What's Up

Mais uma quarta-feira cheia. Horário do almoço e quase todas as mesas estavam ocupadas com aquela diversidade de público que só o Eighth Legend conseguiria na 11th Avenida de New York. A pouco mais de 0,8 milhas da tão famosa e cobiçada Times Square, com toda sua rede de fast-food. Incrível como um restaurante caseiro conseguia sobreviver por aquelas bandas, com o preço da hipoteca subindo mais a cada minuto.

O restaurante tinha seu charme e atendia com maestria quase todos os públicos. Piso encerado de madeira escura e paredes em um tom verde bosque. Grandes persianas cobriam as janelas, trazendo um aspecto agradável aos olhos em dias de sol forte.

Diferente do dia de hoje.

Os céus pareciam estar de mau humor e estressados, assim como 90% dos habitantes da populosa Nova York. A chuva batia com violência contra os vidros e os clientes entravam correndo, com a maleta de couro na cabeça ou a pasta de papel dentro de seus paletós e sobretudos.

- Bem vindo ao Eighth Legend – a garota ruiva sorriu – posso anotar seu pedido?

- Fried Chicken – o homem disse sacudindo as mangas molhadas – e uma lata de Pepsi.

Anna anotou ambos e saiu em direção à próxima mesa. Estava com o pensamento longe, mais especificamente em sua cama quente, seu pijama de Ghostbusters e uma caneca de chocolate quente para esquentá-la do frio que fazia na cidade. Estava um pouco cansada. Noite passada ficara acordada até pouco mais das duas da manhã, terminando um trabalho que deveria entregar na faculdade no dia seguinte. Trabalho este que quase foi estragado pela chuva enquanto ela corria pra não perder o ônibus.

"Como eu queria ter um carrinho" era um pensamento frequente.

- Anna! – gritou James, o chefe de cozinha – Amber parece que morreu lá nos fundos. Mande-a voltar. Esses pratos não irão sair do balcão por conta própria.

A garota fez um aceno com a cabeça e se dirigiu pra portinha dos fundos do estabelecimento. Amber era uma das três garçonetes que abriam o restaurante junto de Anna. Estava sentada num banquinho, fumando um cigarro e completamente despreocupada e ouvindo algum tipo de eletrônico em seus fones de ouvido. Anna estalou os dedos na cara da companheira de serviço, que deu um pulo do banquinho, tirando os fones.

- James tá fazendo escândalo lá fora, ameaçando jogar a comida pra ver se ela voa e chega sozinha na mesa dos clientes, Amber – a ruiva riu, ajeitando uma de suas trança – acho melhor voltar.

- Pleno novo milênio e eu não posso vir no corredor e aproveitar meu cigarro – Amber riu – merda.

- Eu acredito que as coisas vão mudar um pouco, sabe? – Anna levantou as sobrancelhas – que daqui pra frente às pessoas vão ver que o cigarro faz um mal danado. Talvez em 2010 nem exista mais a indústria de tabaco... – provocou, com uma risadinha maligna no final.

- Claro que não, Anna. Foi agora em 2001 que eu vi a melhor propaganda de cigarro desde... Sei lá, 1989!

A porta então se abriu e Ciara, a garçonete mais experiente apontou pra fora, balançando a cabeça em negação. Ambas as garotas deram um sorrisinho e passaram pela mulher de cabeça baixa.

O resto do dia talvez tenha passado mais devagar que o comum. Parecia que os céus não cansavam de desabar sob a cabeça dos nova-iorquinos e seus táxis amarelos. Foi um dia trágico que não teve pôr do sol, momento favorito de Anna. Eram quase 17h quando a noite e seu véu negro começaram a tomar conta de tudo. As luzes começaram a se acender e a cidade então estava mais viva que nunca.

Durante a noite, as luzes do Eighth Legend também se apagavam. Alguns neon's vermelhos, azuis e verdes abraçavam o ambiente. As persianas ficavam abertas e alguma música tocava baixinho no fundo. Assim como What's Up do 4 Non Blondes tocava no exato momento que Anna se sentou num banco do bar, cansada do dia de trabalho.

-"Twenty-five years and my life is still".
25 anos e minha vida está parada.

- "Trying to get up that great big hill of hope"
Estou tentando subir essa grande montanha da esperança.

- "For a destination"
Por um destino.

A garota sempre detestava as músicas que tocavam, pois sempre se identificava e então tinha a vontade de se afogar em uma privada. Olhou brevemente para a entrada quando o sino bateu e entrou uma loira alta e encharcada. Ela era bonita e parecia bastante infeliz com a situação. Apertou a longa trança platinada, que despencou água no chão e entrou. O barulho do tamanco contra o chão de madeira deu ritmo ao momento. Ela sentou no bar, três bancos depois de Anna e apertou as têmporas, soltando um longo e doloroso suspiro.

A curiosidade da garota ruiva atiçou como uma raposa mal criada. Ela queria simplesmente se sentar do lado da outra e perguntar como ela estava. Mas levantou-se, rodeou o balcão e parou na frente da mulher, perguntando o que ela gostaria.

- Conhaque – respondeu, sem levantar o rosto – sem gelo.

Anna pegou um copo fundo e colocou uma generosa porção do líquido da cor de fogo. Pôs o copo com uma leve batida em frente e loira, que então levantou o rosto e encarou a garota por poucos segundos. Seus olhos tinham um peculiar tom de azul, que Anna não soube distinguir. Sentiu suas sardas arderem um pouco e desviou o olhar da mulher.

- Como se chama? – a loira perguntando, cortando sua linha de pensamento.

- Eu? – a garota apontou pra si própria – me chamo Anna. E você?

A loira apenas sorriu, fechou os olhos e tomou mais um gole do conhaque.

- Anna... É um bonito nome. Pode me servir um pouco de whisky, Anna? – balançou o copo já vazio.

A garota abriu a boca pra questionar o porquê da loira não ter dito seu nome, mas resolveu ficar quieta. Todo dia aparecia todo tipo de gente no restaurante e não era dever dela questionar seus clientes. Ela alcançou a garrafa de whisky na parte mais alta do armário e serviu a loira, que tinha a visão opaca.

- Não está com frio? – Anna disse repentinamente, se repreendendo imediatamente. O que ela poderia fazer se a loira respondesse que sim? "Porque você não bate a testa no balcão até morrer, Anna?" pensou revoltada e franzindo o cenho sem que percebesse.

A mulher soltou uma risadinha e olhou pra ruiva, sorrindo maliciosamente.

- Estou sim.

"merdamerdamerdaeagoraeusoumuitoburra".

- Er... Você quer uma tolha? Posso te emprestar também minha jaqueta jeans. Ela provavelmente ficará um pouco curta pra você, mas...

"meudeusdocéu".

- Eu aceito Anna – respondeu a mulher, com ambas as sobrancelhas levantadas. Passou a mão na própria testa, tirando a franja loira grudada na pele. Ela se levantou e Anna teve que levantar o rosto para poder olhá-la melhor. Era pelo menos uns 10cm mais alta que a ruiva.

A ruiva fez um sinal para a mulher a seguisse até os fundos do restaurante, onde os armários ficavam. Usou seu código e tirou de lá uma toalha de rosto verde, entregando pra moça, que passou em seu rosto e nuca. Ela tirou seu sobretudo que caiu pesado no chão e então seu paletó cinzento. Ficou somente com uma social branca, que era possível ver seu sutiã preto. Passou a toalha na camisa e ao longo dos braços e então com um sorriso a colocou ao redor do pescoço da ruiva, que mais uma vez corou.

- Aqui está... – a garota sussurrou entregando a jaqueta jeans azulada. A mulher a vestiu e felizmente, houve um bom cabimento. Anna costumava usar roupas um pouco mais folgadas e sua jaqueta não era exceção.

Anna suspirou ao reparar na saia executiva com listras e no salto de camurça em contraste com sua jaqueta. A garota recuperou do chão os pesados tecidos – que sim, Anna reparou, eram de uma marca caríssima – e os pendurou em uma cadeira.

De volta ao balcão do bar, o relógio já batia quase 22h. O turno de Anna já tinha acabado e ela deveria voltar pra casa fazer uma resenha de uma obra que ela não tinha terminado. Mas como deixar aquela situação? Não sabia se a loira estava brincando consigo ou se estava realmente interessada.

E Anna queria pagar pra ver.

15 de janeiro de 2017