Engel

Sinopse: Desde pequenos, eles foram treinados para sobreviver à arena, matando quem se colocasse no caminho e matando qualquer sentimento que os impedisse de ganhar. Cato e Hayat estavam entre aqueles com mais chances de saírem vitoriosos. Eles tinham força, coragem, jeito com armas e uma frieza praticamente inabalável. Sim, praticamente. Porque é inevitável se apaixonar quando essa a pior coisa a se fazer.

Quem é bom durante a vida na Terra

Vai se tornar um anjo depois da morte.

Você olha pro céu e se pergunta

Por que as pessoas não podem vê-los.

(...) Deus sabe que eu não quero ser um anjo.

Engel, Rammstein.

N/a: Saibam que a minha opinião não é sempre a mesma da personagem que narra a história, então não se sintam ofendidos com algum comentário dela, minha intenção não foi criar personagens perfeitos. Não pretendo ofender nenhum tipo de religião com essa fanfic e não interpretei a música Engel ao pé da letra quando fui escrevê-la. Essa fic é muito, muito especial para mim e seria legal receber reviews. Já vou avisando que sem incentivo paro de postar. Boa leitura!


Capítulo 1

Quem é bom durante a vida na Terra

Girei o canivete em minhas mãos e os raios do pôr do sol refletiram no metal em movimento. Havia tanta beleza no que era fatal.

— Hayat, sua vez! — gritou o Sr. Lorcan do outro lado do campo.

Dei uma rápida olhada na direção dele e depois na de onde a última combatente tinha acabado de sair mancando. Clove estava parada no meio do campo, me encarando com um sorriso meio insano nos lábios. Como sempre, só havíamos restado nós duas. Revirei os olhos para ela e fui em sua direção.

Normalmente, naquele horário nós, os futuros tributos do distrito 2, estaríamos nos encaminhando de volta para nossas casas. Mas, como era dia de combate, ninguém se importava em ficar até mais tarde. Mesmo aqueles que já tinham se enfrentado no campo gostavam de assistir os outros.

A verdade era que aquilo era para ser uma simulação de combate. Porém ninguém ali estava muito a fim de simular alguma coisa. Afinal, simulações não vão te manter vivo na arena.

— Hey, Clove — cumprimentei quando já estava a menos de dois metros dela.

— Como vai, Hay? — ela retribuiu o cumprimento, ainda sorrindo de modo insano. — Pronta para levar uma surra?

Meus lábios se curvaram minimamente nos cantos e meus olhos demonstravam diversão. Eu ainda girava o canivete entre meus dedos.

— Nunca. — eu disse e nós apertamos as mãos quando o Sr. Lorcan ordenou que o fizéssemos.

Ele começou a contar em voz alta. Dez segundos.

Dez.

Analisei rapidamente o modo como Clove segurava o seu facão, apertando fortemente o cabo. Preparada para um ataque rápido.

Nove.

Dei um passo para trás, eu não iria querer estar muito próxima da lâmina daquele facão quando o apito soasse.

Oito.

Mais dois passos.

Sete.

Arrisquei uma espiada na multidão de alunos. Eu conhecia todos os rostos. Sabia quais eram suas armas favoritas, quais deles preferiam atacar e quais ficavam na defensiva, eu conhecia todos os movimentos e todos os pontos fracos. Mas eles não me conheciam, eu ainda podia surpreendê-los.

Seis.

Eu podia apostar que todas as pessoas ali, incluindo Clove e o Sr. Lorcan, estavam esperando um combate longo. Na maioria das vezes, eu gostava de brincar com Clove porque ela conhecia as regras da brincadeira. E porque existia a possibilidade de eu perder. Quando se tratava da maior parte dos outros alunos tudo era fácil demais.

Cinco.

Bem, eu não iria brincar daquela vez. Estava um pouco cansada e com vontade de fazer xixi. E não achava que Clove estivesse no clima para brincadeiras, tampouco. Não quando ela estava segurando aquele facão com tanta força.

Quatro.

Eu tinha um canivete, ela tinha um facão. Não era muito justo. Mas eu era pelo menos cinco centímetros mais baixa que ela, tinha menos ombros e mais coxas.

Três.

Clove contraiu minimamente os joelhos. Um salto para frente ou para trás?

Dois.

Para frente. Ela era confiante e orgulhosa demais para recuar. Já eu, preferia ser inteligente a deixar que meu ego me dominasse.

Um.

Nossos olhares se encontraram e parei de girar o canivete.

— Agora!

Joguei o meu corpo para o lado ao mesmo tempo que Clove saltava para frente e caia agachada onde era para eu estar. Sem dar tempo para que ela se recuperasse da surpresa de eu não ter ido ao seu encontro, como costumava fazer logo no começo, girei no chão e chutei o facão de sua mão.

Ela deixou escapar um xingamento e agarrou meu tornozelo. Torci minha perna de modo que ela foi obrigada a me soltar e então empurrei seu tronco com força para o chão. Puxei seus braços para trás e sentei em cima deles passando minhas pernas ao redor do seu pescoço. Clove se debatia gritando de modo raivoso.

Por fim, meu canivete estava a alguns centímetros de sua garganta.

Alguns segundos. Nada de brincadeiras. O Sr. Lorcan se aproximou e avisou que era o fim do combate e que eu havia vencido. A minha platéia emitia sons de satisfação, mesmo que o show tivesse sido extremamente curto.

Clove se levantou do chão e me lançou um olhar de gelo. Sorri para ela sabendo que no dia seguinte tudo estaria bem.

Sr. Lorcan dispensou todos e, em seguida, fez sinal para que eu e Clove nos aproximássemos. Peguei meu casaco de lã que estava em cima de um banquinho de tijolos no canto do campo e fui até onde nosso treinador estava.

— Foi uma boa tática, Hayat — ele me parabenizou. — Rápida e prática.

Clove murmurou algo como "não vai ser tão prática na próxima vez", mas o Sr. Lorcan a ignorou e continuou falando.

— Imagino que você conheça Clove muito bem para saber exatamente o modo como ela te atacaria no início. Ou tenha observado-a muito bem.

Dei de ombros. A verdade é que eu era mesmo observadora demais e quase sempre sabia que movimentos meus oponentes fariam, mesmo que eu nunca os tivesse visto antes. O que não era o caso de Clove.

Nós éramos vizinhas.

Não arriscaria dizer que éramos amigas, mas certamente éramos parceiras. Nos fins de semana nos encontrávamos em um terreno baldio no final da nossa rua e trinávamos golpes, fazíamos planos, discutíamos táticas durante horas.

Eu era observadora, sim. Contudo, quando se tratava de Clove, eu também conhecia muito bem o adversário.

— De qualquer modo — Sr. Lorcan continuou. — Eu já estava planejando algo para vocês duas há um tempo. Cansei de vê-las na disputa final de todas as simulações de combate, está mais do que óbvio que estão em um nível mais alto que o resto das alunas.

— Isso quer dizer que já podemos nos voluntariar para os Jogos Vorazes? — Clove o interrompeu.

Eu reprimi um riso, porque a euforia em sua voz chegava a ser cômica. Aquela garota era um pouco sádica demais às vezes.

— Calma — o treinador disse — Deixe-me terminar — ele tomou fôlego e continuou com seu discurso. — Na arena dos Jogos vocês não enfrentarão apenas meninas, haverão garotos que, teoricamente, possuem uma força consideravelmente maior que a de vocês... — Eu e Clove bufamos e ele se apressou em repetir. — Teoricamente, garotas, só teoricamente.

— O que você está querendo dizer é que iremos lutar contra os meninos? — perguntei, porque já estava cansada da falação e minha vontade de fazer xixi tinha aumentado.

— Não lutar contra eles. Treinar com eles.

Revirei os olhos. Claro, como se alguém ali só treinasse.

— Bem, eu gosto da ideia — Clove disse. — Vou acabar com aqueles patetas.

— Tudo bem para você, Hayat? — Sr. Lorcan me perguntou. Assenti e ele sorriu duramente. — Estejam aqui amanhã às três. Podem ir.

Assim que a conversa se deu por encerrada, Clove foi pegar suas coisas no vestiário e eu aproveitei para fazer xixi. Depois fomos andando juntas para casa, como sempre fazíamos, todos os dias, depois do treino.

A população do distrito 2 era dividida basicamente em: miseráveis, pobres e classe alta. Os miseráveis eram aqueles que estavam morrendo de fome nas esquinas ou tentando loucamente trocar seus serviços por alimentação básica, mas, ao contrário do que acontecia na maioria dos distritos, eles não eram maioria. Os pobres eram aqueles que trabalhavam nas minas, nas zonas de comércio ou em qualquer coisa que lhes garantisse não apenas comida, mas também algumas moedas extras que, no final do mês, poderiam comprar uma roupa ou uma arma. E, por fim, a classe alta era composta pelos militares ou por vitoriosos dos Jogos Vorazes.

Eu estava entre os pobres, assim como Clove e, eu supunha, o Sr. Lorcan.

Me despedi de dela assim que passamos em frente à pequena construção de tijolos que ela morava. Naquela parte do distrito não haviam ruas, apenas estradas de terra, então eu estava tentando não escorregar na grande massa de lama que havia se formado lá por conta da temporada de chuvas.

Minha casa era exatamente igual à de Clove, e à do meu vizinho do lado e do meu vizinho da frente. Todas as casas tinham, na verdade, o mesmo aspecto. Não possuíam pintura, as janelas de madeira abriam para fora, o piso não tinha azulejos (era só uma massa de cimento) e a energia elétrica era uma raridade.

Bem, pelo menos eu tinha um local para dormir.

Empurrei a porta da frente cuidadosamente, para não fazer barulho e acabar chamando uma atenção desnecessária de minha família. A minha melhor qualidade entre eles era a de conseguir ser invisível na maioria das vezes. Quando se tem uma mãe doente e um pai com tendências agressivas, a capacidade de não ser notada é muito bem apreciada.

O cheiro de sangue foi a primeira coisa que notei. Talvez por já estar acostumada com ele. Ou talvez porque eu nunca me acostumaria com ele.

Ignorei o cheiro e andei em direção ao quarto que eu dividia com meus irmãos. Estava tudo muito silencioso, o que significava que meu pai ainda não tinha voltado do trabalho. Quando eu estava esticando a mão para girar a maçaneta do quarto, meu cotovelo bateu em um porta-retrato na estante e ele caiu no chão com um estrondo.

— Hayat? É você? — a voz alarmada de minha mãe me alcançou. Deixei escapar um suspiro de descontentamento e me abaixei para pegar o porta retrato.

A foto era antiga. Minha mãe usava seu vestido de noiva, uma de suas mãos segurava o braço do meu pai, que exibia seu semblante natural de seriedade, e a outra estava pousada sobre a barriga grande, que indicava um estado avançado de gravidez. Eu não entendia por que eles ainda guardavam aquela foto.

— Hayat? — minha mãe chamou outra vez, sua voz vinha da cozinha.

— Sou eu — respondi depois de alguns segundos.

Andei lentamente até a cozinha, tentando adiar ao máximo a visão da cena que já havia se formado em minha mente assim que senti o cheiro. Mamãe estava sentada no chão de cimento, seu vestido tinha sido repuxado até a altura da cintura deixando à mostra suas coxas. Não era uma visão bonita. Sua pele estava toda arranhada e rasgada, o sangue escorria e formava uma possa vermelha no chão.

Mamãe levantou seus bonitos olhos castanhos para mim e eles se encheram de água imediatamente.

— Não fui eu — disse ela. — Foram os monstros. — Limpou as lágrimas que escorriam com as costas das mãos, fazendo com que o seu rosto ficasse sujo de sangue. — Eu juro. Você acredita em mim, não é, meu bebê?

Suspirei e peguei um pano em um armário. Em seguida me ajoelhei onde mamãe estava e limpei o sangue de seu rosto, depois o de suas pernas e então a ajudei a levantar do chão.

— Não fui eu — ela repetia continuamente. — Não fui eu. Você acredita em mim, não acredita?

— Acredito — menti. — Vem, eu vou te dar banho.

Ela me seguiu em direção ao pequeno banheiro da casa. Enchi uma bacia grande com água gelada e ajudei minha mãe a se lavar. Assim que a deixei em sua cama e tive certeza de que tinha dormido, fui até a cozinha e limpei até o último vestígio do líquido vermelho.

Entretanto, mesmo depois de ter tomado banho e deitado em minha cama para dormir, eu ainda sentia o cheiro de sangue como se ele estivesse saindo de mim.


Na manhã seguinte, saí de casa antes que qualquer um acordasse. Eu não queria ficar com a minha mãe por tempo suficiente para que ela tivesse outra crise e eu fosse obrigada a cuidar dela. Eu sabia que isso era horrível da minha parte, visto que mais ninguém da família se propunha a ajudar e eu era a única pessoa ali em quem ela confiava.

Mas nunca disse que era uma boa pessoa. E nunca quis ser. Pessoas boas sofrem demais, e o meu sofrimento sendo uma pessoa má já me bastava.

Fui até uma praça em estado deplorável que ficava a duas quadras da minha casa. Geralmente o lugar era cheio de crianças, mas o sol ainda nem tinha nascido e todas estavam dormindo. Me sentei na grama embaixo de uma grande árvore, tirei meu canivete do bolso e fiquei girando ele entre meus dedos.

Alguns minutos depois, um grupo de meninos entrou no parque empurrando entre eles um garoto magro e pálido, que parecia desejar estar em qualquer lugar menos ali. Permaneci sentada, brincando com o meu canivete, enquanto eles riam alto entre si — todos pareciam achar algo extremamente engraçado, menos o garoto pálido.

Logo começaram a empurrar o garoto com mais força, as piadas se tornaram maldosas, as risadas mais altas. Quando o menino pálido levou o primeiro soco, pensei no que aconteceria se eu levantasse e fosse defendê-lo. Não o fiz.

Eu era uma das agressoras, teoricamente. Era isso o que as crianças que treinavam para se tornarem tributos faziam: batiam nos outros, colocavam medo, mostravam sua força sempre que podiam. Eu não era do tipo que saía agredindo aqueles que não tinham condições de lutar contra mim. Mas, ainda assim, fazia parte do grupo. Não havia nada que eu pudesse, e quisesse fazer para mudar esse fato.

Assisti o garoto magro e pálido levar mais socos e chutes. Assisti até que o momento que ele caiu no chão e não levantou mais. Cenas como aquelas eram comuns no distrito 2. Eu já havia assistido a tantas que nem me espantava mais, nem ligava, era como se eu estivesse assistindo a duas pessoas se cumprimentando na rua.

Os meninos maiores foram embora, não havia graça em um brinquedo estragado.

Assim que eles estavam longe, levantei e andei até a metade da praça, onde o garoto estava estirado no chão. Suas costelas se moviam por conta de sua respiração, o que significava que estava vivo. Eu poderia auxiliá-lo a levantar, quem sabe até levá-lo para sua casa. Porém isso seria pior do que se eu o chutasse junto com os outros, pois significaria que eu era uma covarde, o tipo de pessoa que assiste em silêncio e depois se preocupa em ajudar a vítima destruída.

Não. Eu era do tipo que assistia em silêncio e ia embora em silêncio.

Então eu fui.