesperadamente, aquilo chegou a esquentar-lhe de satisfação. Nossa... Aquilo definitivamente foi tão... Pedófilo.
-"Sim. Particularmente, gosto muito de 'Now I Can be Honest', e... Deus! Sequer acredito que encontrei Rhadamantys Wyvern num parque qualquer a esta hora..." – ela escondeu graciosamente o rosto nas mãos. –"Devia ter seguido o conselho da Marie e ter levado um guarda-chuva..."
O escritor permitiu-se sorrir daquele gesto tão 'sincero', ao seu ver. Ao contrário da maioria das pessoas que, quando envergonhadas, lhe provocavam enfado e frases polidas ditas apenas para agradar, aquela garota lhe despertou comentários sinceros.
-"Na verdade, também gosto bastante deste. Se bem que meu editor comentou, depois de vê-lo, que eu devia estar sobre efeito de tóxicos quando escrevi-o."
Pandora não conteve uma risada cristalina, destarte o intenso nervosismo e até mesmo a descrença que persistia.
-"Ele tem uma história peculiar. Deve ser isso."
-"Polêmicas geram dinheiro."
-"Eu que o diga."
Provavelmente, a conversa iria seguir debaixo daquela chuva e do vento. Mas, então, as badaladas das seis da tarde ecoaram por aquele parque. Nenhuma lei da Física dizia que, na chuva, o som propagava-se mais rápido, mas Rhadamantys teve a impressão de que era verdade, porque nunca aquele sino pareceu tão irritante quanto naquele momento.
-"Por Deus...! Já são seis horas..." – gemeu a jovem.
-"O que aconteceu, senhorita?"
-"Preciso ir. Na verdade, saí meio que escondida, e se minha governanta ou meus pais virem que fugi, ficarei em apuros..."
Imediatamente, ela deu uma última olhada nas rosas, e em seguida, no escritor. Naquele ínfimo momento, que na verdade não deve ter durado mais que alguns décimos de segundo, o homem teve uma miríade de pensamentos e sensações, tanto desagradáveis quanto agradáveis.
Despedindo-se silenciosamente com aqueles olhos violeta daquelas rosas vermelhas, daquele jeito tão peculiar, lembrou-lhe até de quando ele era criança, e seus pais diziam-lhe 'vamos embora!', e ele, silenciosamente, como ela, despedia-se das bolas com que brincara, da grama na qual corria ou de qualquer outra coisa. Lamentava-se por vários instantes depois de partir.
-"Compreendo." – ele tentou retomar a pose habitual, empertigando-se no sobretudo. –"Então... Nos vemos em outra ocasião, senhorita Heinstein?"
A garota parou, e ficou encarando-o, como se não acreditasse no que ouvira.
-"Ah... Assim espero, senhor Wyvern. Espero que sua próxima obra seja tão fantástica quanto sua presença." – foi um elogio rápido, e meio enrolado, ele sentiu. Mas foi, sem dúvidas, o melhor de sua carreira. Se um dia perguntassem'qual o elogio mais inesquecível para você?', ele lembraria-se daquele.
-"O prazer foi todo meu, senhorita Heinstein."
Como um bom cavalheiro, ele fez o gesto tradicional, e beijou sua mão encharcada e pálida. Sentir a textura macia e tocá-la, de certa forma, o tirou permanentemente daquela sensação de marasmo de antes. Tédio? Que tédio? Realmente, os escritores são seres abençoados.
-"Adeus, senhor Wyvern."
A vontade de Rhadamantys foi, inexplicavelmente, segui-la. Mas deixou que a garota não-mais-tão-misteriosa de nome Pandora afastasse-se dele correndo, com o vestido escuro segurado pelas duas mãos para não arrastar no chão, pelo parque até desaparecer de sua vista.
