Personagens e lugares pertecem à Batman™
Fanfic MATURE (acima de 16 anos)
A NOITE MAIS ESCURA
OCASO
"Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. "
- Caio F. Abreu
- 1 -
As noites são sempre escuras. Escuras dentro daquele cômodo escuro de cortinas escuras, móveis escuros e lareira apagada. Uma poltrona de couro negro fica em frente a janela. O cômodo é cheio de janelas grandes de vidros, mas todas ficam escondidas atrás de cortinas escuras. Ele está sentado na poltrona, olhando na direção da janela, sem ver realmente o que está se passando lá fora. Os pensamentos perdidos em planos, idéias, projetos. Essa noite deu-se uma folga, a verdade é que desde que ele iniciou seus trabalhos de vigilante a cidade se tornou mais segura e calma aos poucos. As vezes desejava, escondidamente no íntimo, que voltasse àquela época onde os crimes ocorriam com tanta freqüência e pudesse sair todas as noites. Fugir daquela casa. Fugir daquelas lembranças. Fugir daquela escuridão.
" Bruce? Bruceeeee! " A voz insistia. A voz já estava lá há algum tempo mas ele não tinha percebido de tão distante que estava. Aquela voz brilhava, iluminava todo o cômodo. Parecia um sol quente numa manhã fria, derretendo o orvalho da noite. A voz cegava ele. Era um holoforte quebrando a densa escuridão de dentro dele. Ele não podia admitir, mas a voz lhe trazia paz. Uma paz inquieta é verdade, porque além de luminosa a voz era... "Bruceeeee!"... insistente.
E a dona da voz jogou-se no colo dele, envolvendo os braços em torno de seu pescoço, balançando os pés animadamente, olhos azuis estalados e o sorriso mais iluminado do mundo. "Você não ia me levar pra jantar?".
Colocou um braço embaixo das coxas dela e o outro em suas costas, então levantou-se com ela no colo, virou-se e a colocou na poltrona de volta. "Não prometi nada".
Ela fechou os olhos e deixou o corpo se espalhar pela poltrona, cabeça pendendo para trás, uma das mãos quase tocando o chão. "Mas eu estou com fome". Resmungou fazendo bico.
Ele caminhou até a janela e olhou para a rua. O cômodo ficava no terceiro andar da mansão e a vista era panorâmica. Um carro vermelho passou em alta velocidade pela rua. "Posso pedir uma pizza".
Ela soltou um suspiro de desapontamento. "E se a gente visse um filme?". Abrindo os olhos e vendo o vulto dele de ponta cabeça abriu largamente um sorriso, já esperava a resposta negativa.
"Você pode ver, eu vou sair". E de um salto ela ajoelhou-se na poltrona, inclinando o corpo na direção dele, sorrindo e animada. "Eu vou junto!".
Ele virou-se e caminhou na direção dela, abaixando e tocando de leve o queixo sorridente. "Você fica, come a pizza e assiste o filme". E logo levantou-se, deixou de tocá-la. Não podia se permitir ficar muito tempo perto dela, pois podia afogar-se naquele olhar, podia ser derretido com o brilho do seu riso, podia morrer com a doçura da voz dela.
Ela segurou forte o pulso dele. "Eu vou junto, já decidi". Enquanto descia da poltrona.
"Não tenho tempo pra ficar cuidando de mais uma criança". E num movimento do pulso ainda preso na mão dela, conseguiu fazê-la cair sentada novamente na poltrona. "Você fica".
Então caminhou na direção da porta sem olhar pra trás pois ele sabia o que viria. Viria uma voz trêmula, chorosa, gritos descontentes acusando-o. Mas o que ele não podia suportar e por isso nunca a encarava quando brigavam, porque sempre brigavam e pelo mesmo motivo, eram os olhos azuis. Aqueles olhos azuis marejados a encará-lo. Se os visse, ele sabia, largaria tudo, perderia a compostura e a pegaria no colo, abraçaria forte e juraria nunca mais fazê-la chorar. Entretanto não podia arriscar, iria afogar-se e perder-se pra sempre naquele olhar. E ela era filha de um amigo e prometeu-lhe cuidar dela. Promessa silenciosa dessas que nem precisa se fazer aos amigos. E a porta se fechou atrás dele e dentro do cômodo como ele previa, ela gritava, xingava, reclamava. A doce voz que mesmo trêmula, engasgada, chorosa, ainda brilhava. E seu brilho era tão forte que conseguia atravessar o cômodo escuro, a porta fechada, o coração trancado dele. E sorriu.
- 2 -
Os olhos azuis agora já secos miravam o céu pela vidraça. Céu escuro, sem estrelas e sem lua, naquela noite. A boca em bico, criança mimada que teve o passeio recusado. O pai vivia dizendo para ela desistir que Bruce Wayne não era homem para ela, mas não adiantava, ela o admirava como a um deus. Amava-o acima de todas as coisas, e agora mais ainda, pois sabia seu segredo.
Quando soube, após meses a vigiá-lo e investigá-lo e outros meses a torturá-lo com perguntas insistentes até que confessasse, sentiu-se a mulher mais feliz do mundo. Mulher, apesar dele sempre a chamar de criança, infantil, mimada. Finalmente tinham algo só deles, finalmente ela tinha algo que partilhava só com ele, algo íntimo, particular, eram cúmplices de um segredo. Sentia que aquilo os aproximava, os unia, mas nem por isso via resultados. Desejava escondidamente que um dia fosse torturada para descobrirem o tal segredo mas ela seria forte o suficiente para mantê-lo, e então, quando Bruce soubesse, finalmente a amaria de verdade. Esperava que um dia ele finalmente a visse como mulher, a beijasse, a convidasse para dormir na cama dele.
Então se deu conta que estava sozinha naquele cômodo escuro. Os olhos azuis se arregalaram e ela levantou-se correndo para a porta, abriu e olhou para fora o corredor longo e escuro também. "Bruceee". Choramingou uma vez mais.
- 3 –
Ele não mudaria de idéia, nunca mudava. Então decidiu ir embora. Agradeceu a hospitalidade a Alfred que a acompanhou até a porta e seguiu para o portão.
De outra janela, lá no mesmo terceiro andar, Bruce observava Bárbara se afastando. Os cabelos ruivos ao vento, o andar jovial, a saia rodada curta, e a mão dele foi à própria testa, tentativa inútil de afastar os pensamentos. Bárbara não era mais a menina de olhos azuis e sardas no rosto que sorridente o surpreendia pendurada na janela, quando Batman ia procurar o comissário Gordon em sua residência.
Bárbara havia crescido, se tornado uma linda mulher que ele não podia desejar. Por isso mesmo, insistia que Jason, seu aprendiz, se aproximasse dela. Pensava que dessa forma poderia ao menos tê-la por perto, por mais tempo iluminando as trevas da mansão.
- 4 –
Bárbara seguia para casa. As ruas de Gothan eram perigosas em qualquer ponto da cidade. O problema de desigualdade social não fazia o crime ser regionalizado. Qualquer bairro, qualquer rua e em qualquer horário o perigo rondava a cidade. "Psiu". Ela ouviu alguém a chamando de um beco, desses locais que se formam entre dois prédios com suas escadas de incêndio e lixeiras. A noite estava muito escura e ela não enxergou direito, teve um pouco de medo e já enfiava a mão na bolsa procurando seu spray de pimenta. O beco estava cheio de fumaça vinda do lixo em decomposição misturado à neblina do frio daquela hora da noite, que dificultavam ainda mais notar quem a chamava. O vulto insistia. "Psiu". Ela parou e o encarou, e abriu um largo sorriso quando notou as formas. Vulto alto, ombro largo, duas formas pontiagudas na cabeça. Era ela, só podia ser ele. O coração acelerou. Logo deveria vir um pedido de desculpas, ele devia ter caído em si ou pelo menos viera acompanhá-la para garantir que chegaria segura em casa.
Correu ao seu encontro e o abraçou contente. "Veio me proteger?". Ela perguntou nas pontas dos pés, encarando-o, aguardando ouvir a voz grossa dele. Então ela sentiu a mão dele tocando seu queixo. E teve certeza que era ele, que era o momento que tanto aguardava e fechou os olhos.
Mas a mão continuou subindo pelo queixo tampando sua boca. Foi somente então que ela caiu em si, não era ele. Os olhos azuis arregalaram-se e viram o rosto disforme a frente dela que sorria disformemente. Nunca foi tão fácil seqüestrar alguém. Ele podia ter a forma que quisesse e usou a mais conveniente pra atrair sua vítima. A outra mão dele a prendia pela cintura, a trazia pra perto. Ela tentou empurrar, mãos na altura do que seria o peito dele, braços esticados, mas afundaram completamente dentro daquele corpo inconsistente. Um tentáculo do mesmo material do corpo dele, barro, alcançou a coxa esquerda dela levantando-a e puxando-a contra ele, afastando da outra perna que tinha a ponta de um único dedo insistindo em tocar o chão. O sapato quase caindo. Cinderela. O corpo sendo envolvido por completo naquela gosma. O grito contido, o coração só não saltava pela boca porque estava presa pela mão de barro.
Como pode ser tão estúpida e acreditar que ele viria? Ou pior, que ele viria e a chamaria daquele jeito? Se fosse ele realmente, viria criticando-a, dando sermões. Mas ele foi traída pela ilusão, pelos sonhos de uma garotinha sardenta e ruiva que esperava seu "Romeu"¹ todos os dias da janela de seu quarto. Então os olhos se fecharam completamente antes dela afundar por completo dentro dele. Preparada pra morte, dentro de um sepulcro vivo, desejou que essa noite fosse apenas "sonhos de uma noite de verão"². Mas era inverno.
- 5 -
"Telefone Sr.Bruce". Agradeceu e atendeu. Era o comissário Gordon perguntando se a filha dormiria na mansão, afinal já era madrugada e ela não havia nem ao menos ligado. A filha sempre fora orgulho para ele, um exemplo de educação, apenas perdia a cabeça quando se tratava de Bruce Wayne. Então, se tornava irresponsável, infantil e ao mesmo tempo a pessoa mais alegre desse mundo. Sorria muito nos dias que via Bruce, mesmo que fosse uma foto num jornal, ele rodeado de outras mulheres. Ela só tinha olhos pra ele. Sabia que tudo era aparência, insignificante.
Ele desligou o telefone e saiu apressado. Culpava aquela irresponsável de sair por aí distraída, devia no mínimo ter ido a alguma pizzaria ou ao cinema sozinha. Devia ser algum plano para chamar a atenção dele. Aquela criança mimada. Aquela criança ruiva mimada. Aqueles olhos azuis implorando por atenção... mimados. Não ousava imaginar que pudésse ter acontecido qualquer coisa ruim àqueles olhos azuis.
Vestiu a capa e saiu apressado pela noite. Precisava encontrá-la. Devia encontrá-la. Tinha que encontrá-la. Ela estaria saindo do cinema com restos de pipoca na blusa ou o rosto lambuzado de algodão doce, então ele lhe daria um sermão e a levaria pra casa. Estava tudo certo, tudo planejado. Exceto, que a vida insiste em não concretizar nossos planos. Menos ainda em Gotham.
O cinema estava fechado há horas. E nenhuma pizzaria funcionava até aquele horário. Então escondeu o carro e saiu pelos becos e coberturas de prédios, em busca de alguma pista. Foi quando viu o sapato perdido num beco próximo à residência dos Gordon.
Era o sapato dela sim, um com uma fivela em forma de coração que ela obrigou Bruce a comprá-lo de presente de aniversário. Entraram na loja sorrindo, braços dados, os olhos azuis sempre a mirá-lo. Ela sempre soube o que queria, era decidida, então desde lá de fora já tinha escolhido na vitrine o sapato. Experimentou e fez um pequeno desfile para Bruce, que sorriu aprovando. A loja inteira estava encarando o casal, aos cochichos. E ela ia as alturas com a possibilidade de sair no jornal como a nova namorada de Bruce Wayne. Recortaria a notícia, mesmo que fosse apenas uma notinha de duas linhasna coluna social do jornal e emolduraria. Seria a prova, mesmo que mentirosa, de que um dia já foram mais que amigos.
Ele recolheu o sapato no chão, que estava sujo levemente de lama e o guardou. Agora já sabia por onde começar a procurá-los.
Continua ...
¹ Prólogo, Cena II onde Julieta está à janela conversando com Romeu. Peça de Shakespeare.
² Peça de Shakespeare.
